Nessa semana inicial de Copa do Mundo, mais uma vez a arbitragem foi o centro das atenções com erros crassos e outras jogadas duvidosas. Mais uma vez, o que me irrita nessas discussões é que se esquece de discutir a inclusão do desafio por replay da Copa do Mundo.

Por mais que eu concorde com a FIFA de que o futebol é um esporte bastante popular em vários países com condições financeiras bastante distintas, de forma que é desaconselhável uma diretriz mundial, não é possível que em um torneio bilionário como a Copa do Mundo não se possa ter condições de instalar um desafio eletrônico.

Por mais que finalmente tenham sido usados sensores nas traves do gol para saber se a bola entrou ou não (e no domingo eles se provaram de bastante utilidade, marcando um gol que árbitro nenhum marcaria a olho nu no jogo entre França e Honduras), isso é muito pouco perto das possibilidades dentro de um jogo de futebol. Alias, esse recurso sequer pode ser considerado desafio pois não há qualquer revisão de jogada, apenas é um equipamento que auxilia a tomada de decisão do árbitro no momento do acontecimento, da qual não cabe discussão.

Para demonstrar as possibilidades da FIFA, e provar que ela não implanta um verdadeiro desafio eletrônico apenas porque não quer, irei discorrer brevemente sobre os sistemas já utilizados nas ligas profissionais dos Estados Unidos. Perceber-se-á que com algumas adaptações, é perfeitamente possível adotá-las na Copa.

NFL

O futebol americano foi pioneiro na adoção do replay para verificar as marcações, ainda no ano de 1999 (houve ainda uma rápida experiência em 1986).

A revisão da jogada é feita pelo próprio árbitro principal da partida em uma cabine reservada no canto do campo (foto abaixo), na qual são disponibilizados para o árbitro todos os ângulos da transmissão televisiva, com direito a “slowmotion” e “quadro a quadro” se necessário e o árbitro possui, em tese, 1 minuto para rever a jogada e tomar sua decisão.

Porém, como não há nenhuma marcação oficial desses 60 segundos, na prática o árbitro acaba demorando o tempo que achar necessário e não costuma haver reclamações, já que é pensamento geral que é melhor demorar o tempo necessário, mas que seja tomada a decisão certa. Isso é especialmente importante em certas jogadas confusas que a dúvida paira sobre 2 ou 3 ações em sequência. Porém, mesmo que tenha havido 2 fatos polêmicos, só é possível desafiar 1 fato por vez e a mesma jogada não pode passar por 2 revisões diferentes.

O árbitro só poderá modificar a marcação de campo caso tenha “evidência visual incontroversa”, ou seja, na dúvida permanece a primeira decisão.

Todos os estádios da liga contam com uma cabine de “gerenciamento de replay”, costumeiramente em um local alto e com visão do gramado, na qual passam as imagens todas as câmeras e que conta com um árbitro assistente comandando-a. Esse árbitro tem a função primordial de indicar ao árbitro da partida os melhores ângulos para elucidação da jogada e acionar a revisão em determinados momentos (explico melhor à frente).

Cada time tem direito de solicitar dois desafios por jogo, não importando seu resultado final. Caso a jogada seja mantida, o time além de gastar um dos desafios perde um pedido de tempo (cada time tem direito a três paradas a cada metade do jogo). Por isso um time só pode solicitar desafio se ainda tiver um pedido de tempo disponível. Assim que se inicia a jogada seguinte, não há mais possibilidade de se desafiar a jogada anterior. Também não é permitido aos times solicitarem desafio nos dois últimos minutos de jogo de cada metade da partida.

Aqui entra a função de acionamento de revisão pelo árbitro assistente dentro da cabine de replay. Ele é que é o responsável para acionar a revisão eletrônica quando pelo replay acreditar que a marcação do árbitro foi incorreta dentro desses dois minutos finais. Além disso, após mudança recente das regras, o árbitro assistente também poderá solicitar a revisão a qualquer momento do jogo em jogadas que resultaram em mudança da posse de bola (isso no futebol americano é bastante importante) ou em alteração no placar da partida. Os desafios feitos pelo árbitro assistente são “revisões oficiais” e nada alteram a situação da quantidade de desafios ou de pedidos de tempo dos times.

