A Renascer de Jacarepaguá apresentou a sinopse do seu enredo para 2016: “Ibejís – Nas brincadeiras de criança: os orixás que viraram santos no Brasil”.  Uma ótima ideia, que promete render um ótimo samba e um desfile promissor. E que de quebra me estimula, feliz com a proposta da escola, a fazer algumas observações sobre o tema.

O dia das crianças no Brasil, 12 de outubro, foi criado em 1924, em projeto de lei proposto pela Câmara Federal e sancionado pelo presidente Arthur Bernardes. A data foi ignorada por mais de três décadas.

11011566_833489786721035_1891859102445892420_nEm 1960, uma fábrica de brinquedos lembrou-se da efeméride, aliou-se a uma multinacional de produtos de higiene para crianças e promoveu a “Semana do Bebê Robusto”, com incentivos de propaganda para troca de presentes, concurso de beleza infantil e outros salamaleques. Com o sucesso da empreitada, fabricantes de brinquedos resolveram divulgar o dia das crianças como uma data com potencial para aquecer as vendas.

No calendário de afetos de muitos brasileiros, todavia, a festa das crianças é a de Cosme e Damião, os médicos anargiros (inimigos do dinheiro, já que não cobravam consultas) martirizados durante a perseguição aos cristãos na antiguidade.

No Brasil de todos os encantamentos, deu-se o encontro entre os santos gêmeos do catolicismo e Ibeji – o orixá dos iorubás que protege as crianças e representa os mistérios das dualidades que se integram sem se anular. O sincretismo entre os santos católicos e o orixá africano (visto aqui mais como acréscimo de força vital que como disfarce para permitir o culto) transformou Cosme e Damião nos donos de todos os doces e carurus. Festa de Dois-Dois, conforme o povo.

A mistura é tão bonita que no Brasil até Doum apareceu. Entre os iorubás da Nigéria, quando nascem gêmeos, a primeira criança gerada recebe o nome de Taiwo; a segunda é chamada de Kehinde. Idowu é o nome dado à criança que nasce após o parto de gêmeos. Por aqui, o irmão mais novo dos gêmeos africanos virou Doum e passou também a ser cultuado nos fuzuês de Dois-Dois, especialmente nos terreiros de umbanda, como o irmãozinho de Damião e Cosme.

A festa de Cosme e Damião, portanto, passou a ser o dia brasileiro dos santos estrangeiros e orixás africanos. Dia de igreja aberta, terreiro batendo, samba de roda, criança buscando doce, amigos matando saudades.

A festa das crianças também é repleta de sabores. Além da tradicional distribuição de doces, que muitas vezes ocorre em virtude de promessas feitas aos gêmeos, há ainda o caruru dos meninos, profundamente marcado por fundamentos da religiosidade afro-ameríndia.

Ibeji2O caruru (prato de origem indígena que se africanizou no Brasil e abrasileirou-se nas áfricas) deve ser ofertado no dia de Cosme e Damião inicialmente a sete crianças. Encontra vínculo simbólico, desta forma, com o ekuru (bolinho de feijão), a comida ofertada ao orixá Ibeji. Manuel Querino, em seu ensaio “Arte Culinária na Bahia”, dá a receita do ekuru de Ibeji dos candomblés tradicionais baianos: “Preparado com feijão fradinho, como se faz com o acarajé, coloca-se pequena quantidade em folha de bananeira à maneira do acaçá, cozinha-se em banho-maria, isto é sobre gravetos colocados no interior de uma panela com água. Depois de pronta, a massa é diluída em mel de abelhas ou num pouco de azeite de cheiro com sal”.

William Bascom, no Yoruba Food and Cooking, descreve a receita nigeriana: “Feijões de qualquer tipo, mas preferencialmente o erê, posto de molho numa gamela com água. Tirar a casca quando mole. Joga-se fora o excesso da água e deixa-se descansar os feijões descascados, por duas ou três horas, até ficar bem macio. São então ralados na pedra e feitos em bolas, amaciados com água e enrolados em folhas, e cozidos em vapor d´água”.

Vivaldo da Costa Lima relata conversa com famoso babalorixá, que fez o ekuru com feijão fradinho ralado, cebola e camarão. Cozinhou em banho-maria e enrolou em folhas de bananeira. O mesmo autor registra que o ekuru, entre os iorubás, representa a multiplicidade de filhos, pela quantidade de feijão utilizada, desejada numa casa nagô.

No Brasil de todos os encontros, sabores e festas, este entre Ibeji e os médicos anargiros é dos mais interessantes.

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