Neste 11 de setembro onde se completam 40 anos do sanguinário golpe militar chileno, a coluna do advogado Gustavo Cardoso desmistifica outra ideia muito comum: a de que houve um “milagre econômico” no país durante a ditadura.

O Terror de 11 de Setembro

Todo mundo sabe que em 11 de setembro aconteceu o atentado terrorista que explodiu as torres gêmeas do WTC, em Nova York. Menos pessoas se recordam de que outro ato de terrorismo faz aniversário na mesma data: há 40 anos um Golpe de Estado derrubava Salvador Allende da presidência do Chile e levava ao poder uma junta de assassinos chefiada por Augusto Pinochet.

O número de mortos no Chile superou com folga o de Nova York (estimativas variam de 3.200 a 17.000), sem falar dos cerca de 30.000 torturados, das prisões arbitrárias, dos exílios, da censura, do estado de sítio, da corrupção e do aumento da miséria e da desigualdade social.

Nenhuma pessoa sã defende o regime de brutal repressão instalado pelos militares chilenos, mas não são poucas as que ainda exaltam suas façanhas econômicas. A euforia está ligada ao marketing do papa do neoliberalismo Milton Friedman, que despachou seus discípulos, os Chicago Boys, para formular a política econômica da ditadura, e depois repetiu ad nauseam que eles teriam produzido um suposto “Milagre do Chile”.

A persistência deste mito está ligada à auto-sugestão ideológica e a associações ingênuas das reformas monetaristas nos anos 70 com a boa performance da economia chilena nos últimos anos. Não devemos perder de vista o princípio: Se há algo que se pode afirmar sobre os milagres é que eles não existem. Com isso em mente, vamos situar o desempenho econômico do Chile na história e tentar entender o que os neoliberais produziram naquele país.

Para os padrões da América Latina, o Chile teve pouco trabalho escravo e razoável estabilidade política. Com uma população pequena e uma economia voltada para a exportação de minerais, despontou no século XX como o segundo país mais rico da região, atrás apenas da Argentina. Tinha, no entanto, a fragilidade de ser dependente da exploração de cobre, e as principais empresas envolvidas nesta atividade eram multinacionais americanas.

Em 1970 foi eleito um presidente de esquerda, Salvador Allende, com a promessa de completar o lento processo de nacionalização do cobre, o que os EUA consideravam inaceitável. A CIA já havia sabotado as duas primeiras campanhas presidenciais de Allende, e tentou impedir sua posse, sem sucesso.

A ordem direta do presidente Nixon foi de “fazer a economia gritar”. Seguiu-se um ataque coordenado das grandes corporações, com corte de crédito por parte das instituições financeiras, corrida de saques bancários, crise de abastecimento e quedas espetaculares operadas na bolsa de valores. Tudo isso foi, e por muitos ainda é, atribuído à incompetência de Allende.

GDP_per_capita_LA-Chile

Mesmo assim, em 1973, ano do Golpe, o país tinha uma das três maiores rendas per capita da América Latina, inferior em 28% à da Argentina e equivalente à da Venezuela, que emergira em meados do século como um grande produtor de petróleo. Dezessete anos depois, quando Pinochet saiu do poder, a renda per capita chilena continuava sendo equivalente à da Venezuela, mas já era 80% menor que a da Argentina.

Pior. Continuando a comparação com seus principais vizinhos, em 1973 a renda per capita do Chile superava em 20% a do Uruguai, em 67% a do México, em 110% a do Brasil e em 260% a da Colômbia. Em 1990, superava a da Colômbia em 48%, e era superada pela do Uruguai em 37%, pela do México em 42% e pela do Brasil em 30%. Em dólares constantes, houve uma queda de US$ 3,600 em 1973 para US$ 3,170 em 1993.

Dos 20 países latinoamericanos, a performance geral da economia chilena foi a 15ª ao longo dos anos Pinochet. Os salários reais foram reduzidos em 40% no mesmo período. Apesar da promessa do general de fazer do Chile “uma nação de proprietários, não de proletários”, o índice de pobreza na população subiu de 20% em 1970 para 40% em 1990. Durante todo o período as taxas de crescimento e de emprego estiveram abaixo da média da AL.

