A última semana foi marcada, no mundo das escolas de samba, pela celeuma causada pelo enredo da Imperatriz Leopoldinense. Entidades ligadas ao agronegócio enxergaram uma “ofensa” a seus negócios no enredo que enfoca os índios do Alto Xingu e sua destruição.

A polêmica chegou a ponto do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) propor uma CPI no Senado “para discutir, debater e descobrir os financiadores da Imperatriz Leopoldinense e os interesses em denegrir o agronegócio”. Na justificativa o senador diz que “com tantos problemas no país, que sofre com traficantes, bicheiros e facções, causa perplexidade uma escola de samba atacar o agronegócio, orgulho do País, que é o único setor que gera tantos resultados positivos”.

O curioso nisso tudo é que, como mostrou o colunista Rafael Rafic em post sobre as sinopses e eu discuti com o pesquisador Gustavo Melo em uma das edições do Bar Apoteose, a veia crítica do enredo é bastante tímida. Mais ainda: a crítica do enredo é muito mais voltada à construção da usina de Belo Monte que propriamente ao agronegócio – o enredo toca muito de leve na questão da demarcação de terras indígenas, fonte da ira de setores agrícolas.

Ou seja: o nobre senador e seus asseclas “ouviram o galo cantar” e saíram batendo no enredo da agremiação, sem parar para entender o escopo do enredo. Mais curioso ainda quando se lembra que a própria Imperatriz no ano passado abordou o agronegócio de forma positiva na homenagem a Zezé di Camargo e Luciano.

Ainda em 2016 a Unidos da Tijuca foi vice-campeã com outro enredo que exaltava o agronegócio do milho e da soja – inclusive com alas aludindo aos “benefícios” dos agrotóxicos. Mais atrás, em 2013, a Vila Isabel (capa) foi campeã com enredo patrocinado pela Basf e que exaltava a vida no campo – agronegócio incluído.

Parece incoerente – e é.

Este episódio, entretanto, leva a pensar sobre o papel da crítica na história das escolas de samba. Não é intenção deste artigo esgotar o assunto, longe disso; apenas fazer um breve histórico sobre a presença da crítica nos enredos e contextualizar historicamente o tema.

Em seus primórdios, as escolas de samba foram perseguidas pelo poder constituído. Vale lembrar que as agremiações precisavam de registro na Polícia para poder funcionar – tanto que a então “Vai Como Pode” se transformou em Portela por sugestão do delegado Dulcídio Gonçalves, responsável pelo registro.

O status começa a mudar com o prefeito Pedro Ernesto, que governou o então Distrito Federal entre 1931 e 1935. A partir de então o samba e sua organização foi sendo progressivamente apropriado pelo poder constituído, especialmente a partir do Estado Novo de Getúlio Vargas. Vale lembrar que os carnavais de 1943 a 1946 foram temáticos, com enredos aludindo à participação brasileira na Segunda Guerra Mundial e, no caso de 1946, à vitória na guerra.

Em 1947 se torna obrigatório que os enredos tenham temática nacional; no ano seguinte, o regulamento aprofundava isto ao determinar que fossem também “nacionalistas”. Esta obrigação se manteria em regulamento até 1996, quando finalmente foi abolida.

A década de 50 se manteve neste padrão: enredos que reproduziam e exaltavam a historiografia oficial. Obviamente, não havia espaço à crítica nos enredos e sambas. Nem mesmo para temas ligados às religiões de matiz africana – vale lembrar que o primeiro samba citando um Orixá apareceria apenas em 1966, com Iemanjá sendo citada nos sambas do Império Serrano e São Clemente sobre a Bahia.

Esta década de 60 começa a marcar enredos à margem da historiografia oficial, tendo como marco inicial o seminal “Quilombo dos Palmares” no Acadêmicos do Salgueiro. Era a volta do negro e de suas temáticas aos enredos.

