“Vivo tranquilo em Mangueira porque
Sei que alguém há de chorar quando eu morrer
Mas o pranto em Mangueira é tão diferente
É um pranto sem lenço
Que alegra a gente”

(“Pranto de Poeta” – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito)

Imagine você a responsabilidade que é exercer um cargo que foi exercido durante 57 anos por uma mesma pessoa. Mais do que isso, por aquela que talvez seja a melhor de todas em todos os tempos nessa atividade. Como fazer as pessoas ao menos conseguirem formar uma ligação afetiva com o seu trabalho após tanto tempo em companhia de uma pessoa inigualável?

Foi esse desafio que José Luiz Couto Pereira da Silva aceitou algumas semanas antes de completar 53 anos de idade. Bastante doente, o inesquecível Jamelão deixava, para nunca mais voltar, o posto de intérprete oficial da Estação Primeira de Mangueira, cargo que exerceu desde 1949 quase que sem interrupções (apenas em 1985 não foi o cantor principal, pois não pôde voltar de um show na Europa a tempo). O mundo do samba se perguntava à época se era possível passar por um Carnaval sem Jamelão. Quem seria capaz de cantar pela Verde e Rosa após uma história tão grande de identificação?

Em sua primeira entrevista como intérprete principal após o AVC de Jamelão, Luizito fez questão, óbvio, de dizer que José Clementino era “insubstituível e incomparável”. Mas também disse, logo na primeira pergunta, que estava muito tranquilo, pois havia 25 anos se preparava para tal. Não era força de expressão.

Um pouco antes do Carnaval de 1984, Luizito estava na quadra da Caprichosos de Pilares e, em uma conversa quase que acidental com o então presidente da escola, foi desafiado a cantar o samba sobre Chico Anysio. Cantou e encantou, ganhando assim a oportunidade de ser apoio do grande Carlinhos de Pilares. Nesse cargo, o de apoio de Carlinhos e outros intérpretes, ficou até 1993, ano em que compôs o samba da escola de Pilares. Em 1994, assumiu o microfone principal da escola, onde ficaria até meses antes do desfile de 1997.

https://www.youtube.com/watch?v=7doWyCJnyqg

“Mangueira despontando na avenida
Ecoa como canta um sabiá
Lira de um anjo em verso e prosa
De um querubim que em verde e rosa
Faz toda a galera balançar”

(“Chico Buarque da Mangueira”, samba-enredo de 1998 – Carlinhos das Camisas, Nelson Csispal, Nelson Dalla Rosa e Villas-Boas)

A história do seu José Luiz com a escola do coração começa ainda no ano de 1997, quando foi chamado para defender um samba de uma parceria paulista na disputa do samba para o desfile de 1998, quando a verde-e-rosa cantaria Chico Buarque. Sua grande atuação na quadra foi fundamental para que a obra vencesse, ainda que bastante contestada, a disputa e embalasse a Mangueira para mais um título. Ele foi chamado para fazer parte do carro de som da escola, onde cantou pela primeira vez ao lado de Jamelão. Sua voz esteve, assim como a de outros intérpretes hoje muito conhecidos, como Clóvis Pê, hoje na Unidos de Vila Maria, auxiliando o Mestre de todos os cantores.

Em todos esses anos, Luizito esteve ausente apenas uma vez, justamente no ano da despedida de Jamelão, em 2006. O motivo foi pra lá de nobre: sua mulher havia perdido a batalha contra o câncer, deixando um filho de apenas 11 anos e o marido, que meses depois voltaria a cantar e teria uma missão importantíssima: substituir Jamelão.

Mas o caminho de Luizito seria difícil. No primeiro ensaio técnico como cantor principal, já no Carnaval de 2007, teve um princípio de infarto que levou todos ao desespero. Recuperou-se e, contrariando uma ordem médica, soltou a voz no primeiro desfile desde 1986 sem que o microfone mais alto fosse o de Jamelão. Com um terço na mão, passou pela Avenida sem nenhum problema e cantando muito bem. Era oficial: a Verde e Rosa tinha uma nova voz.

