O tema dos direitos televisivos dos próximos três Campeonatos Brasileiros de futebol já esteve em quatro ocasiões aqui neste Ouro de Tolo.

Comprovando o que tinha antecipado aqui, os principais clubes brasileiros optaram por entregar à Rede Globo o monopólio e o comando total e absoluto do futebol brasileiro nos próximos três anos. De acordo com notícias veiculadas pela imprensa ontem a emissora terá o direito inclusive de escolher a fórmula de disputa e a tabela da competição. Inclusive fala-se na criação de uma “Liga Nacional” a partir do ano que vem a fim de driblar o Estatuto do Torcedor, sem rebaixamento e com a fórmula de disputa chamada de “mata mata”. Tal iniciativa seria comandada pela CBF e pelo presidente do Corínthians – ou seja, o leitor não se espante se o clube paulista virar uma espécie de “Beija Flor” nos próximos anos…

Pode-se dizer que o futebol brasileiro passará a ter nome e sobrenome: Marcelo Campos Pinto, executivo da Globo Esportes para o setor há alguns anos. Veremos uma ampliação da estratégia desenvolvida pela emissora sob sua gestão, ou seja, a do “ganha perde”: somente a Globo pode ganhar, todos os demais atores do processo tem de perder. Um bom exemplo é a não veiculação de patrocínios das equipes que não sejam anunciantes da emissora, como comentei há mais de um ano – e continua atual.

No fim das contas os grandes derrotados foram os amantes e os consumidores de futebol, que cada vez mais serão tratados como gado de corte pelos clubes, a CBF e a televisão. Se já está complicado para quem trabalha acompanhar partidas às 22 horas como é hoje, ficará quase impossível no provável novo horário das 22:45, como desejado pela emissora. Ir aos estádios, então, nem pensar.

Mas hoje este não é o tema principal. Quero estabelecer um debate sobre algo que em Economia se chama “prioridades de dispêndio”.

O noticiário informou que anteontem, terça, o Flamengo assinou com a emissora carioca por cerca de R$ 120 milhões anuais para o conjunto das diferentes mídias – tv aberta, fechada, pay per view, venda internacional, internet e telefonia. Não entrarei aqui no mérito do valor – já expus o que penso – mas a primeira notícia que surgiu foi de que o clube utilizaria R$ 35 milhões deste valor para repatriar o atacante Vágner Love, que esteve por empréstimo no primeiro semestre do ano passado.

Lembro aos leitores deste espaço que o clube precisa de R$ 25 milhões para concluir seu Centro de Treinamento, de forma a propiciar uma estrutura adequada para proporcionar a seus atletas, revelar novos talentos e desenvolver adequadamente suas equipes. Em que pese a melhora havida nos últimos anos, a estrutura do “Mais Querido” ainda está atrás de clubes de bem menor envergadura, como por exemplo o Atlético-PR.

Ou seja, temos o velho duelo entre despesas de curto e de longo prazo. Trazer um jogador caro – e de retorno incerto – ou construir um Centro de Treinamento que irá moldar futuros craques? Estabelecer uma ação midiática – que pode ajudar na reeleição da tual presidente em 2012 – ou deixar um legado para o futuro do clube?

A decisão parece óbvia, mas não é para o mandatário em geral – há exceções. Especialmente quando os gestores não são responsabilizados pessoalmente pelas decisões no comando da instituição, como é o caso dos clubes brasileiros – um absurdo da nova versão da Lei que rege o esporte. Mais importante é buscar a reeleição no cargo, e esta é uma prática que não é exclusividade da atual mandatária; vem de longo tempo.

Outro bom exemplo desta postura é a gestão pública. Sabe-se que investimentos em redes de água e esgotos tem o poder de prevenir muitas doenças causadas por más condições de vida, melhorando a saúde da população como um todo. Entretanto, são obras em sua maioria subterrâneas e que “não aparecem” aos olhos dos eleitores. Resultado: o ocupante de cargo no Poder Executivo acaba em média preferindo obras “espetaculares”, nem sempre necessárias, mas visíveis, para garantir sua reeleição ou a permanência de seu grupo político no poder. Mais uma vez, troca-se o dispêndio de longo prazo pelo que obtém resultados em tempo mais curto, embora muitas vezes não tão necessários.

