Nesta semana a Lierj, entidade que organiza os desfiles do grupo de Acesso A do Rio de Janeiro, finalmente divulgou as justificativas do carnaval 2014, que teve a Viradouro como justa campeã – apesar de pessoalmente ter achado um exagero a chuva de notas 10 que a agremiação levou, mas isto é outra história.

Entretanto, desde a divulgação das notas que um quesito chamou a atenção: samba enredo. O samba da Em Cima da Hora, “Os Sertões”, reputado por muitos como o maior samba enredo de todos os tempos, não somente teve apenas uma nota 10 como foi considerado pelo jurado Celso Chagas O PIOR SAMBA DO GRUPO, ao lado de Rocinha e Santa Cruz. Isto mesmo, leitor: a composição considerada por muitos como a maior de todas foi considerada a pior do ano.

O referido jurado ainda tirou pontos das outras reedições (Tradição e Tuiuti) e, para completar a inusitada avaliação, descontou um décimo do samba da Acadêmicos do Cubango, considerado com folga o melhor inédito e ganhador dos principais prêmios da crítica neste carnaval. O jurado em questão deu apenas três notas máximas, para Porto da Pedra, Caprichosos de Pilares e Viradouro.

Os Sertões JustificativaLendo as justificativas do jurado em questão, percebem-se algumas avaliações bastante problemáticas, muitas vezes resvalando em outros quesitos. O manual do julgador deste grupo não está disponível na internet, mas os critérios da Liesa para o Grupo Especial dizem o seguinte:

“No Quesito Samba-Enredo o Julgador irá avaliar a Letra e a Melodia do Samba-Enredo apresentado, respeitando-se a licença poética.

Para conceder notas de 09 à 10 pontos, o Julgador deverá considerar:

LETRA (valor do sub-quesito: de 4,5 à 5,0 pontos)

 a letra poderá ser descritiva ou interpretativa, sendo que a letra é interpretativa a partir do momento que contar o Enredo, sem se fixar em detalhes.

Considerar:

 a adequação da letra ao enredo;

 sua riqueza poética, beleza e bom gosto;

 a sua adaptação à melodia, ou seja, o perfeito entrosamento dos seus versos com os desenhos melódicos.

MELODIA (valor do sub-quesito: de 4,5 à 5,0 pontos)

Considerar:

 as características rítmicas próprias do samba;

 a riqueza melódica, sua beleza e o bom gosto de seus desenhos musicais;

 a capacidade de sua harmonia musical facilitar o canto e a dança dos desfilantes.

Não levar em consideração:

 a inclusão de qualquer tipo de merchandising (explícito ou implícito) em Sambas-Enredo;

 a eventual pane no carro de som e/ou no sistema de sonorização da Passarela;

 questões inerentes a quaisquer outros Quesitos.”

Observando-se as justificativas do jurado em questão, vamos ao que ele diz sobre a Em Cima da Hora:

Letra não faz referência à Euclides da Cunha e/ou Antonio Conselheiro, de forma direta, indicados como importantes personagens na justificativa do enredo (…).” Só aí já temos um problema de avaliação do julgador, quando o manual diz que a letra pode ser descritiva ou interpretativa.

Celso Chagas segue: “refrão, ao ser executado, deixou a impressão de algumas palavras foram mastigadas pelos intérpretes, devido à métrica”. O leitor avalie o vídeo ao alto do post e verá que isso não procede. Continuando: “melodia pouco empolgou o público, e não facilitou o canto e a dança dos componentes e do público, sem muitos desenhos marcantes”. Sobre isso nem farei comentários.

O mesmo julgador faz uma avaliação da Cubango curiosa, para se dizer o menos – especialmente quando se compara às escolas que receberam nota 10: “melodia com poucos desenhos diferentes entre si, sem momentos muito marcantes, o que afetou a dinâmica da melodia”. Traduzindo para o leitor mais leigo que eu, o que ele quis dizer é que a melodia do samba era “reta”, sem variações, o que não corresponde à realidade. Também apontou que os versos finais do samba estavam “mastigados”, o que o vídeo acima deixa claro que não ocorreu.

A avaliação de Kizomba (reeditado pelo Paraíso do Tuiuti, abaixo), onde ele tirou um décimo, tem um ponto curioso. Por um lado ele aponta corretamente que o andamento acelerado demais impresso ao samba prejudicou seu desempenho – o que inclusive comentei com o colunista Aloisio Villar à saída da Sapucaí ao final daquela noite. Mas, por outro, diz que as paradinhas da bateria não contribuíram para o desempenho do samba – o que deveria ter sido julgado pelo jurado de bateria.