Não se trata e nem nunca se tratou de comparar ou de substituir com a mesma maestria o maior de todos. Mas tem a ver com coragem, com garra, com determinação. Na mesma entrevista já citada, Luizito respondeu o que, na visão dele, era interpretar um samba da verde-e-rosa: “É você cantar com muita emoção e passar para as pessoas aquilo que você, realmente, está sentindo. Você tem que passar, realmente, aquilo que está dentro do seu peito. Se você está com vontade de chorar, chore. Se quiser bater no peito e rasgar a camisa, rasgue. Tem que mostrar para as pessoas a sua emoção, o quanto você está feliz e delirando com aquilo”.

Esse sempre foi, realmente, o jeito de Luizito trabalhar. E, por isso, ele em pouco tempo criou uma ligação muito forte com a escola mesmo no momento mais difícil de sua gloriosa história, que foi em 2008, naquele Carnaval totalmente infeliz sobre o frevo. Em 2009, depois de muitas dificuldades no pré-Carnaval, a Mangueira passou digna, empolgou e Luizito chorou copiosamente na dispersão. “A gente sabe que o amor que a gente sente por essa escola é incondicional”, declarou.

“Sonhei que “Folhas secas” cobriam meu chão
Pra delírio dessa multidão
Impossível não emocionar
Chorei… Ao voltar para minha raiz
Ao teu lado eu sou mais feliz
Pra sempre vou te amar!”

(“O filho Fiel, sempre Mangueira”, samba-enredo de 2011 – Aílton, Cesinha Maluco, Alemão, Xavier, Tê e Baiano)

Depois de toda essa tempestade, já em 2009, vieram dias mais calmos. Luizito foi a marca de desfiles que demonstravam uma fragilidade econômica, uma dificuldade estrutural, mas que mostravam a garra de uma das grandes escolas de nosso Carnaval. Se é mesmo “a maior escola de samba do Planeta”, difícil dizer. Mas era esse o pensamento que Luizito e os mangueirenses tinham. Era esse o pensamento que precisavam ter para dar os sacodes que deram em 2010 e, principalmente, em 2011. Nesses dois anos, Luzito formou um trio de tenores, como bem apelidou o então presidente Ivo Meirelles. Em 2010, ele, Zé Paulo e Rixxah. Em 2011, os dois primeiros e Ciganerey.

Meses antes de interpretar o melhor samba da sua carreira, Luizito mais uma vez se afastou da Mangueira. Em 2010, após o Fluminense ter sido campeão brasileiro, ele, flamenguista, teve um desentendimento sério com um integrante e pediu para se desligar da escola. Era fácil de prever que aquilo não duraria muito. Cantou e cantou muito em 2011. Em vídeo divulgado no domingo, Luizito aparece chorando ao gravar o samba-enredo da escola. “Se emocionar é bom. A emoção é uma coisa boa”, disse ao interromper a gravação que faria com brilhantismo.

Luizito era isso. Luizito era emoção. Porque a Mangueira é assim . Não à toa, o seu grito de guerra era “chegou a garra, chegou a emoção, chegou a Estação Primeira de Mangueira!”. Por falar em grito de guerra, é bom dizer que Luizito era um cantor à moda antiga. Seu grito de guerra não era uma marca registrada. Ele não era de fazer muitos cacos. Ele era de cantar o samba. Consciente de algumas dificuldades físicas, montou um carro de som de respeito para auxiliá-lo. O samba atual é de caco, é de grito de guerra, é de movimentar o mercado com trocas de escolas. O que é uma coisa natural e não diminui ninguém. Mas Luizito não era assim. Luizito defendeu poucos sambas em outras escolas e certa vez declarou: “”Hoje eu estou na escola que eu amo, na escola que eu torço. Se amanhã ou depois, por um motivo qualquer, não estiver mais na Mangueira, não estarei em lugar algum”.

