Nesta segunda feira, a coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro, traz a primeira de duas colunas que também visam analisar o balanço patrimonial do Flamengo, alvo de post na última quinta feira. A segunda parte será publicada ainda esta semana.

Como o leitor perceberá, há algumas conclusões ligeiramente diferentes das minhas, o que é normal dado os problemas que o balanço tem.

Balanço Patrimonial do Flamengo – Em Meio às Velhas Malandragens, Surgem Boas Notícias (Parte I)

A primeira coisa que me chamou atenção logo após a divulgação do balanço patrimonial do Flamengo foi o abismo existente entre o que as notícias destacavam e o que a frieza dos números revelava. Nenhum cronista esportivo teve sequer a curiosidade de caminhar alguns passos até a editoria de Economia e perguntar a seus colegas algumas regrinhas básicas da contabilidade. Fomos inundados de abobrinhas do tipo “passivo do Flamengo cresce 170%” ou “dívida passa de x milhões de reais” e outras informações que não tem qualquer relevância quando descontextualizadas. Foi tanta bobagem que cheguei a desconfiar que não era só desconhecimento, era má-fé mesmo.

Os dias que antecederam a divulgação do balanço foram de muita expectativa entre os sócios e torcedores do clube. Todo mundo – eu, inclusive – esperando um cenário de terra arrasada, um rombo financeiro do tamanho do ex-Maracanã. E no final não foi bem assim.

Primeiro, ninguém entendeu direito. Eu não sou auditor ou contabilista, mas já analisei superficialmente dezenas de balanços patrimoniais. Digamos que eu sei “ler” um balanço como um texto em inglês: me escapa um detalhe ou outro, mas no contexto geral eu consigo compreender. Mas o balanço do Flamengo está sendo um desafio, porque tem muita coisa que não bate – como o próprio Editor Chefe já havia chamado a atenção em seu artigo.

Segundo, havia um indisfarçável desejo de que tudo desse errado, para confirmar a tese de que a administração atual fracassa em todos os campos. A torcida do Flamengo, com justa razão, anda completamente irritada com a condição atual do time, com a sensação de inoperância da direção, com a falta de um comando firme na gestão do futebol. O balanço patrimonial seria a cereja do bolo, a comprovação definitiva da derrocada de Patricia Amorim e sua trupe.

Os dias foram passando, mais gente foi lendo e comentando, já dá para eu me arriscar nas minhas nada humildes impressões.

É claro que não vou falar sobre tudo. É muita coisa, muita mesmo. Vou pinçar algumas coisas que julgo mais relevantes, principalmente itens que foram pouco comentadas. Para facilitar, vou dividir em tópicos.

I – A Dívida

Desde que eu me entendo por gente o tema da dívida inaugura qualquer análise sobre o Flamengo fora das quatro linhas. Só um negócio imune aos riscos de falência pode sobreviver com tamanho descaso em relação ao cumprimento de suas obrigações de rotina.

Rumores anteriores à publicação do balanço sinalizavam que a dívida teria chegado à casa do meio bilhão de reais.

Aqui, cabe uma pequena ressalva. Endividamento é algo temerário na vida dos cidadãos, mas nas pessoas jurídicas é algo corriqueiro e em muitos casos até saudável, como seria o caso, por exemplo, de um financiamento para construção de um estádio. Portanto, não se deve, a priori, satanizar a expressão “dívida”, sem saber a destinação dos recursos captados de terceiros.

Podem fechar o parênteses. Dívida, no Flamengo, quase sempre é de baixa qualidade (impostos em atraso, empréstimos para saldar despesas correntes, condenações judiciais). Portanto, é um tema que deve estar na ordem do dia de qualquer gestor do clube.

Para surpresa geral, o endividamento geral do clube cresceu apenas 4% de um ano para o outro. A rigor, como a receita cresceu quase 50%, em uma instituição gerida com responsabilidade a dívida teria que ter diminuído, pois parte do acréscimo das receitas deveria ser direcionado para a amortização das dívidas. Como isso não aconteceu, é simples concluir que a diretoria do Flamengo em 2011 reproduziu a marca registrada do clube, que é a irresponsabilidade no trato dessa questão.

