Como escrevi em artigo semana passada sobre o resgate do pensamento de Leonel Brizola, tenho ido para o trabalho pela manhã ouvindo o programa eleitoral de rádio dos candidatos – até porque continuo sem candidato a deputado estadual.

Algo que vem me chamando a atenção, especialmente por parte dos candidatos ao Legislativo, é o desconhecimento das funções exercidas por deputados federais e estaduais. Sabe-se que a maioria dos candidatos tem muito pouco tempo na propaganda eleitoral para expor suas plataformas, mas vem ficando flagrante algumas propostas que representam total desconhecimento dos limites e da atuação de um representante no Legislativo.

Exponho abaixo alguns exemplos, colhidos ao acaso e sem citar partidos, até porque este é um fenômeno que se verifica em candidatos de todas as coligações eleitorais:

1) candidato a deputado estadual tendo como mote “rever a distribuição dos royalties para a Região dos Lagos”, que é atribuição federal;

2) postulante a deputado federal prometendo lutar pela legalização das vans, matéria estadual;

3) outro, para o mesmo cargo, prometendo “lutar contra a inflação”, prerrogativa do Executivo via política econômica;

4) também candidato a estadual prometendo “dar autonomia à Guarda Municipal de Cabo Frio”, que é matéria federal;

bica02Colhi quatro exemplos mais recentes, mas se o leitor fizer o referido exercício de ver/ouvir a propaganda gratuita dos candidatos a deputado, verá vários outros casos deste desconhecimento das funções legislativas. Até deputados em exercício caem nesta tentação de prometer lutas e defesas de itens que não são de sua alçada enquanto legisladores.

Este desconhecimento também ocorre em candidaturas a cargos executivos: na última terça feira o programa da candidata Marina Silva culpou a Presidência pela queda na qualidade da educação nos estados aferida por índices recentes. Só que, eminentemente, a educação básica é de alçada dos governos estaduais e municipais, cabendo ao Governo Federal o repasse de verbas para aplicação por parte destes últimos.

O referido fenômeno também ocorre entre o eleitorado: recentemente o candidato a senador pelo Rio de Janeiro Romário (PSB) saiu em seu programa perguntando a eleitores se sabiam o que fazia um senador ou deputado. Nenhum dos entrevistados sabia. Além disso, o grosso da população costuma atribuir ao Presidente problemas que são responsabilidade do prefeito e do governador, como a própria questão da segurança pública.

Penso que isso ocorre devido à falta de interesse da população pela política no dia a dia. O eleitor médio está muito preocupado em criticar a deficiência de certos serviços e criticar a “corrupção” de forma geral, mas não se interessa, por exemplo, em acompanhar a atuação dos seus candidatos durante a legislatura – na maioria das vezes sequer se lembra em quem votou.

Por outro lado, o próprio desconhecimento dos candidatos pode ser explicado, a meu ver, pelo desvirtuamento das funções legislativas: os deputados se tornaram uma espécie de “vereadores ampliados”, mais preocupados em defender liberações de verbas e obras para localidades específicas ou, então, garantir benesses para os grupos de pressão que representam. O legislar, em si, ficou em segundo plano.

Não deixa de ser irônico, por outro lado, ver que uma destas “bancadas” de deputados, formada pelos evangélicos, entre outros interesses, possui esta visão mais ampla de “legislar”. Obviamente, este sentido aparece em questões que afetem seu grupo representado e sua doutrina, mas demonstram uma consciência de função legislativa muito mais aguda que outros setores considerados mais progressistas.

Vale lembrar, também, que ouvindo a propaganda muitas vezes penso estar acompanhando a plataforma de uma candidatura a “Pastor Chefe”, não a deputado. A inobservância do Estado laico chega a ser grosseira em certos casos, com proselitismo religioso explícito e exacerbado.

samuel-malafaia_fbsAlém do que escrevi no parágrafo acima, também há uma profusão de candidatos representando correntes evangélicas que tem como mote “a defesa da família”, entre eles, exemplificando, o irmão do Pastor Silas Malafaia (na imagem à direita). A princípio seria mais um caso de impropriedade como os que apontei no início deste artigo, mas este princípio genérico esconde algo bastante sério por trás: barrar qualquer legislação de direitos civis e individuais que contrarie a doutrina contida na Bíblia.

É um filão rendoso em termos de votos: calculo que uns 40 ou 50% dos candidatos ao Legislativo aqui no Rio de Janeiro se apresentem como “cristãos” ou representantes de seitas neopentecostais. Há pouco mais de um mês matéria da revista Carta Capital estimava que os evangélicos, das mais diversas correntes, devem eleger algo em torno de 200 deputados à Câmara Federal, o que já tornaria impossível se aprovar uma lei criminalizando a homofobia, por exemplo.

Retomando o assunto após esta breve digressão, chega a ser curioso ver candidatos a deputados se apresentando como o “candidato do Lugar X”, tendo como plataforma eleitoral apenas trazer verbas e melhorias às suas localidades de origem.

Tomemos como exemplo a Ilha do Governador, bairro onde resido. Com uma população de aproximadamente 210 mil habitantes e cerca de 170 mil eleitores, tem pelo menos dois candidatos a deputado federal, de partidos diferentes, que utilizam como bandeira de campanha “defender a Ilha do Governador”.

Noves fora a dificuldade de se eleger apenas com os votos do lugar – tendo em vista o quociente eleitoral – eu fico me perguntando o que um deputado eleito com esta plataforma poderá fazer “em benefício da Ilha” na Câmara Federal. É um caso típico de “vereador federal”, como citei acima.

Vale lembrar também que nos anos 90 o então vice-presidente de futebol do Vasco da Gama, Eurico Miranda, usou como plataforma de campanha para deputado federal a seguinte frase: “Prometo defender no Congresso os interesses do Vasco”. Foi eleito com grande margem, até porque o clube vivia ótimo momento dentro das quatro linhas.

Uso a Ilha e o Vasco como exemplos mas este é um fenômeno que se repete por todo o país. No fim, se acaba tendo uma composição de câmaras formadas por representantes de interesses paroquiais, o que, somado à fragmentação do sistema político brasileiro, acaba por gerar todo este sistema de conchavos que muitos criticam e se dizem contra.

Sem saber que este processo começa no voto.

P.S. – aqui o leitor pode ver o trecho da Constituição que trata das atribuições de deputados e senadores. Recomendo a leitura.

2 Replies to “O desconhecimento das funções políticas”

  1. Rapaz, que belo texto. Entretanto, percebi que você critica duramente os princípios que fundamentam sistemas políticos com voto distrital: a política paroquial, que prioriza o envio de recursos para a base eleitoral dos parlamentares. Não vejo nada de negativo nisso.
    Parabéns pelo texto.

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