No dia 6 de janeiro de 1954, o jornal O Globo publicou o seguinte editorial:
 
A princípio foi moda, e talvez ainda o seja, considerar a macumba como uma manifestação pitoresca da cultura popular, à qual se levam turistas e visitantes ilustres, e que era objeto de reportagens e notícias nas revistas e nos jornais, bem como de romantizações literárias. Isso deu ao culto bárbaro de orixás e babalaôs um prestígio que de outro modo não poderia ter e o fez propagar-se das camadas menos cultas da população para a classe média e empolgar até pessoas das próprias elites. É essa infecção que queremos apontar com alarme. É essa traição que queremos denunciar com veêmencia. É preciso que se diga e que se proclame que a macumba, de origem africana, por mais que apresente interesse pitoresco para os artistas, por mais que seja um assunto digno para o sociólogo, constitui manifestação de uma forma primitiva e atrasada da civilização e a sua exteriorização e desenvolvimento são fatos desalentadores e humilhantes para nossos foros de povo culto e civilizado. Tudo isso indica a necessidade de uma campanha educativa para a redução desses focos de ignorância e de desequilíbrio mental, com que se vêm conspurcando a pureza e a sublimidade do sentimento religioso.”
 
O editorial do jornal, desde sempre identificado com a visão das classes dominantes, não poderia ser mais claro: o Brasil precisa se livrar do primitivismo bárbaro da herança africana, extirpar as religiões que misturam ignorância e desequilíbrio mental e fazer valer os princípios  da civilização ocidental. Às elites, cabe o papel regenerador que nos afirmará como um povo culto e civilizado. 

[Este arrazoado todo de O Globo, diga-se, não foi propagado no século XIX. Foi escrito na segunda metade do século XX, quase setenta anos depois da Lei Áurea, nove anos depois do encerramento da guerra contra o Nazi-Fascismo e cinco anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos.]
 
O editorial não surpreende. Alguns governos brasileiros, com apoio de parte dos segmentos mais favorecidos e de alguns intelectuais que abraçaram a eugenia, tentaram apagar, nos primeiros anos do pós-abolição, a presença do negro na nossa história. Este projeto se manifestou do ponto de vista físico e cultural. Fisicamente o negro sucumbiria ao branqueamento racial promovido pela imigração subvencionada de europeus, capaz de limpar a raça em algumas gerações. Tal projeto também se manifestou na tentativa sistemática de eliminar as formas de aproximação com o mundo e elaboração de práticas cotidianas (jeitos de cantar, rezar, comer, louvar os ancestrais, festejar, lidar com a natureza, etc.) produzidas pelos descendentes de africanos, desqualificando como barbárie e criminalizando como delitos contra a ordem seus sistemas de organização comunitária e invenção da vida.
 
Se hoje não temos mais a pregação explícita de uma política de branqueamento, ainda estamos distantes de superar o que Joaquim Nabuco chamou de “obra da escravidão”. Há um senhor de engenho morando em cada brasileiro, adormecido. Vez por outra ele acorda, diz que está presente, se manifesta e adormece de novo, em sono leve.
 
Há um senhor de engenho nos espreitando nos elevadores sociais e de serviço; nos apartamentos com dependências de empregadas; no bacharelismo imperial dos doutores que ostentam garbosamente o título; na elevação do tom de voz e na postura senhorial do sabe com quem você está falando? ; no deslumbre das elites que buscam civilizar os filhos em intercâmbios no exterior; na cruzada evangélica contra a Umbanda e o Candomblé; na folclorização pitoresca – quase tão nociva quanto a demonização – destas religiosidades; nos currículos escolares fundamentados em parâmetros europeus, onde índios e negros entram como apêndices do projeto civilizacional predatório e catequista do Velho Mundo; nos gritos do diretor de televisão que chama um auxíliar de preto fedorento; no chiste do sujeito que acha que não é racista e chama o outro de macaco; no pedantismo de certa intelectualidade versada na bagagem cultural produzida pelo ocidente e refratária aos saberes oriundos das praias africanas e florestas brasileiras.
 
E já que é para exemplificar as práticas senhoriais, lembremos que recentemente dois clubes de granfinos do Rio de Janeiro, o Paysandu e o Caiçaras, proibiram a entrada em suas dependências de babás negras. A razão explicitada para as barrações foi cristalina: elas não vestiam uniformes brancos que as identificassem. Em São Paulo, com seus contrastes mirabolantes e favelas incendiadas à socapa, é obrigatório o branco para as babás que cuidam dos filhos das sinhás nos parquinhos dos clubes Pinheiros, Paulistano e Paineiras. Os seguranças do shopping São Conrado Fashion Mall, o preferido da classe AAA carioca, têm ordens para abordar as babás que não vestem o uniforme distintivo da condição.

A roupa exigida às babás, uma das faces mais reveladoras de um Brasil que insiste em mirar o mundo do alpendre da Casa Grande do engenho,  guarda, por outro lado, um contraponto cheio de significados. É inteiramente branco, afinal, o traje consagrado ao maior dos orixás, Obatalá, dono do poder da criação,  portador do opaxorô, o cajado misterioso dos mundos.

As sinhazinhas e sinhozinhos em flor, os novos senhores de engenho, os seus capitães do mato e feitores, nem desconfiam que no contraste entre o pano branco e a pele negra se manifesta, insuperável e silenciosa, a força ancestral da majestade do Pai Maior; aquela que cruzou a calunga grande para amenizar a dor e nos civilizar um dia.

Abraços

3 Replies to “PANO BRANCO SOBRE A PELE PRETA”

  1. Acho exagerada a opinião do autor. Não vejo a condição do negro entregue a essa sorte que o autor diagnostica. Mas não me vejo em condições de debater. Sou branco, católico, nunca fui rico, mas também nunca fui pobre. Não tenho como saber-me negro. Além disso, não acho que eu tenha esse senhor de engenho dentro de mim, mas isso não significa que todo mundo seja assim.

    Espero, porém, com a devida venia do autor, estar certo, a despeito do que o sr. escreveu. Eu não quero crer que a sociedade seja assim e que o que ainda acontece de ruim seja apenas caso isolado.

  2. Caro Simas, tenho o enorme prazer de seguir seu blog e venho te dizer que ele muito me inspira pelo tanto de sabedoria que espalha. Já tomei algumas de suas postagens emprestadas pra publicar no blog que desenvolvo com minha esposa e faço aqui o convite pra que você dê uma visitada quando e se quiser. O endereço é:

    http://konazrt-konect.blogspot.com.br/

    receba meu abraço afetuoso e os parabéns pelo lindo trabalho que você faz por nossa cultura!

    fred maia

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