Celso Chagas também questiona na justificativa do Império Serrano o desenvolvimento do enredo, algo a que ele não deveria se ater. O samba da Serrinha a meu ver nem teria nota máxima, mas o julgador deveria se ater aos critérios de seu quesito. Ele também tirou pontos da Tradição sob a justificativa de palavras “mastigadas” – claramente, uma alegação “coringa” para descontar nota de diversas escolas.

Outro jurado, André Gimenes, descontou pontos da Em Cima da Hora (um décimo) com um argumento inacreditável: “um belíssimo samba, original, mais (sic) a escola não soube executar na avenida, deixando o andamento um pouco lento, fazendo com que não houvesse interação com o público e a própria escola.” Traduzindo: o excelente andamento intermediário entre a gravação original e os tempos atuais que a escola encontrou foi punido pelo jurado, que desejava um andamento igual, ao que parece, à loucura que foi o samba da Viradouro ou ainda a “chutada” dada em Kizomba – ambos levaram 10 do jurado.

Também tirou um décimo do samba da Caprichosos de Pilares devido à menção ao alusivo da escola feito na letra. Mais uma vez: a letra pode ser interpretativa segundo o manual do julgador. Também elogia o samba da Estácio – outro que passou aceleradíssimo – mas tira um décimo com o argumento genérico que “o samba não teve o rendimento esperado”. Esperado onde, esperado por quem? Ele é jurado, não Deus.

20140228_233042Lília Gutman, a terceira jurada, tirou um décimo da Em Cima da Hora dizendo que os componentes cantavam “no século passado”, e não “num século passado”. Filigrana, até porque a versão original trazia a primeira letra. Também desconta ponto da Cubango dizendo que “os quatro primeiros versos após o primeiro refrão tem perceptível queda de expressividade”. What?

Na Estácio diz que os quatro primeiros versos possuíam “comprometimento melódico”. O que significaria isso? Por outro lado, acertou ao penalizar a rima “lelé da cuca / Barra da Tijuca” da Acadêmicos da Rocinha.

Marcelo Rodrigues, o último julgador, também penaliza esta rima infeliz do samba da Rocinha. Chama a atenção a avaliação da Estácio, que se lendo a justificativa se acha que o jurado irá descontar um décimo e ele acaba pesando a mão e tirando três – o que seria decisivo na definição do título. Mas, dos quatro jurados, foi aquele que fez a avaliação mais próxima do senso comum entre escolas, público e compositores.

Chama a atenção, também, o samba da Viradouro ter “gabaritado” o quesito, com quatro notas 10. No mínimo, a excessiva aceleração da composição a meu ver deveria ter sido penalizada pelos jurados. Talvez estes, no mínimo, tenham ficado com medo de penalizar o belo conjunto que a campeã apresentou.

A se notar também que, à exceção de Santa Cruz e Rocinha, a fraqueza da maioria das letras foi muito pouco punida pelos quatro jurados. Também fica a reflexão se a reedição da Em Cima da Hora foi mesmo decisiva para manter a escola no grupo, embora se saiba que a escolha motivou bastante escola e componentes. Por outro lado o samba da Renascer, apontado como um dos melhores na fase pré carnavalesca, foi bastante penalizado, a meu ver excessivamente – e olha que desfilei na escola.

Resumindo, o julgamento deste quesito tem muito o que melhorar no Grupo de Acesso. E o jurado Celso Chagas, a meu ver, deveria ser afastado do quadro julgador, dadas as incoerências apontadas em suas justificativas. E todas as justificativas podem ser vistas aqui.

8 Replies to “O julgamento de samba enredo no Acesso: o Caos”

  1. 1) Letra não faz referência a Euclides da Cunha e/ou Antônio Conselheiro (se fizesse referência a apenas um dos dois não teria problema?) (o que o jurado acha sobre o trecho: O Homem revoltado com a sorte/do mundo em que vivia/Ocultou-se no sertão/espalhando a rebeldia – este trecho fala de quem? do Lula? do Cumpadre Washington? ou do Antônio Conselheiro? Parece que não leu os sertões ou no mínimo não viu o filme…) (quanto ao Euclides da Cunha, o samba é sobre a obra e não sobre o autor dele – se é que ele consegue entender isso!).

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