Apenas alguns determinados tipos de jogada são passíveis de revisão e, por mais que a lista, já extensa, cada vez mais aumente, ainda há alguns eventos capitais para os quais não pode ser solicitado desafio e isso causa várias discussões. Especialmente quando se refere à marcação ou não de faltas resultantes de contato ilegal entre jogadores que inclusive decidiu o título da última jogada da final da NFC deste ano.

No replay, o jogador do Seattle claramente agarrou o recebedor do 49ers ilegalmente no último lance da partida e a falta não foi marcada. Caso fosse, muito mal comparando com o futebol, 49ers teria um pênalti aos 48min do 2° tempo para ganhar a partida. A diferença é que nesse caso sequer foi empate, Seahawks estava na frente do placar.

Porém, para mim, o maior defeito desse sistema da NFL é que quem dá a decisão final em campo é o mesmo árbitro principal que oficializou a marcação de campo. As vezes ocorre que a imagem em slowmotion é claríssima em mostrar o erro da marcação e não obstante, por teimosia, a marcação é mantida pela mesma pessoa que fez a primeira marcação.

O caso mais famoso de erro claro que não foi revertido foi o confronto Packers e Seahawks em 2012, que no último lance da partida, mais uma vez decidiu a partida a favor do Seahawks. Sobre esse erro, comentei bastante na época nesta coluna.

MLB

No baseball, a bancada anti-tecnologia era tão grande e barulhenta como no futebol. Sempre houve uma grande resistência a introdução da revisão das jogadas, seja via replay ou qualquer outro sistema eletrônico.

Até que em 2008, no clássico entre os dois times de New York (Yankees e Mets) dentro do famoso Sunday Night Baseball (o jogo de domingo a noite transmitido pela ESPN para todos os Estados Unidos), houve uma daquelas chamadas “absurdas”: uma bola rebatida para fora do estádio (o chamado home-run, que dá pontos automáticos) foi considerada pelos árbitros como rebatida para área inválida.

Porém não só a bola bateu no ferro que delimita a área (se bate é válida) como ela deixou uma marca branca gigante na tinta preta da barra, incansavelmente mostrada pela ESPN por todo o jogo. Apesar disso, a marcação de bola inválida foi mantida.

A partir daí a pressão para a adoção do replay cresceu absurdamente e ao final da temporada foi aprovada uma revisão bastante limitada como experimento. Essa revisão só seria acionada pelos próprios árbitros, sem envolvimento dos times e apenas envolveria chamadas de home-run.

Mais uma vez, mal comparando com o futebol, é como se apenas pudesse ser revisto se a bola entrou no gol ou não.

Apesar das limitações, o sistema funcionou muito bem e foi mantido. Sua atuação mais famosa seu deu no terceiro jogo da World Series entre Yankees e Phillies de 2009, quando houve no jogo 3 a marcação de um home-run após uma revisão que modificou todo o decorrer da série final.

Após o sucesso comprovado, a pressão para a ampliação da revisão e a introdução dos desafios pelos times ficou gigantesca. Depois de longas negociações entre a MLB, os jogadores e os árbitros, uma sistemática completamente nova e bastante ampliada foi introduzida neste ano.

A novidade é que o baseball é o primeiro esporte que não apenas usa uma segunda instância para decidir revisões (ou seja, quem decide a revisão não está envolvido diretamente na arbitragem do jogo) como esta segunda instância não fica no local do jogo. Em algumas situações pode estar a mais de 4.000km de distância.

