Sou um finadista. Explico. Nasci em um dia dois de novembro, consagrado aos fiéis defuntos da cristandade – o popularíssimo dia de finados. Os senhores, que não nasceram em data tão significativa, não imaginam o impacto que é uma criança dizer aos amiguinhos que faz aniversário no dia dos mortos.
Ontem mesmo, logo cedo, recebi uma ligação da minha mãe. Entre desejos de felicidades e que tais, a velha me disse o seguinte:
– Parabéns, tudo de bom. Já acendi as velas pelos defuntos de sua avó, seu avô e sua Tia Lita. 
Cresci ouvindo a história de que minha mãe repetia, perto do meu nascimento, sempre a mesma ladainha : Só não pode nascer dia dos mortos. Vai ser menina e não vai nascer em finados; não pode nascer.
O resultado é que nasci cabra macho, eis uma das poucas certezas que tenho, e foi no dia dos mortos, às onze e meia da manhã – horário indisfarçável, pra marcar posição. Minha avó ficou tão abalada que deu a notícia à minha tia Lita da seguinte maneira : Lita, que horror. Acabou de nascer no dia de finados e é menino. E agora ?
[A tia querida adorava repetir essa sentença e a vó, rindo matreira, apenas silenciava. Eu, de forma obsessiva, pedia o tempo todo : Como é a frase do meu nascimento, tia Lita? A frase do horror… ]
Lembro-me bem de um aniversário – eu devia ter uns seis anos – em que fomos almoçar em família. Vesti minha melhor roupinha para a ocasião. Ao nos ver saindo, o jornaleiro vizinho ao prédio onde morávamos foi direto : Estão indo a que cemitério?
Eis aí, amigos , uma verdade definitiva – meu caráter foi moldado por essa frase. Acho mesmo que minha personalidade pode ser definida com essa única sentença; nunca deixei de ser a criança que, ao querer comemorar o aniversário, descobriu que o procedimento normal era ir ao cemitério.
Em outra ocasião o negócio foi mais sério. Estava já na faculdade quando minha namorada à época resolveu me mandar flores no dia do aniversário. O entregador disse ao porteiro que ia levar as flores ao apartamento 307, endereçadas a Luiz Antonio Simas.
Tudo muito bonito, romântico, nos conformes. Acontece que o porteiro, ao ouvir falar em flores para Luiz Antonio Simas no dia de finados, concluiu que eu tinha morrido.
Atentem para o troço. Minha namorada me manda flores no aniversário e o camarada acha que morri.
Mas vamos voltar à infância. O fato é que, aos poucos, passei a achar ótimo esse negócio de ser finadista. Comecei a divulgar isso com uma empáfia quase aterrorizante. Alguém me perguntava qual era o dia do meu aniversário e eu não tinha dúvidas em responder feliz, quase excitado. Chegava mesmo, admito, a falar do nada para as pessoas : Você sabe em que dia eu nasci? Quer que eu diga mesmo?
Fazia então uma expressão de homicida alucinado, ensaiava um tom de voz diferente, esbugalhava os olhos e mandava na lata : Dia dois de novembro; o dia dos mortos, dos vampiros e dos lobisomens [ sim, resolvi acrescentar, lá pelos oito anos, esse negócio de vampiros e lobisomens porque dava um tom mais firme e assustador à coisa ].
Desde então, quando passei a curtir a data, cultivei o desejo de comemorar um aniversário no México. Lá a festa de finados é impressionante e tem origem indígena, mais especificamente azteca.
Reza a tradição que o furdunço do dia de finados mexicano é comandado pela deusa Mictecacihuatl, esposa de Mictlantecuhtli, o senhor do reino dos mortos. A mestiçagem cultural fez com que a figura da deusa indígena fosse aproximada à La Catrina, uma dama defunta da alta sociedade que – em forma de esqueleto e sempre bem vestida – comanda o regabofe. La Catrina teve a imagem popularizada no século XIX pelas gravuras do artista plástico José Guadalupe Posada.
A coisa é quente. Como os mariachis acreditam que os mortos vem visitar seus parentes no dois de novembro para se divertir [ e não querem saber de tristeza; se tiver tristeza os mortos ficam putos dentro da roupa ] a ordem é comer, beber, cantar, dançar e o escambau. As crianças se esbaldam com caveirinhas de açúcar e chocolates em forma de caixão, enfeitadinhos com fitinhas roxas.
Ah, me permitam uma última confissão, daquelas que o sujeito só costuma fazer ao médium de mesa branca depois de fixar residência no Nosso Lar. É o seguinte: ainda hoje, homem barbado e pouca telha, volto a ter subitamente oito anos quando uma criança me pergunta sobre o dia do meu aniversário. Me vejo como um pirralho de cabelos encaracolados, calço meu kichute imaginário e respondo com sinistra entonação:
– Nasci no dia dois de novembro. É o dia dos mortos, dos vampiros e dos lobisomens. Você sabia ?
Se o fedelho faz cara de choro, fico sinceramente feliz.
Abraços.

