É Carnaval [com maiúscula] no Histórias Brasileiras. Este espaço passa, a partir de hoje, a priorizar os assuntos vinculados às festas de Momo – ouço já as fanfarras e o bumbo do Zé Pereira anunciando o furdunço.

Gosto do Carnaval, mas a festa desse ano me preocupa um pouco. Não sei se o tal do choque de ordem da prefeitura vai ajudar o balacobaco ou transformar a folia em algo tão asséptico quanto uma enfermaria de hospital de rico, já que estou convencido de que os homens do poder entendem tanto da alma do Rio de Janeiro quanto eu de física quântica.

Parêntese: A notícia de que a Rede Globo vai patrocinar alguns blocos, por exemplo, é calamitosa. Periga transformar o tal de choque de ordem em algo pior: a ordem do cheque.

Desde que comecei a ter uma página na grande rede defendo, de forma gloriosamente fracassada, uma ideia urgente: Carnaval não combina com o tal do politicamente correto. Ele, o politicamente correto, está para o carnaval como bala de prata para Lobisomem, crucifixo para o Conde Drácula e bibliotecas para participantes do Big Brother Brasil. Desenvolvo o mote.

Há grandes pensadores que vem se dedicando a refletir profundamente sobre temas momentosos, como o aquecimento global, a fragilidade da condição humana, o crescimento desenfreado das grandes metrópoles, o desenvolvimento sustentável e outros babados. Eu também estou nesse time. Ando refletindo nos últimos cinco anos, com grande constância, sobre algo de importância similar aos destinos do homem e do planeta: o destino do Rei Momo e sua corte.

Para dar dimensão ao que escrevo, começo por D. Pedro II, um folião de reconhecida competência.

Dizem que o segundo imperador, sisudíssimo no cotidiano, transformava-se numa espécie de fauno durante o carnaval. Participava do entrudo, jogava ovos podres em ministros e sacos de mijo na multidão que se esbaldava nos arredores do Paço Imperial. Em certa ocasião Pedro II foi encontrado, na quarta feira de cinzas, nu dentro de um tanque. O augusto soberano estava abraçado a um balofo, com a coroa de Rei Momo na cabeça.
Tenho certeza que o imperador, se vivo fosse, jamais admitiria o achincalhe que se faz atualmente com a nobre figura do Rei Momo. Já escrevi anteriormente sobre isso, volto ao tema em virtude da proximidade do carnaval e , desde já, clamo por adesões ao meu protesto. É o seguinte.
Sou do tempo em que o Rei Momo era uma baleia, uma espécie de rolha de poço, um gordanchudo. Minhas recordações de infância remetem a imagem do Rei Momo aos contornos de um cachalote fantasiado.

Lembro-me que meu avô me levava todo ano aos desfiles dos blocos de embalo na Rio Branco, com direito a porrada entre os apaches do Cacique de Ramos e o pessoal do Bafo da Onça, comandados pelo folião e homem de imprensa Álvaro Costa e Silva, o torcedor-em-chefe do Bafo. O Rei Momo sempre abria esses desfiles, suando como um porco, com duzentos quilos de banha, ao lado das gostosíssimas rainha e princesa do carnaval, musas inspiradoras de muito cinco contra um da molecada da época.
O concurso para a escolha do Rei Momo era uma espécie de ágape profana. O cidadão que pretendesse ser escolhido para a mais nobre função durante a folia tinha, e não exagero, que comer pelo menos quarenta frangos assados de padaria e duas travessas de macarrão em almoço no Largo da Carioca. O acompanhamento líquido era simples: dois engradados de cerveja por candidato.

O embate entre os balofos, com direito a vômitos, caganeiras e peidos em profusão, era sensacional. Após a farra do almoço, os candidatos ainda tinham que sambar no pé e mostrar agilidade pulando corda. Conheci gente cujo sonho era chegar aos duzentos e tantos quilos para se candidatar ao posto.
Eis que, de uns tempos pra cá, a prefeitura resolveu estimular a escolha de Reis Momos magricelas, em nome dos cuidados com a saúde e o corpo. Não me conformo, jamais me conformarei, com isso. O Carnaval é a festa da inversão de valores, ora pitombas.

Na condição de súdito de Sua Majestade Momesca, ergo aqui meu brado de protesto contra essa ditadura infame da estética, esse culto mórbido ao corpo esculpido, ao abdômen sarado. Façam isso na Páscoa, em São João, no Natal – não seria mal um Papai Noel esquálido, doente – mas não metam o bedelho no Carnaval, pelo amor dos deuses.
Se é para escolher um faquir ou uma bicha sarada, que eliminem logo a própria instituição Rei Momo, com toda sua carga simbólica de inversão dos valores e de monarca dos dias de orgia e desvario. Essa bobagem politicamente correta de se escolher um Momo magricela é a traição definitiva ao espírito que move o tríduo.

Esclareço aos inimigos do telecoteco: o Rei Momo vem da mitologia grega, é coisa séria. Momo era o filho do Sono e da Noite. Era tão galhofeiro e irreverente, sacaneou tanto os outros deuses, que foi expulso do Olimpo pelo próprio Zeus. Não queria fazer nada de útil, preferindo passar os dias a se divertir, comer e tomar vinho. Foi deportado para a terra!