Apesar disso, não houve acréscimo de “dívida nova”. O mero efeito inercial dos juros deveria provocar um aumento da dívida de, no mínimo, 12% (a rigor, bem mais). Como isso não aconteceu, dá para concluir que algum nível de amortização houve.  O melhor de tudo: ao final de 2012, se a dívida voltar a crescer, não vai dar para sacar do bolso a velha desculpa de que são atos de gestões passadas. Pela primeira vez em muitos anos a dívida apresenta um viés de baixa. Se aumentar acima da taxa de juros, já sabemos de quem será a culpa.

II – BMG

Causou estranheza a muitos o fato do BMG, patrocinador do clube, ter aumentado tanto o seu crédito. Adeptos de teorias da conspiração estão sempre prontos para encontrar chifres em cavalos.

Para mim, é bem mais simples. Basta olhar a movimentação das dívidas bancárias do clube.

Em 2010 o Flamengo devia R$ 8 milhões ao BMG e R$ 33 milhões ao Bicbanco (fruto da política de adiantamento das cotas de TV de anos futuros), totalizando R$ 41 milhões. Em 2011, o Flamengo devia R$ 9 milhões ao Bicbanco e R$ 40 milhões, ou seja, R$ 49 milhões no total.

Parece óbvio que o Flamengo se valeu de uma velha tática de endividados, que pagam o cheque especial do Itaú com o cheque especial do Bradesco. O Flamengo pegou dinheiro no BMG e saldou a maior parte de seus compromissos no Bicbanco. A diferença entre o somatório de um ano para o outro é de um pouco menos de 20%, ou seja, mero efeito dos juros.

Se financeiramente foi bom negócio já não sei dizer. Mas não há nada de estranho e nem mesmo dá para inferir de que se trata de dívida nova.

III – Esqueletos

Aqui moram as velhas malandragens a que me refiro no título do artigo. Os esqueletos rubro-negros escondidos no armário são gigantescos e a auditoria não se cansa de alertar sobre os mesmos, sem que se tome qualquer providência.

O clube foi multado em R$ 33 milhões pelo Banco Central, por remessa de divisas ilegais para o exterior. Como o clube apresentou um recurso a essa decisão, não achou importante registrar esse fato no balanço, nem se preparar para pagar algo caso o recurso não seja acolhido. É muita fé no recurso!

O clube também é réu em uma ação movida pelo Consórcio Flamengo Plaza, que iria erguer um shopping na Gávea. Em 2009 o clube nomeou uma comissão de notáveis juristas do Conselho Deliberativo, que concluíram que o Flamengo não perderia essa ação de jeito nenhum. Portanto, a provisão para pagamento dessa dívida foi arrancada do balanço e hoje já nem se sabe mais quanto se estaria devendo. É muita fé na comissão de juristas!

Esses dois esqueletos são velhos. O primeiro, se não me falha a memória, vem dos tempos do Edmundo Santos Silva. O segundo, esse eu tenho certeza, envolve um outro Edmundo, o Animal, que teve uma breve passagem pelo clube nos tempos de Kleber Leite, que pegou um adiantamento com essa empresa de shoppings para pagar o passe do notório vascaíno.

Mas Patricia Amorim e Michel Levy acabam de nos brindar com um terceiro esqueleto, novinho em folha.

Em 2010 a auditoria já havia puxado a orelha deles. Um das manipulações mais clássicas de qualquer balanço é não fazer a provisão adequada para pagamentos futuros.

Sempre que uma instituição é ré em processos judiciais, é necessário esclarecer qual o tamanho da possível dívida. Há regras claras sobre isso e os advogados devem informar o valor discutido nessas causas, atribuindo uma possibilidade de perda. Tudo que a empresa deve perder (ou pode perder), deve ser registrado no balanço.

