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Nesta sexta feira, a edição extra da coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro, joga luzes sobre a situação na Venezuela e me poupa de escrever o artigo que estava preparando sobre o assunto. Concordo ipsis litteris com a opinião do colunista.

Venezuela: e do Tancredo, ninguém fala?

Muitas coisas me surpreendem, mas poucas o fazem de forma tão insistente quanto o fetiche da mídia conservadora brasileira contra Hugo Chavez.

Como até o mais desavisado dos humanos deve saber, o Comandante se encontra em avançado estágio de câncer, tratando-se em um hospital cubano. E isso o impediu de estar presente na posse de seu mandato renovado, para o qual foi recentemente eleito.

Eu acho muito ruim que constituições permitam reeleições em sequência, porque o rodízio de poder é saudável. A constituição venezuelana, contudo, permite – é bem verdade que adaptada sob medida para eternizar Chavez no poder. Mas o fato é que Chavez foi reeleito em um pleito limpo, acompanhado de perto por observadores internacionais e disputado por um candidato oposicionista legítimo – que reconheceu a validade da eleição e admitiu a derrota sem quaisquer questionamentos.

Pode parecer pouco, mas na América Latina eleições limpas, sem reclamações dos adversários, não são uma regra universal. O segundo maior país do continente, o México, não faz muito tempo se envolveu em uma enrascada que deixou graves suspeitas acerca do resultado final da eleição. Esse não é o caso da Venezuela – nunca houve dúvidas de que Chavez venceu.

No Brasil, insuflado pelas notícias distorcidas de uma imprensa que dedica um espaço mínimo às questões internacionais, há quem pense que a Venezuela vive uma ditadura. Nada disso: a Venezuela tem eleições rotineiras, partidos de oposição, não há censura aos órgãos de imprensa, não há presos políticos.

A Venezuela tem, realmente, umas esquisitices. Lá, como aqui, a radiodifusão é uma concessão pública. Chavez manobrou para impedir que opositores declarados tivessem renovados os contratos que se encerravam – mas enquanto os contratos valiam, foram cumpridos até o final.  É um país dividido: pois há quem ame Chavez, há quem o odeie. Mas parece suficientemente óbvio que a esmagadora maioria do povo está ao lado de Chavez.

Que, diga-se de passagem, vem buscando suavizar sua imagem internacional. Suas eternas rusgas com a vizinha Colômbia ficaram no passado de Alvaro Uribe, o ex-presidente colombiano que, a despeito de seu envolvimento com narcotraficantes e uma tentativa de repetir  Chavez e mudar a constituição para se eternizar no poder, era ovacionado pelos conservadores brasileiros como se fosse um Churchill andino. Hoje, o presidente Santos e Chavez parecem estar em lua de mel.

Até com os Estados Unidos, a quem Chavez rotulou como o vilão da humanidade,  a Venezuela vem reconstruindo os laços. O Departamento de Estado norte-americano está mantendo conversas com Nicolás Maduro, vice-presidente e virtual sucessor de Chavez.

[N.do.E.: política, política, negócios à parte: vale lembrar que a Venezuela é um dos maiores fornecedores de petróleo aos EUA.]

O fato é que, enfermo, Chavez não tomou posse. O que, diga-se de passagem, foi recebido com naturalidade mundo afora. A OEA, por exemplo, apoiou a decisão venezuelana de deixar o vice presidente no comando. Os EUA estão neutros: mandam sinais de que não vão se envolver no problema, mas reconhecem Maduro como o governante venezuelano, de fato e de direito. Nenhum país no mundo (salvo engano meu) contesta a legitimidade da solução adotada.

A direita venezuelana, como se sabe, tem uma forte tradição golpista. Por mais de uma vez já tentaram manobras para apear Chavez do poder – uma vez chegaram mesmo às vias de fato. Aproveitando-se da doença, o candidato derrotado na última eleição, Henrique Caprilles, vem reivindicando a convocação de novas eleições.

Como em qualquer dúvida institucional que se preze, a questão tem lá seus meandros jurídicos e não dá para afirmar, com certeza absoluta, quem teria mais razão à luz do direito constitucional.

Uma coisa, no entanto, é certa: como deixam claras as manifestações populares em Caracas (foto), a solução empregada vai de pleno encontro ao desejo do povo venezuelano.