Ao chegar por aqui, Momo começou a se apresentar nas cidades tirando a máscara, erguendo um estandarte festeiro e tocando guizos que convocavam os homens para arruaças, porrancas e orgias. Tudo era permitido nos locais em que o deus exilado levantava o seu estandarte.

Na Roma antiga, à época das grandes festas saturnais, escolhia-se alguém, em geral um soldado, para representar o zombeteiro Momo. O escolhido era coroado e tinha o direito de comer, brincar e encher a cara até o esgotamento. Era, depois disso, desmaiado de tanto vinho e comida, conduzido ao altar de Saturno e gloriosamente sacrificado ao deus.

Agora pensem comigo: o sujeito que representa o filho do Sono e da Noite, o deus zombeteiro que aprontou tantas até ser expulso do Olimpo, que se dedicava basicamente a comer, beber e fazer sacanagem, pode virar símbolo de campanha a favor da manutenção da forma e da saúde no Carnaval? Não pode.

Desde já proponho a resistência. Se mantiverem em 2010 essa idéia de jerico, não reconhecerei de novo a majestade de um pau de virar tripa qualquer com o cetro e a coroa. Rogo daqui pela volta de um Rei Momo com características de chupeta do Vesúvio, rolha de poço, pudim de banha, jóquei de elefante…
Momo, filho do Sono e da Noite, perdoai os que não sabem o que fazem. Este teu súdito te reverencia com o grito festivo com que as bacantes evocavam Baco e inciavam as festas da música, do vinho e do esquecimento: Evoé !

[Hino ao Rei Momo – Darcy Caxambu]

12 Replies to “O FILHO DA NOITE E DO SONO”

  1. Professor,

    Hoje tive uma reunião com o principal responsável da RioTur pelo carnaval.

    Ficou devidamente claro que a Prefeitura não empreenderá esforço nenhum para garantir a Rede Globo a não exposição de outras marcas no desfile de blocos da Sebastiana.

    Esse foi um acordo somente entre a Sebastiana e a Globo. Como eles resolverão essa hercúlea missão, eu não faço idéia.

    Só sei que ninguém de colete azul da Prefeitura se mobilizará para tanto.

    Um abraço do seu aluno,

    R.Pian

  2. Professor, perfeito! Daqui a pouco, como diz o nosso querido Boechat, só serão permitidos no Rio sopa de hospital e exame de próstata. Essa história de Rei Momo magro é constragedora.

    Abraço

  3. Olá, acredito que vc tenha sido meu professor de mitos africanos no curso de especialização em história, literatura e cultura africana e afro-brasileira do espaço Atlântica Educacional, se não for a mesma pessoas desculpe-me mas, o nome e a relação com a história é integralmente coincidente. Adorei o seu espaço e convido-o para que conheça os meus: http://afrocorporeidade.blogspot.com e http://ecosdaculturapopular.blogspot.com Parabéns pelo belo trabalho! um grande abraço! Denise Guerra.

  4. Simas, bela aula, meu caro. Não conhecedor dessas histórias. Agora o que eu acho é que a Globo acabou com os desfiles, agora quer acabar com os blocos. Em relação ao momo, é uma pena, esta porra de politicamente correto está em tudo, o pessoal celebra o corpo, e esquece a história, a cultura, o povo. Uma pena, mas cada vez mais, a mídia tenta acabar com a cultura brasileira.

    Abraço

  5. CIRNE, saudações carnavalescas!

    PIAN, boa notícia.É rigorosamente impossível de se executar essa ideia maluca de não permitir exposição de marcas em alguns desfiles.Abraço.

    CLAUDIO RENATO, é de um ridículo completo mesmo. Abraço.

    DENISE, sou eu mesmo. Vou lá visitar teu blog. Abraço.

    ANTONIO CARLOS, saudações imperianas! No mundo dos blocos, porém, sou Bafo. Abração!

    RODRIGO, é isso aí. Querem domar tud. Mas não passarão! Abraço.

  6. Que saudades das Grandes Alegorias, dos Frevos, dos Ranchos, das Escolas de Samba e dos Blocos epoca em que iamos para Presidente Vargas com papai e mamãe passavamos a noite na arquibancada (uma galera com isopor e tudo que tinhamos direito)quem abria o carnaval era o Rei Momo lindo maravilhoso com seus quase 200 kilos. Ai tempo bom, não volta mais. Saudades

  7. Quando começou essa viadagem de Rei Momo magro cheguei a conclusão que era o fim da civilização ocidental, pois essa porra de “politicamente correto” é ruim de aturar…no Carnaval então É FODA!!!
    Parabéns Simas.
    Cordiais saudações!
    Orlando Rey

  8. Ah meu caro…

    É sempre um prazer ler seus textos…

    É um vício, não consigo ficar sem…rs

    Concordo em gênero, número e grau com essa onda “clean” que tem tomado de assalto a todos nós!!

    Salve Momo…

    Salve a alegria!!

    Parabéns sempre!!

    Não tem mais nehum curso de História do Rio de Janeiro por aí não…rs o da facul já tem tempoo!!!

    Até breve,

    Amanda

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