Em 2010 os advogados do Flamengo não informaram adequadamente. Seria o caso, óbvio, de destituí-los, o que não deve ter acontecido, porque em 2011 o fenômeno se repetiu.

Mas em 2010, pelo menos, o Flamengo teve o cuidado de lançar mais de R$ 11 milhões para essas prováveis ou possíveis perdas. O número já era inconsistente, porque não fora chancelado pelos advogados, mas no mínimo já sabíamos que do dinheiro do clube, R$ 11 milhões estavam reservados para os credores judiciais.

E em 2011? ZERO!!!

Os R$ 11,5 milhões evaporaram. O Flamengo, que já confiava cegamente em seu recurso no Bacen, que já confiava cegamente no parecer de seus juristas, agora confia cegamente que NUNCA MAIS vai ser condenado a pagar a alguém na Justiça.

O time pode perder em campo. Mas nos tribunais o Flamengo declara que, doravante, é invencível.

IV – Esquisitices

Na primeira aula de contabilidade para leigos o professor desenha uma letra “T” grandona na lousa e explica que de um lado fica o ativo e do outro o passivo, mas a soma de ambos é sempre igual (daí a inutilidade de manchetes do tipo “passivo do CRF cresce Xmil %)”.

Do lado esquerdo ficam as contas da empresa que compõem o ativo. Do direito, o passivo e o patrimônio líquido. A grosso modo, tudo que representa um DIREITO ou um RECURSO da empresa fica no lado do ativo e tudo que representa uma OBRIGAÇÃO vai parar no passivo. Além disso, os registros de curto prazo (vale dizer, tudo que ocorrerá no ano seguinte) são agrupados em um item chamado “circulante” e os demais são registros de longo prazo (insisto, estão previstos para acontecerem para além de 12 meses).

É assim no mundo inteiro desde que o Frei Luca Paccioli inventou a contabilidade, um pouco antes de Cristóvão Colombo descobrir a América.

Pena que o Frei não foi eterno para conhecer de perto a criatividade rubro-negra. As futuras receitas do contrato de televisionamento foram parar no passivo, em rubricas incomuns como “receitas a realizar” e “receitas diferidas”. Rubricas que, segundo me explicaram, estão previstas nos manuais de contabilidade.

Só que o somatório não bate com nada. As “receitas a realizar” estão no passivo circulante, portanto seriam a contrapartida do que o Flamengo previu receber em 2012. Mas elas somam R$ 114 milhões, enquanto o Flamengo diz que só vai receber R$ 109 milhões, sendo que, da TV, apenas R$ 69 milhões.

E ainda fica pior. Porque para os anos seguintes, o Flamengo revela que receberá R$ 269 milhões. Só que a sua suposta contrapartida, as tais “receitas diferidas”, seriam de R$ 281 milhões. Deve haver uma explicação para isso tudo. Só que eu simplesmente não sei qual é. Nem eu, nem o Editor Chefe, nem ninguém a quem perguntei – gente acostumada a ler balanços. Fico à espera de um leitor craque no tema que venha nos salvar.

E quem achou que as esquisitices acabavam aí, ledo engano, elas persistem.

Lembram que eu disse que o Flamengo ZEROU a conta de provisão para contingências? Pois é, mas tem uma sutileza.

A auditoria esclarece que o saldo de “contas a pagar” no passivo circulante contém uma provisão para pagamento de contingências.

Até aí, tudo certo. Uma provisão é uma cautela, uma reserva que se faz. Mas quando a ação terminou e a instituição não tem mais nada a fazer a não ser esperar a conclusão dos trâmites judiciais para pagar e isso vai ocorrer em menos de 12 meses, o correto é fazer exatamente assim, movimentar o dinheiro da provisão para o “contas a pagar”, alertando que aquele dinheiro, que já estava reservado, vai sair do caixa em breve.

Os problemas começam agora.