A partir do Golpe Militar de 1964 o espaço se torna ainda menor, em que pese enredos como “História da Liberdade no Brasil”, do Salgueiro (1967) e especialmente “Herois da Liberdade”, do Império Serrano (1969). Como contei no “Samba de Terça” dedicado a este desfile, a letra do samba precisou ser alterada por exigência do DOPS e durante o desfile caças da Aeronáutica deram rasantes sobre a avenida de desfiles.

A década de 70 marca mais enredos voltados a costumes que propriamente à crítica. Era um contexto onde o AI5 estava em vigor e a censura na maior parte dos anos, presente. Naquela época as agremiações ainda dependiam bastante da subvenção oficial – muito mais que nos dias de hoje – em que pese a chegada dos banqueiros do jogo do bicho Aniz Abrahão David, Luiz Pacheco Drummond e Castor de Andrade, que deram outro patamar em termos de condições financeiras às escolas.

Aliás, a Beija Flor, que em 1974 e 75 viera com enredos louvando a Ditadura Militar – ambos com Rosa Magalhães como uma das carnavalescas – marcou seu primeiro campeonato falando sobre o jogo do bicho, em grande ousadia à época.

Eis que chegamos aos anos 80. A década de ouro da crítica no carnaval carioca. Tempos de estertores da Ditadura Militar e posterior redemocratização. Três escolas empreenderam papel fundamental nesta “distensão”: Unidos da Tijuca, Caprichosos de Pilares e São Clemente.

Como já elencado anteriormente na coluna “Samba de Terça” e em artigo que escrevi sobre os grandes sambas do Borel, a Tijuca entre 1980 e 1984 enfileirou enredos críticos. Ainda alegóricos, vivia-se o fim da ditadura, mas críticos.

Especialmente em “Macobeba, o que dá pra rir, dá pra chorar”, de 1981, era bem notória a crítica ao governo – com direito a trocadilho no refrão principal. Chega a ser curioso notar que Renato Lage, autor dos enredos entre 1980 e 1982, pode ser considerado um precursor dos enredos críticos no carnaval carioca.

Acompanhando a abertura política, vemos também os enredos críticos se tornando menos alegóricos e mais diretos. Então temos os papeis desempenhados pela Caprichosos de Pilares e São Clemente.

E outro nome precisa ser citado aqui. Luiz Fernando Reis.

O carnavalesco da Caprichosos de Pilares imprimiu à escola esta veia crítica com enredos como “Moça Bonita Não Paga”, de 1982 (que criticava a carestia e a inflação), “A Visita da Nobreza do Riso a Um Palco Nem Sempre Iluminado” (de 1984, que embora homenageando o humorista Chico Anysio, criticava os políticos e a falta de luz no desfile de 1983), “E Por Falar em Saudade (1985), “Brazil com Z, Não Seremos Jamais” (1986) e “Eu Prometo (1987).

Todos enredos com viés crítico. A Caprichosos nesta década ainda faria “O que é Bom Todo Mundo Gosta”, em 1989, também com este espírito satírico – em mais um enredo de Renato Lage.

E temos a São Clemente, que enfileirou enredos englobando crítica social, desde 1984 – sobre a loucura do trânsito – até aquele que é considerado o maior desfile de sua história, “O Samba Sambou”, em 1990. Este era uma crítica aos próprios desfiles e no que eles estavam se transformando – tema que já havia sido abordado no desfile campeão do Império Serrano em 1982.

Preciso fazer um parêntese para falar de 1986. Primeiro carnaval após o fim da Ditadura Militar, este ano foi pródigo em enredos críticos ou com toques de crítica e contestação social. Até a Portela, tradicional e conservadora, veio com um samba nesta linha.

A Vila Isabel falava da “pura no barril” e “não venha me sacanear” na letra de seu samba, a Tijuca tinha seu samba sobre a luxúria, o Império Serrano falava dos desejos com a redemocratização e a Cabuçu homenageava Stanislaw Ponte Preta. Somando-se a Caprichosos, eram seis temáticas nessa linha entre 16 escolas – a São Clemente subiria do Grupo A para o Especial também com enredo nesta linha.