Até o insuspeito New York Times deixou isso bem claro aos seus leitores. Ou, se preferirem, o inimigo mortal de Cristina Kirchner, o diário Clarin, embora aproveite para criticar a presidente argentina por sua ida à Cuba para visitar o amigo Chavez, também não se arrisca a criticar a investidura de Nicolás Maduro à frente da Venezuela.

Babando de ódio, mesmo, só a imprensa brasileira. Mais até do que os oposicionistas da Venezuela.

Eu fiquei até com medo de ver o Arnaldo Jabor na Globo. Ele espumava de raiva e cheguei a temer por sua sanidade mental quando ele insistiu que Chavez implantaria a ditadura depois de morto – noves fora o fato de que Chavez ainda não morreu. Já o Globo exige que os dados da saúde de Chavez sejam tornados públicos e verificados periodicamente.

É curioso que essa notória torcida pela morte de Chavez e a aposta em uma crise institucional na Venezuela que jogue o país na incerteza venha dos conservadores brasileiros. Pois foi justamente aqui que um presidente eleito não tomou posse por razões de saúde.

Eu era adolescente, mas já era atento e posso falar de memória. Imagino que quase todos conheçam bem a história, mas como outro dia precisei dizer que o Tancredo era o avô do Aécio, não custa lembrar.

Os militares estavam no poder há duas décadas, mas o regime agonizava. O povo brasileiro realizou gigantescas manifestações pela realização de eleições diretas, mas o movimento foi boicotado pelo setor mais conservador da oposição, que apostou em uma transição mais suave – sem riscos de entregar o país a lideranças mais populares.

[N.do.E: leia-se: Leonel Brizola]

Assim se fez uma aliança entre a oposição moderada, representada por Tancredo Neves, e a ala civil que sustentava os militares no Congresso, representada por Sarney e ACM (o avô, claro). A chapa Tancredo/Sarney foi eleita de forma indireta, pelo Congresso Nacional.

Só que Tancredo estava doente, mas ninguém sabia. Ele resolveu esconder a doença e só se tratar depois da posse. O destino, porém, jogou contra e ele acabou sendo internado na véspera.

Bom, Sarney não poderia tomar posse.

A situação era bem parecida com a da Venezuela atual: o presidente do Congresso assumiria e daí para a frente era o campo da incerteza. Só que o presidente do Congresso era Ulysses Guimarães, um oposicionista autêntico, que os militares jamais tolerariam. Toda a transição lenta, gradual e de consenso que se construiu por quase um ano iria ruir em questão de dias, enquanto Tancredo se tratava.

Sem pestanejar, resolveu-se empossar Sarney assim mesmo e ele ficou por cinco longos anos à frente de um governo desastroso, mas cuja legitimidade nunca foi questionada por ninguém.  Os militares se recusaram a entregar formalmente o cargo para Sarney, mas ele tomou posse na marra e no fundo foi até melhor para eles. Mesmo Tancredo sendo um conservador obediente, Sarney era um homem nascido e criado dentro da ditadura, ou seja: jamais questionaria seus antigos aliados.

Em resumo, nós, brasileiros, diante de uma incerteza institucional, não tivemos qualquer pudor de encontrar uma solução rápida e que respeitasse a vontade popular, acomodando o país e seguindo em frente.  Não deixa de ser curioso que, 28 anos depois, alguns comediantes travestidos de analistas políticos se arvorem no direito de dar palpite nas soluções vizinhas.

Mas, por favor, quando forem lamentar as escolhas venezuelanas, tenham alguma honestidade intelectual e falem também do caso do Tancredo, ok?

(Foto: Gazeta do Povo)

One Reply to “Bissexta – “Venezuela: e do Tancredo, ninguém fala?””

  1. Podemos usar eufemismos, mas a constituição venezuelana foi golpeada (“soluções vizinhas”…).

    A imprensa brasileira bate palmas para golpes em Honduras e no Paraguai e esculhamba o governo brasileiro por se intrometer na vida alheia. Agora ela não bate palma para o golpe venezuelano e esculhamba o governo brasileiro por não se meter na vida alheia.

    E o governo brasileiro, assim como o articulista e o blogueiro, fazem exatamente o oposto da imprensa brasileira.

    É Fla x Flu, é questào de torcida.

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