No Carnaval de 2012, teve o prazer de cantar, além dos parceiros Zé Paulo, Ciganerey e Vadinho Freire, ao lado de bambas como Beth Carvalho, Jorge Aragão, Xande de Pilares e Dudu Nobre em um samba sobre o Cacique de Ramos, indo mais uma vez as lágrimas. Diga-se de passagem, nos anos de 2012, 2013 e 2014 a Liesa produziu clipes com os sambas e nos takes da gravação em estúdio sempre me chamou a atenção a imagem de Luizito com os olhos fechados, deixando mesmo a emoção aflorar. Um intérprete que também tinha qualidade musical e ajudou a segurar rojões dificílimos como o do complicado desfile de 2012.

Depois do Carnaval de 2013, o quarteto formado por ele, Ciganerey, Zé Paulo e Agnaldo Amaral foi desfeito. Sobrou só ele, como eu confesso que sempre quis. Em 2014, fez a mais brilhante gravação de sua carreira, seguida de perto por 2015. Em 2015, concentrado debaixo de chuva, cantou muito bem e foi agraciado com o Estandarte de Ouro de melhor intérprete. É engraçado como as coisas são. Talvez muita gente tenha discordado da escolha – eu mesmo discordei. Mas hoje, acho difícil qualquer um de nós encontrar melhor intérprete para recebê-lo. Um prêmio por uma carreira fantástica em seu oculto gran finale.

“A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite, a chuva que cai lá fora”

(“Desde que o Samba é Samba – Caetano Veloso)

No ano passado, Luizito participou de uma das poucas disputas de samba de sua carreira. Foi na Mancha Verde, aqui em São Paulo. A disputa foi interna, pelo CD, e ele gravou o samba da parceria vencedora, que teve Diego Nicolau defendendo o samba na final. Um dos compositores postou um vídeo depois em que ele, mais uma vez emocionado, interrompeu uma gravação. Ele disse algo mais ou menos assim (escrevo guiado pela memória): “Todos os dias eu saio de casa para trabalhar e peço apenas para que eu volte para casa. Preciso cuidar do Lucas, ele já não tem mãe. Eu só peço saúde para poder trabalhar e cuidar do meu filho”.

Na noite do dia 5 para 6 de setembro de 2015, José Luiz Couto Pereira da Silva saiu para trabalhar e não voltou. Estava feliz, segundo relatos, em mais uma etapa da eliminatória que definiria o samba que ele cantaria na Avenida. Samba em homenagem a Maria Bethânia… Por volta das 5 da manhã, foi para a casa da namorada, onde sucumbiu a um infarto fulminante. Separava-se fisicamente pela última e definitiva vez da escola do coração.

Luizito deixa órfão o seu filho Lucas, que não conheço sequer por foto, mas que pode se orgulhar e muito do pai que teve. Assim como podem se orgulhar os amigos, da Mangueira e de fora. Assim como podemos nos orgulhar todos nós mangueirenses e amantes do samba em geral. Que sirva de alerta para outros intérpretes, carnavalescos e dirigentes, que muitas vezes não cuidam da saúde como deveriam. Que o próximo intérprete da Mangueira também não pense em substituí-lo, pois isso também é impossível. Que “cante com emoção e passe para as pessoas o que está sentindo”. Que chore se quiser chorar, que bata no peito, que se dedique como ele se dedicou. Ele se dedicou. Ele chorou. Chorou, como eu já disse, quando terminou de cantar o samba de 2009, cujos versos finais me soam muito apropriados no momento.

Que descanse em paz e reencontre, onde quer que seja, com a mesma garra e a mesma emoção, Jamelão. Se como apoio ou como cantor principal ao lado dele, cante muitos sambas e passe o que realmente estiver sentindo. Valeu, Luizito!

“De fato, sou brasileiro!
Sertanejo, caipira, matuto…sonhador
Abraço o meu irmão
Pra reviver a nossa história
Deixar guardado na memória o seu valor”

(“A Mangueira traz os Brasis do Brasil, mostrando a formação do povo brasileiro”, samba-enredo de 2009 – Lequinho, Junior Fionda, Gilson Bernini e Gustavo Clarão)

[N. do E. – Ciganerey já foi confirmado como novo intérprete oficial pela Mangueira]

luizito3

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