Nos dois casos citados há a particularidade dos responsáveis pelas decisões de gasto não estarem lidando com recursos diretamente próprios – embora o administrador público, teoricamente, tenha de responder com os bens pessoais por eventuais consequências de suas tomadas de decisões no exercício do cargo. Ainda assim só se punem eventuais dolos, nunca a incompetência ou consequências de más decisões.

Entretanto, ainda no exercício de nossas decisões de gasto pessoais muitas vezes o curto prazo prevalece sobre decisões que impactem mais a frente. O que é mais importante, um sapato novo ou um curso para aumentar sua empregabilidade? As indicações são de que na maioria esmagadora das vezes irá se preferir comprar o sapato novo.

Ou seja, esta é uma questão que permeia a ciência econômica e que se constitui em importante alvo de estudo por parte não somente de economistas como eu como das mais variadas ciências. Em termos econômicos estritos, o que importa é o que define-se como “eficiência do gasto”, ou seja, o retorno concedido por um conjunto de decisões que envolvem consumo, poupança e investimento. Isto é algo complicado de se medir, pois envolve um conceito abstrato chamado “satisfação” – por mais que evidências objetivas indiquem uma maior ou menor eficácia das decisões individuais.

Voltando ao caso rubro-negro, embora racionalmente a construção de um CT seja muito mais importante do que contratar um jogador em particular, a satisfação  – em economês, “utilidade” – gerada na torcida é muito maior se a contratação for efetivada, sabe-se lá a que preço. Ao contrário do que prega determinada ala de cientistas econômicos, as expectativas e a mensuração da utilidade por parte de um grupo de consumidores não são exatamente racionais – o que abre espaço para uma gestão “midiática” que se empenhe apenas em manter os sócios e torcedores satisfeitos com ações de curto prazo.

Especificamente no Flamengo tal forma de “gestão” de recursos foi levada ao extremo na administração do ex-presidente do clube Kleber Leite (1995-98). Toda semana um jogador novo era contratado ou dispensado, sem analisar o custo requerido, mas buscando manter a satisfação e a expectativa da torcida em alta. No fim das contas, o clube bateu recorde de negociações, a dívida aumentou imensamente durante aquele período (as famosas “engenharias financeiras” do tal gestor, de triste memória), não houve qualquer legado em termos de futuro do clube e em termos de títulos o período foi pífio. Ao contrário, tal forma de administrar – somada ao também desastroso sucessor – acabaria estourando em uma época extremamente complicada como foram os anos de 2002 a 2006, tanto em termos financeiros como de resultados.

Finalizando, por mais que o processo tenha sido pouco transparente e o ganho para o clube esteja longe de ter sido maximizado, este novo contrato televisivo pode proporcionar condições para o clube estabelecer de forma consistentemente competitiva seu futuro, desde que administrado tendo em vista o longo prazo. Infelizmente, não parece ser isso o que irá acontecer – e mais um “bilhete premiado” pode estar sendo desperdiçado.

3 Replies to “O Flamengo, a televisão e as decisões de gasto: algumas digressões”

  1. pelo visto o flamengo é mais um dos clubes brasileiros com rabo preso com a TV globo e pra variar o consumidor final como sempre tratado como um qualquer, sem direitos e só “deveres”

    muito bom texto.

    abraços

    Thelmo (@thelmofilho)

  2. Concordo totalmente em relação às prioridades. O CT vem antes da contratação de reforços. No entanto, acho que a decisão não é entre o CT e o VL9. A decisão deveria ser entre chutar aquele pereba do Deivid ou repatriar o VL.

    Se fosse possivel organizar o blog por assuntos macros seria muito mais fácil de ler. São muitas materias interessantes que às vezes ficam rapidamente “jogadas para o escanteio”. Futebol, Cinema, Economia, Samba, etc. Eu sei que existem os tags mas não é a mesma coisa de ter chamadas por assunto.

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