A MLB contratou 7 árbitros bastante experientes para ficarem de plantão em sua sede, que fica em New York, na sala que comanda todas as transmissões da liga e são eles, dentro da sala de comando (muito parecido com o IBC da FIFA até), que visualizam todos os replays possíveis e dão a decisão final.

Uma vez solicitada a revisão, seja pelos próprios árbitros seja pelo desafio de um dos times, os árbitros de campo nada mais podem resolver e a “jurisdição” sobre a jogada e todos os seus efeitos são completamente repassados para a sala de comando em New York. Os árbitros do jogo apenas vão para um canto do campo, recebem fones de ouvido com contato com a sala de comando e através deles recebem a decisão vinda de New York (foto abaixo) cabendo-os apenas a execução da decisão.

Nas seis primeiras entradas (a forma como a partida de baseball é dividida, cada jogo é composto por 9 entradas) cada time tem direito a um desafio. Caso esse desafio seja certo, a equipe ganha direito a um segundo desafio. Mas mesmo que esse segundo desafio seja correto, a equipe não pode ter direito a um terceiro desafio.

Nas três últimas entradas, além das equipes poderem continuar a usar seu desafio caso ainda o tenham, o árbitro-chefe (são 4 árbitros em cada jogo, 6 em jogos de playoffs) pode solicitar a revisão de qualquer jogada que possa ser revista quantas vezes achar necessário, desde que o time desfavorecido pela decisão inicial já tenha perdido o direito ao desafio.

O árbitro-chefe também pode pedir a revisão, independente de haver ou não direito de desafio por parte dos times, a qualquer momento do jogo em casos de marcação ou não marcação de home-run ou de colisões ilegais no home plate (regra nova da MLB que estreou neste ano).

Todos os desafios e pedidos de revisão precisam ser solicitados antes do arremesso seguinte efetuado pelo arremessador e as decisões, tal qual na NFL, só são revertidas se houver “evidência indisputável no vídeo”.

Outra diferença quanto a NFL é que na MLB no mesmo desafio podem ser discutidos todos os fatos passíveis de revisão da jogada no mesmo desafio e o desafio só será considerado errado se nenhuma decisão for modificada. Porém os árbitros não podem modificar uma decisão ‘não desafiada’ que tenha ocorrido na mesma jogada de uma decisão desafiada.

O espectro de jogadas passíveis de revisão é bastante amplo e praticamente abrange todos os tipos de decisão objetiva. As dúvidas meramente interpretativas, de modo geral, não são passíveis de revisão.

Não há um tempo limite para decisão. A MLB tem uma meta que as revisões durem, em média, 1 minuto, mas até o momento não está impondo qualquer aceleração ao processo, tendo inclusive havido um desafio de contagem (sempre complicado) que demorou 15 minutos para ser decidido em New York. 90% dos desafios estão sendo resolvidos em menos de 90 segundos.

A grande dúvida é quanto a um possível engarrafamento de revisões. Como as revisões de todos os jogos são decididas no mesmo local, há um receio de que em algum momento ocorra um “engarrafamento” de revisões simultâneas, especialmente em um esporte que tem 15 jogos todos os dias e que costumeiramente mais de 10 deles estão ocorrendo simultaneamente no horário compreendido entre as 22h e 22h30 da costa leste americana. Porém já houve um momento que 2 desafios simultâneos ocorreram e ambos foram decididos dentro da janela de 90 segundos.

O sistema está sendo usado com bastante frequência e tem sido um sucesso absoluto. A revisão já foi decisiva para uma mudança no resultado final da partida umas 10 vezes neste início de temporada. Estou bastante curioso para ver essa nova regra de revisões em vigor pela primeira vez em playoffs.

Alguma versão de revisão parecida com a do baseball pode ser feita pela FIFA sem qualquer investimento para a Copa do Mundo. A “sala de comandos” na qual passa todos os ângulos dos jogos já existe dentro do Centro Internacional de Transmissões (IBC), o comitê de revisão permanente de arbitragem também já existe há muito tempo na Copa, inclusive com reuniões diárias.