De fato, a política neoliberal colocou o Chile imediatamente em recessão, e só pôde ser mantida por medidas autoritárias. Em termos nominais, a renda per capita despencou de US$ 1,623 em 1973 para US$ 694 dois anos depois! Seguiu-se uma lenta recuperação – em verdade, uma ilusão de recuperação – embalada por juros altos, elevado endividamento externo, e por um câmbio fixo mantido artificialmente em 39 pesos por dólar, às custas de todas as reservas internacionais do país.

A bolha estourou em 1982, quando a dívida externa chegou a US$ 17 bilhões e se tornou a maior do mundo per capita. O aumento fora de 400% nos 10 anos anteriores. Uma crise de enormes proporções tomou a economia do país: o PIB sofreu uma queda de 14,3%, e o desemprego subiu a 23,7%. Foram três anos seguidos de depressão. O filme que vimos no fim dos anos 90 era velho.

A partir de 1985 os ideólogos se resignaram e a política econômica se tonou mais intervencionista, o que possibilitou alguma recuperação, mas não o suficiente, como já explanado, para fazer da ditadura uma fase feliz na economia chilena. Detalhe muitas vezes esquecido, a recuperação foi ajudada pela alta do cobre, que representava um terço das exportações chilenas, e cujo preço internacional mudou de patamar de 86 a 90, ao experimentar uma valorização real de mais de 50%.

Foi só com a saída de Pinochet que entrou em ação o “crecimiento com equidad”, lema de seu sucessor Patricio Aylwin, que colocou em primeiro plano o combate à pobreza. Os governos seguintes continuaram este legado, de modo que o nível de indigência voltaria a 20% em 2000, e chegaria a 5% hoje. A economia do país finalmente tornou-se a mais próspera da região.

Claro que a direita, como em muitos outros lugares, tentou capitalizar os sucessos recentes, dizendo que “as bases” do crescimento de agora teriam sido lançadas por Pinochet. Mas é sintomático que, com a democracia consolidada, ninguém queira os militares de volta ao poder. O interlúdio direitista de Sebastián Piñera (2010-) parece estar chegando ao fim de forma melancólica, pois é amargamente rejeitado pela maioria da população.

Pinochet tornou-se o arquétipo do ditador sul-americano, e os 40 anos do golpe do La Moneda trazem uma lição inequívoca sobre os males do autoritarismo político. Mas precisamos ainda observar com cuidado e recordar as lições que nos dão as experiências do autoritarismo econômico, vulgo “neoliberalismo”.

[N.do.E.: outros artigos sobre a ditadura chilena:

À Sombra do Ditador: http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2010/08/resenha-literaria-a-sombra-do-ditador/

“A ditadura chilena e as várias faces de Pinochet”: http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2012/11/historia-outros-assuntos-a-ditadura-chilena-e-as-varias-faces-de-pinochet/

“A negação como sinônimo de alegria”: http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2013/01/historia-e-outros-assuntos-a-negacao-como-sinonimo-de-alegria/

2 Replies to “Pitaco: “O Terror de 11 de Setembro””

  1. Brilhante, simplesmente brilhante. Eu fui ao Chile há uns anos para uma reunião de mestrandos em Administração. Tivemos algumas aulas com economistas chilenos e, de certa forma, eles colaboravam para manter de pé o mito do sucesso econômico do neoliberalismo no Chile, apesar de quase todos concordarem que houve um certo efeito-vitrine: interessava aos EUA manter uma maré favorável ao Chile. Inclusive porque foram anos com o preço do cobre com viés de alta. Mas as visitas que fazíamos a qualquer área fora do Centro de Santiago mostrava que algo estava muito errado, e que havia pobreza demais para um país recém-saído de um ciclo virtuoso. O texto tem o mérito de explicar como as coisas realmente foram. Parabéns.

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