Nesta sexta-feira, o jornalista esportivo Fred Sabino conta na coluna Sabinadas o sentimento de “amor e ódio” em relação a Michael Schumacher desde a infância até as duas ocasiões que esteve perto do heptacampeão, que segue internado após o acidente de esqui no último dia 29 de dezembro.

Schumacher e eu

Como torcedor, jamais nutri simpatia por Michael Schumacher. Quando ele entrou na Fórmula 1, em 1991, eu tinha dez anos e estava no auge daquela paixão de torcedor mirim. Portanto, minha avaliação sobre o alemão nos primeiros anos foi a pior possível.

Afinal, ele entrou na categoria mentindo a Eddie Jordan ao dizer que conhecia o autódromo de Spa-Francorchamps, no qual jamais havia completado uma volta sequer. Ainda por cima, foi o beneficiado na operação que tirou Roberto Moreno da Benetton, e foi o cara que “aposentou” nosso grande tricampeão Nelson Piquet.

No ano seguinte, começaram as rusgas com meu ídolo Ayrton Senna, e o brasileiro chegou a dar uns safanões no alemão, que o fechou propositalmente num treino na Alemanha e o tirou do GP da França com uma barbeiragem. Depois, em 1994, todos sabem, Schumi correu com o carro fora do regulamento quando Ayrton ainda era vivo e jogou o carro em cima do coitado do Damon Hill.

Por outro lado, sempre percebi uma aura diferente na pilotagem daquele alemão marrento e com atitudes típicas de alguém com caráter duvidoso. A pilotagem sob chuva, a velocidade incrível durante as corridas e a autoconfiança lembravam, vejam que ironia, o Senna.

E já naquela época o próprio Schumacher dizia que o Senna era o ídolo dele, que visitou o túmulo dele como anônimo, etc. E eu, que não gostava dele por um lado, passei a admirá-lo como grande piloto que sempre foi.

Em 1997 eu já tinha 16 anos e torci loucamente para ele conquistar o tricampeonato contra Jacques Villeneuve. Fiz até reunião com amigos em casa e até hoje lembro da enorme decepção de todos quando Schumi tentou ganhar o título de forma suja de novo. E eu “desisti” de Schumacher como torcedor, embora o reconhecesse como piloto mais talentoso do mundo.

Dois anos depois, entrei na faculdade de jornalismo e segui acompanhando a Fórmula 1 já com um distanciamento crítico, e, como redator do LANCENET!  a partir de 2002, escrevi bastante durante a hegemonia do alemão, que em 2004 conquistaria o heptacampeonato.

No fim de 2008 assumi o núcleo de automobilismo do Grupo LANCE! e tentei sem sucesso (como praticamente todo mundo) uma exclusiva com Schumacher. Em 2009, foi acertado no começo do ano que eu cobriria in loco a dobradinha Valência-Spa e, ironia do destino, a corrida espanhola acabaria marcando o retorno de Schumi, que aceitara substituir Felipe Massa após o acidente na Hungria.

Por uma grande coincidência, eu estaria presente na volta de Schumacher à Fórmula 1. Mas aí Schumi sentiu dores nos testes em Mugello (por causa de um acidente de moto ocorrido no começo daquele ano) e o alemão desistiu de voltar.

De qualquer forma eu estava empolgado para cobrir minha primeira corrida de F-1 na Europa. Afinal, Rubens Barrichello estava na briga pelo título com Jenson Button naquele ano mágico da Brawn (o brasileiro venceu em Valência, diga-se de passagem) e, ora bolas, era uma cobertura in loco.

schumi2009Schumacher também foi a Valência (foto), mas sem correr, e a imprensa do mundo todo queria porque queria falar com o alemão. Foi quando o companheiro Livio Oricchio (então correspondente de “O Estado de S.Paulo”) teve uma brilhante sacada no sábado.

Ele propôs à assessora de Schumi, Sabine Kehm (essa mesma que vem dando os boletins no hospital da França), que ele conversasse por 20 minutos só com os jornalistas brasileiros sobre Felipe Massa, grande amigo do heptacampeão. A assessora prometeu falar com Schumi mas de antemão já adiantou que não se perguntasse nada sobre o acidente dele e o retorno frustrado.