Alias, nesta Copa em terras brasileiras a distância entre o Comitê, instalado no Maracanã, e o Centro de Transmissões no Riocentro, na Barra da Tijuca, é de meros 20km.

Basta deslocar o comitê para dentro do IBC e criar uma comunicação direta de lá para o árbitro da partida (muito fácil com a tecnologia atual, convenhamos). Como na Copa só há um jogo de cada vez (ou dois na última rodada da 1ª fase), nem o risco de “engarrafamento” haverá.

NHL

Já no hóquei sobre o gelo, mais dinâmico e bem mais parecido com o futebol do que os dois exemplos acima, o sistema de revisão é bem mais restrito e apenas abrange as jogadas de gol.

Assim como na NFL, há um árbitro o “vídeo goal judge” que fica em uma sala fora do campo com acesso aos replays para determinar se o puck (ou disco, como preferirem) entrou ou não e, se caso tenha entrado, se houve alguma outra irregularidade na jogada que anule o gol feito.

Nem todas as arenas tem esta sala. Para as arenas sem este equipamento, a revisão é feita em uma sala de comando situada na sede da NHL em Toronto (Canadá).

Não há desafios e todos os gols são passíveis de revisão pelo “vídeo goal judge”, inclusive ele pode parar o jogo caso acredite que houve um gol não marcado. A comunicação do inicio do processo de revisão para o árbitro principal da partida é feita através de um relógio que vibra quando solicitado pelo “vídeo goal judge”.

Há um apelo para que este processo de revisão seja ampliado para faltas que resultem em expulsões temporárias de jogadores (comuns no violento hóquei sobre o gelo), mas até agora nada foi feito.

NBA

Após alguma controvérsia e um uso tímido demais da revisão eletrônica, a NBA também expandiu seu uso do replay instantâneo em 2010 e 2011, ainda sim o sistema é bastante polêmico e extremamente frágil, sendo alvo de constantes críticas. Por isso, não irei me alongar na explicação.

Na NBA não há o desafio, apenas os próprios árbitros podem decidir quando usarão o recurso eletrônico. Também não há nenhum tipo de árbitro assistente de vídeo: quem verifica o replay é o próprio árbitro na beira do campo de acordo com o ângulo que ele achar que deve.

Para complicar de vez, o jogo só pode ser paralisado para o uso do replay nos dois minutos finais de jogo. Jogadas que podem esperar uma parada do jogo para serem revistas sem modificar o fluxo de jogo, podem ser revistas antes dos dois minutos (basicamente, apenas a definição se a cesta foi de 2 ou 3 pontos).

Por isso, apesar da quantidade de jogadas passíveis de revisão ser bastante razoável, por esta última limitação, ela quase não é utilizada. A situação ainda fica mais esdrúxula porque os árbitros da NBA são conhecidos por “deixar os jogadores se entenderem”  e sempre se abster de tomar decisões, especialmente nos minutos finais.

Se o futebol pode aprender algo com a revisão da NBA, é simplesmente o que não fazer. O processo inspira “tanta confiança” que todas as poucas vezes que o vi sendo usado, ele apenas alimentou ainda mais as discussões com a arbitragem, ao invés do efeito contrário esperado.

Apesar de tudo relatado, mesmo para um jogo dinâmico como o futebol, o custo de uma revisão (a interrupção da partida) é muito menor do que o benefício da certeza da decisão correta ser tomada, como o faz a NHL. Só é necessário o cuidado para que não haja muitas paralisações desnecessárias. Como a NFL já demonstrou, basta que se imponha limites na quantidade de revisões possíveis, se delimite corretamente os fatos passíveis de revisão e que se incluam penalidades para desafios pedidos de forma errada para que se controlem essas paralisações excessivas.

Ao menos para a Copa do Mundo de futebol, a MLB já demonstrou para a dona FIFA que as condições humanas e tecnológicas para a implantação da revisão já existem atualmente.

Fotos: Wikipedia