Em 1987 a Mocidade, com “Tupinicópolis”, tratava da questão do índio de forma muito mais crítica que a Imperatriz 30 anos depois. Neste ano o Império da Tijuca também se utilizou de uma alegoria para fazer crítica social, em “Viva o Povo Brasileiro”

O centenário da Abolição da Escravatura também propiciou mote para enredos criticando a situação do negro na sociedade brasileira. Destaque para a Mangueira, que trouxe talvez no maior samba de sua história uma visão bastante ácida da “liberdade” dos escravos.

No ano seguinte, em 1989, o Salgueiro também traria algo semelhante em seu “Templo Negro em Tempo de Consciência Negra”, do mesmo Luiz Fernando Reis de história na Caprichosos de Pilares. Curiosamente, no Salgueiro que foi o precursor deste tipo de tema, foi o único enredo mais contestador nesta “Década de Ouro” da crítica no samba.

1985 também traz um marco que mudaria totalmente o quadro posterior: o enredo do Império Serrano sobre a cerveja marcava o primeiro enredo patrocinado da história do carnaval.

E na década de 90, em que pese ainda algum viés crítico, o samba e as escolas voltam ao padrão dos anos anteriores: pouco contestador, amigo do establishment e onde a crítica social foi deixada um pouco de lado. Além disso, muitos enredos patrocinados.

Um bom exemplo foi a polêmica causada pela mesma Caprichosos do mesmo Luiz Fernando Reis em 1993, cujo enredo sobre o subúrbio carioca ironizava no abre alas a violência na Zona Sul. A agremiação sofreu grande pressão da Riotur e de entidades do turismo para mexer na alegoria. Não o fez e acabou rebaixada – rebaixamento anulado posteriormente. Mas no ano seguinte a escola viria com enredo laudatório sobre a Avenida Rio Branco.

O grande marco da crítica social nesta década foi a homenagem a Betinho feita pelo Império Serrano em 1996, em momento de grande ataque aos direitos da população – e não me parece ter sido coincidência este samba ter sido o “esquenta” no ensaio técnico do último domingo.

Na virada do milênio e até os dias atuais, o padrão se manteve mais ou menos o mesmo. A ponto da São Clemente, que ironizara o slogan da Rede Globo de televisão em seu samba de 1988 – “se essa onda pega, vá pegar em outro lugar” – ter feito enredo exaltando a emissora e suas novelas em 2013.

Em 2005 a mesma Caprichosos teve seu samba inteiramente mudado após a final para tornar mais “politicamente correta” a composição. Este é outro fator que influiu nas definições de enredos e sambas: o avanço do “politicamente correto” e a maior exposição do conservadorismo da sociedade nos últimos anos.

Isso, somado aos enredos patrocinados, fez que o padrão dos temas voltasse ao padrão estabelecido anteriormente. Que agremiação terá patrocinado um enredo crítico? Como ter estas fontes de financiamento após desenvolver temas deste viés? Penso que se pode e deve debater o financiamento do carnaval – voltarei ao tema – mas o quadro, hoje, é este.

Então voltamos a 2017 e vemos como uma pálida crítica como a da Imperatriz recebe reações absolutamente desproporcionais. Ou ainda a São Clemente, que recorre a uma alegoria para criticar a situação política atual – mas nega isso.

Finalizando, a conclusão desta breve história é que a crítica nos enredos e sambas das escolas sempre esteve à margem do processo, à exceção da década de 80 – que possuía características políticas e sociais absolutamente singulares.

A crítica sempre foi a exceção.

Imagens: Arquivo Ouro de Tolo

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3 Replies to “As Escolas de Samba e a Crítica: um Breve Histórico”

  1. Muito interessante o artigo, parabéns . Pra quem se interessa ao tema, recomendo o livro ” Pra tudo começar na quinta feira ” que aborda o universo dos enredos

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