Primeiro, a auditoria informa que essas obrigações somam R$ 26 milhões. Mas que beleza! O Flamengo em 2010 disse que tinha “apenas” R$ 11 milhões de débitos judiciais e agora confessa que em 2012 vai pagar R$ 26 milhões. E o segundo eu já disse antes: e no longo prazo, nada? Uma vez pagos esses R$ 26 milhões acabou o problema para sempre?

Deve ter muito mais esquisitice, se a gente seguir procurando. Vou parar por aqui, para não aborrecer ao leitor e a mim próprio.

V – Um Time Abandonado pela Torcida

Um dado triste do balanço e que nada (ou, vá lá, pouco) tem a ver com a gestão do clube.

Desportivamente falando, o clube teve em 2011 um ano razoável. Foi campeão carioca, esteve sempre nas primeiras posições do campeonato brasileiro, perdeu muito pouco, fez uma contratação de um jogador badalado. Apesar disso, a receita de bilheteria foi ainda menor do que a de 2010, um ano terrível.

Em termos percentuais, a venda de ingressos do Flamengo representava, em 2007, 16% da receita. Em 2011 caímos para a metade, apenas 8%. A comparação é válida porque são anos com desempenho esportivo bem semelhante (campeão estadual e classificação para a Libertadores).

Ok, a receita aumentou, isso altera os percentuais. Mas os números absolutos não melhoram o panorama. Em 2008 o clube arrecadou R$ 21 milhões com a venda de ingressos, em 2011 apenas 2/3 disso, meros R$ 14 milhões.

Reconheço que o Maracanã faz falta, que o time não empolgava tanto, posso reconhecer tantas e tantas desculpas. Mas para quem se ufana a todo o momento de ter a maior torcida do país e que é capaz de fazer a diferença, perder tanto público é inaceitável. Lentamente, a torcida parece estar se divorciando da arquibancada. Isso não é bom.

Essa questão dos ingressos, aliás, é algo a ser pensado pelo futebol brasileiro, de modo global. Recentemente li um estudo da Price Waterhouse mostrando que a média de participação de ingressos na receita final dos clubes é de 32% na América Latina (na Europa é de impressionantes 51%). Mesmo aqui do lado, na Argentina, os hermanos colhem 18% de suas receitas diretamente nas bilheterias. E aqui no Brasil, ridículos 7%. Meia-entrada, falta de cerveja (a venda dos bares entra nessa conta), violência, ingressos baratos, tudo vai jogando contra.

Independente de o Flamengo estar próximo à média nacional, não dá para aceitar uma queda tão acentuada de público e renda. A direção precisa agir.

No segundo texto da série passaremos às boas notícias trazidas pelas demonstrações contábeis. Até lá.

2 Replies to “Bissexta – "Balanço Patrimonial do Flamengo: Em Meio às Velhas Malandragens, Surgem Boas Notícias (Parte I)"”

  1. Desde já no aguardo da segunda parte desta excelente análise.

    Sobre a queda de público, concordo plenamente que a diretoria teria que agir e encontrar formas de estimular o torcedor a ir ao estádio. O problema é que ela, resumindo, é incompetente demais pra isso.

    No mais, a meu ver, a ausência do Maracanã tem um peso maior nesses números do que aquele atribuído pelo colunista. O Engenhão, além de ter a metade da capacidade, não é benquisto pela torcida. Não cheguei a ver jogos no estádio (moro em SC) mas segundo relatos de amigos no RJ, trata-se de um estádio mal planejado, com acústica ruim e visualização do campo distante, um entorno perigoso e localização que prejudica principalmente quem utiliza transporte coletivo.

    Além disso, 2007 foi ano que mostrou claramente a correlação entre a postura do time e a a lotação das arquibancadas. Era um Flamengo que, ao menos em casa, estava ao gosto do flamenguista. Dentro do Maracanã, passava ao torcedor a certeza que não entraria sem lutar, sem suar sangue pra ganhar. Uma verdadeira antítese do time de 2011 e, infelizmente, também de 2012.

    Enfim, torçamos para que dias melhores venham no campo de jogo e no da contabilidade.

Comments are closed.