Schumacher aceitou e foi armada uma minicoletiva em que estiveram presentes, além de Livio, Tatiana Cunha (“Folha de S.Paulo”), Felipe Motta (Rádio Jovem Pan), Luis Fernando Ramos (Rádio Bandeirantes), Carlos Gil (TV Globo), Vanessa Ruiz (Rádio Globo) e eu (Diário LANCE!). Foi acertado ainda com Sabine que todos só publicassem seus materiais na manhã de domingo. Dito e feito.

E o heptacampeão foi extremamente bem-humorado e gentil com todos nós, respondendo sem pressa a cada pergunta sobre Massa, o relacionamento entre eles, o que o brasileiro poderia sofrer no retorno, o que eles vinham conversando nos últimos dias, etc.

Todos fizeram perguntas bem legais como de costume e eu, por ser novato e não cobrir todas as provas, fui o penúltimo a perguntar. Tentei apelar para o lado emocional de Schumacher. Dias antes ele dissera que Massa era como o irmão mais novo dele. Por isso, perguntei algo em inglês na seguinte linha: “Você chamou Felipe de irmãozinho mais novo. Em um meio tão complicado de se fazer amizades, você diria que ele é o seu melhor amigo na Fórmula 1?”

Para minha sorte, Schumacher recebeu muito bem a pergunta e sorriu de orelha a orelha pela primeira vez na entrevista. Daí respondeu longamente que a Fórmula 1 é muito competitiva, que as pessoas são muito egoístas (ele também, convenhamos) e que Felipe era uma pessoa verdadeiramente digna, um amigo de verdade.

No fim, ele ficou quase meia hora conosco mesmo contra a vontade da assessora e até se arriscou a falar nas entrelinhas sobre a volta frustrada dele sem que rompêssemos o acordo de não perguntar sobre esse tema. No fim, ele cumprimentou todos um a um (com extrema firmeza e olhando nos olhos das pessoas) e disse que amava de verdade o Brasil.

Todos ficaram bem satisfeitos com a entrevista, que de fato foi boa, e só no Brasil saíram declarações de Schumacher naquele fim de semana. Fiquei satisfeito pessoalmente pelo tratamento dispensado por ele a nós, mesmo com aquela desconfiança oriunda dos tempos de criança. Afinal, sabemos bem o que é media training, não? E o histórico inegável de Dick Vigarista não tinha sido apagado.

No fim daquele mesmo 2009 eu cobri o Desafio das Estrelas de Kart em Florianópolis, com a participação e vitória de Schumacher, e a volta de Massa após a recuperação do acidente. Ou seja, havia uma enorme expectativa para o evento. Até porque já se falava da volta do alemão à Fórmula 1 pela Mercedes. Evasivo mas educado, Schumi não confirmou o que seria anunciado semanas depois.

Pois bem, entre a última bateria (pela manhã) e a festa de encerramento do evento (à noite) fiquei assistindo a Corinthians x Flamengo pela penúltima rodada do Brasileirão. Extremamente feliz com a vitória e entrando de férias a partir daquela semana, fui me divertir. E lá estava Schumi de novo. Este então estava superhipermegafeliz se é que me entendem.

Ele ficou num lugar separado da boate (me nego a falar balada) mas muito bem-humorado, brincando com todos os pilotos brasileiros, curtindo mesmo aquele momento. Senti no ar que ele e os amigos estavam comemorando a volta à Fórmula 1. Seria irresponsável publicar algo do gênero. Mas dava pra perceber que ele estava rompendo a barreira de ex-aposentado para ser novamente um piloto. E eu fiquei feliz mesmo de ver isso de perto.

Por essa curtição, mesmo tendo um desempenho muito abaixo do que ele mesmo esperava, Schumacher voltou. Conseguiu um podiozinho, mas voltou a ter aquela adrenalina das disputas. Sem nada a provar, pilotou até quando achava que valia a pena. E aí parou de vez para curtir a vida.

Lamentavelmente Schumacher sofreu o acidente no fim de 2013 e ainda luta pela vida, ou, na melhor das hipóteses, para não ficar com sequelas. É uma luta muito mais complicada do que a que ele teve nas 307 corridas que disputou na Fórmula 1.

E, sinceramente, depois das duas ocasiões em que o vi de perto e senti que há um ser humano legal por dentro daquela armadura do sujeito que eu detestava, torço ainda mais pela sua recuperação.