15 Replies to “FELIZ DIA DOS MORTOS”

  1. Simas! Vi o endereço do seu blog no twitter. E tenho que dizer: gargalhei muuuuito lendo esse post!
    Excelente!!

    P.S.: Adorava suas aulas de História no cursinho… Escreva seu futuro com pH! hahahaha

    beijocas

  2. Lula
    Sua vó lutou muito para que lhe registrassem no dia 02 de novembro, ela não queria de jeito nenhum dia 03, meu neto nasceu dia 2 e não 3, vai ser mais inteligente, mais feliz, mais alegre, pois quem nasce no dia de Finados e abençoado por Omulu e Obaluaê não sofre doenças.
    Beijos.

  3. Excelente o porteiro achar que você tinha morrido!

    Ainda bem que está aí “vivinho da silva” e nos presenteando com deliciosos textos.

    Pois bem. Já dei os parabéns via twitter e aqui segue novamente o meu abraço sincero com votos de vida longa e inspiração idem.

    Um beijo grande.

  4. Claro que não devo dizer “meus pêsames atrasado”!!! :D

    Parabéns, meu caro! Compartilho ao avesso suas palavras, pois nasci em 1º de abril… A crise de identidade acometeu-me nos primeiros minutos de vida e desde que me entendo por gente tenho que aturar o “você existe?” ou o “você é uma mentira!!”.

    Acabei, como você, enfeitando o fato dizendo: “certas coisas só acontecem comigo, com o botafogo e com o Pato Donald…”.
    [s]

  5. Gostei da forma como os mexicanos “comemoram” o dia dos mortos. Já tinha ouvido falar mas não sabia os detalhes. Muito mais interessante que aquela comemoração idiotizada de dia das bruxas vinda dos EUA que todo o ano tentam impor ao Brasil…
    Em tempo, meus parabéns pelo seu aniversário, professor. Você, através de seus textos, já se tornou necessário para o bom entendimento desse país e desse povo maravilhoso. Vida longa!

  6. Que eu me lembre, para adolecentes pré-universitários vc sempre fez a cara de homicida alucinado!

    Além de, claro, fazer aniversário a cada quinze dias no orkut…

  7. Que texto bom, que divertido! Parabéns. Não conheço você e cheguei até aqui por causa do outro texto seu, também muito bom. Adoraria saber de sua experiência no México, no dia 2 de novembro. Será que você a contaria em outro post?

  8. hahahahahahhaha sua cara Simas !!! Peste desde pequenininho !!! Sempre te imagino crianca desfilando de italianinho segurando pizza morrendo de vontade de sair de indio ! hahaha
    beijos Simas !!!

    Simas tenho lido o blog do Paulo Nogueira http://www.diariodocentrodomundo.com.br/ mas ta cada dia mais dificil de entender essa politica manipulada.. o que voce acha dele ??

  9. Mestre;
    Desta vez deu pra rir.
    Gostei da maneira inteligente de revelar o dia do seu aniversário, e o melhor: FOI NOS QUE GANHAMOS O PRESENTE NA FORMA DESTE TEXTO GENIAL.
    Grande abraço e feliz aniversário

    Jairo Costa

  10. Simas, nunca me esqueci do seu aniversário. É impossível esquecer. Nasci no dia do aniverário do meu pai, data que só tem importância no âmbito familiar. Como é em janeiro, todo mundo está ressaquiado das festas e nem se lembra. Mas nascer é diametralmente oposto a morrer, logo, seu aniversário chega a ser um contraponto, um escarnecimento, uma ironia. Uma pessoa nascida nessa data só poderia ter surgido para se relacionar com o mundo por meio do humor. Parabéns, meu irmão.
    De Fernando Goffredo R. Braga.

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