Tem texto meu publicado no jornal O Globo de hoje, esculhambando as escolas de samba do Rio de Janeiro. Reproduzo abaixo o arrazoado:

Quem conhece o ambiente das escolas de samba sabe que o Carnaval começa, de fato, no meio do ano. Os enredos estão definidos, o concurso para as escolhas dos sambas das agremiações mobiliza os componentes e o ziriguidum já come solto nas quadras.
Uma constatação me parece ser possível desde já: a safra de enredos para 2011, com honrosas exceções, é digna dos melhores momentos do FEBEAPÁ – o Festival de Besteiras que Assola o País – do saudoso Sérgio Porto. A tendência, cada vez mais irreversível, é pela realização em larga escala de enredos patrocinados ou de fácil apelo popular, versando em grande parte sobre assuntos tão ligados ao universo das escolas de samba quanto uma peregrinação ao Santo Sepulcro.
A moda nos últimos tempos, da direção de creches infantis às presidências de escolas de samba, é a adoção de critérios de gestão empresarial para administrar empreendimentos. A escolha dos enredos, dentro dessa realidade mercantilizada das super escolas de samba s.a, se pauta menos pela possibilidade artística que o assunto sugere do que pelo potencial de obtenção de recursos financeiros que o tema apresenta. A tradição – essa palavra mais fora de moda que o terno branco de linho S-120 – vai pro beleléu sem choro nem vela. Que se instaure o grande balacobaco do mercado: quem dá mais vira enredo e estamos conversados. As escolas de samba, nesse contexto, deixam de ser vistas e pensadas como instituições culturais com um universo simbólico historicamente constituído e se transformam em simulacros do show business.
Não sou contra – enquanto não apareça solução melhor – os patrocínios e desconfio que essa tendência seja irreversível. Há, porém, que se discutir até que ponto a escola deve ceder para não se tornar escrava do sinhozinho patrocinador. O patrocínio deve estar a serviço do enredo, mas é o contrário que em geral anda acontecendo. Algo similar ocorre, por exemplo, com as camisas dos clubes de futebol – o destaque dado aos símbolos dos patrocinadores [cremes de barbear, laticínios, lojas de eletrodomésticos, companhias de aviação, refrigerantes, absorventes femininos e quejandos] transformou os emblemas dos times em verdadeiros panos de fundo, quase intrusos, nas camisas que um dia foram chamadas de mantos sagrados. Não há manto sagrado que resista a um anuncio de pomada contra assadura maior que o escudo do clube.
Veremos passar na Sapucaí, em 2011, agremiações falando sobre coisas como o petróleo do pré-sal, a reforma do porto do Rio, a história dos cabelos e penteados, os mitos de Florianópolis, a trajetória fulminante do grupo Mamonas Assassinas, o romantismo do rei Roberto Carlos, as descobertas da medicina, assombrações de todos os tipos e filmes de terror [com direito, quem sabe, ao massacre da serra elétrica e ao aparecimento de mortos-vivos em plena Praça da Apoteose].
Não é de hoje que a banda toca dessa maneira. O apocalipse vem se desenhando ao longo dos últimos dez, quinze anos, com tintas tenebrosas. Já viraram enredo Beto Carreiro, Chico Recarey, Xuxa, Ronaldo Fenômeno, a Companhia Vale do Rio Doce, duplas sertanejas, cantores de rock, o mosquito da dengue, as bactérias que habitam o corpo humano, o gás de Xapuri, o aquecimento global e os personagens de Walt Disney. Não duvido que em 2012 alguma escola desfile com a história da profecia Maia sobre o fim do mundo e incendeie, em uma apoteose pirotécnica, seus carros alegóricos no meio da avenida.
Há quem goste desse gigantismo todo e ache que as escolas de samba devem adotar um padrão estético que misture no mesmo caldeirão espetáculos da Broadway e micaretas baianas, sob a ditadura de imaginosos carnavalescos. Podem apostar que, pelo andar da carroça, um dia algum mago iluminado defenderá a ideia de que as escolas desfilem com trilha sonora eclética: funk, axé music, sertanejo, rock, música eletrônica e, eventualmente, samba.

O grande sambista brasileiro Antonio Candeia Filho escreveu, em parceria com Isnard, um livro nos anos setenta chamado Escola de Samba, árvore que esqueceu a raiz. A bronca do saudoso Candeia com os rumos das agremiações está mais atual do que nunca. A árvore frondosa – gameleira sagrada, mangueira, jequitibá, salgueiro chorão, baobá e fundamento do samba – esqueceu mesmo a raiz e está caindo com o tronco podre e as folhas mortas.

Abraços

9 Replies to “O BESTEIROL NA AVENIDA”

  1. Muito bom, repassei o seu texto para os meus contatos. Infelizmente o capitalismo está aí para mercantilizar e boçalizar tudo: o futebol, a literatura, a TV, o samba, o amor…

  2. Opa, caro Simas!

    Proponho uma prece, invocando algum amparo ao Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo.

    Enquanto isso, se faz viva a plavra: “Mas depois da ilusão, coitado

    Negro volta ao humilde barracão
    (…)”

    Axé, Simas, axé !!!

  3. É triste e lamentável. Ótimo texto, meu velho! Que o senhor continue escrevendo e compondo samba à margem dessa roda viva que tem trucidado nossas mais caras tradições. Beijo.

  4. Lula
    Que saudades do tempo em que as escolas eram obrigadas a ter enredos sobre a história do Brasil. Ensinei muito as suas primas através de sambas de enredo.
    Beijos para os meus três grandes amores.

  5. Bom texto, como sempre. Seria ótimo se todo este conhecimento pudesse de alguma forma ajudar o nosso Império.

    De resto, em que pese a precariedade desses enredos e a consequente decadência das escolas, tanto melhor que nada mais seja obrigatório neste ambiente já naturalmente tão autoritário e opressor.

    Saudações imperianas!

  6. Por falar em Candeia, sábado dia 21/08 o mesmo será homenageado na Roda de Samba da Ouvidor por Cristina Buarque e Terreiro Grande.
    Não dá prá perder, imperdivel!!!!!

Comments are closed.