Após um longo interregno, a nossa coluna “Resenha Literária” está de volta. Na verdade nos últimos tempos li três livros, mas a própria correria do dia a dia acabou fazendo com que não escrevesse sobre eles. Entretanto, farei um post próximo sobre estes – talvez em conjunto.
O livro tema de hoje é a segunda biografia do ex-vice presidente José Alencar, falecido neste ano de 2011:  “Os últimos passos de um vencedor – Entre a vida e a morte, o José de Alencar que conheci”. Escrevi aqui a resenha da primeira biografia, de autoria da jornalista Eliane Catanhêde. Comprei o livro na última sexta feira e li praticamente de uma vez só, em pouco menos de 24 horas – interrompendo a leitura da biografia do ex-presidente João Goulart.
Na verdade é um misto de biografia e relato absolutamente pessoal do jornalista da Rede Globo José Roberto Burnier, que acompanhou os últimos cinco anos de vida de Alencar praticamente de forma diuturna. Tanto que acabaria por se tornar amigo do ex-vice presidente e ver muitas vezes a emoção pessoal concorrendo diretamente com o dever profissional.
Burnier inicia o relato pelo fim: contando o desenlace com o falecimento do político, empresário e um guerreiro contra o câncer. Foi dele o “furo” de reportagem que permitiu anunciar com exclusividade a morte, e ao mesmo tempo a alegria que sentira por um brilhante desempenho profissional era descompensada pela tristeza de perder aquele que havia se tornado um amigo para ele.
Aliás, um parêntese: o livro mostra claramente como a Rede Globo tem bons profissionais e que quando o direcionamento político de suas lideranças – notadamente o alucinado reacionário chamado Ali Kamel – não interfere nas coberturas a emissora ainda faz excelente jornalismo. Burnier acabou por ter privilégios na cobertura, mas conquistados na base da confiança obtida e de seu trabalho persistente de repórter, não por pressões ou poderes.
O livro surgiu de uma entrevista dada por Alencar ao “Fantástico” (acima, o leitor pode revê-la) em 2009, logo após aquela que foi considerada “a grande operação”. Durou dezoito horas consecutivas, com a retirada de um grande número de tumores e com o uso de uma técnica nova que significava “lavar” o abdômen do paciente com uma solução quimioterápica aquecida a 42 graus centígrados. Uma cirurgia altamente agresssiva, com alto risco de morte na mesa mas que aquele momento foi razoavelmente bem sucedida.
A entrevista citada teve duas horas de material bruto e na edição foi resumida a aproximadamente oito minutos. Daquele material surgiu a idéia em conjunto de Burnier e de sua colega jornalista – e depois assistente na pesquisa – Patrícia Carvalho de registrar esta convivência com Alencar e escrever uma espécie de biografia.
O autor esteve na Zona da Mata mineira, local de origem de Alencar, fazendo pesquisas e obtendo informações sobre a família, a infância, a juventude e os primeiros passos como empresário. As informações restantes vieram de várias grandes entrevistas com o biografado, da convivência de cinco anos, de conversas com médicos, amigos, políticos, a esposa Mariza e os filhos.
Não é uma biografia clássica, e bem menos minuciosa na descrição dos fatos da vida de Alencar até se tornar vice presidente que o livro de Catanhêde. Contudo este é o grande mérito de Burnier: narra a luta de Zé Alencar pela vida dia a dia, momento a momento, nestes cinco anos de convivência. O repórter se tornou um amigo e muitas vezes confidente, de forma que o livro é um misto da história do biografado, impressões pessoais e da convivência de Burnier e do drama vivido na luta contra o câncer.
Um grande mérito é que o autor consegue passar seus sentimentos no relato durante as 240 páginas do livro. Em diversos momentos ele relata sua emoção e consegue emocionar o leitor. Eu, que sou uma pessoa de emoções contidas – o que me rende muitas vezes uma fama incorreta de “frio”, em diversos momentos me vi com os olhos marejados, quase às lágrimas. É impossível ficar indiferente às linhas escritas.
Esta é uma grande vantagem: a biografia de Catanhêde, embora talvez mais completa em termos de história pregressa, é fria.
Outro ponto de vantagem é que ao contrário da autora Burnier não perpassa suas preferências políticas no texto. O ex-presidente Lula, que tem seu papel prejudicado pelo ódio político e pessoal devotado por Eliane, é retratado como ser humano por Burnier, com grande admiração e sem juízos de valor político. A relação dos dois, homens diferentes mas de trajetórias de superação semelhantes, é mostrada com grande sensibilidade pelo autor.
Também são reveladoras as informações sobre a briga que os dois principais cirurgiões de Alencar tiveram por ocasião de uma das operações – chegando a haver um ríspido bate boca entre os dois na presença do paciente. Por outro lado chega a ser engraçado o comentário de outro de seus médicos, o doutor Paulo Hoff, respondendo ao jornalista que acreditava o fim estar próximo:
“- Tá difícil mesmo. Mas, em se tratando de Zé Alencar, eu não falo mais nada. Ele derrubou todas as minhas previsões.”
Burnier deixa claro que o ex-vice presidente chegou a um estágio de aceitação da morte e que em um determinado momento, com sua resignação o corpo finalmente “desligou”. Também são dramáticos o veto à sua presença na posse de Dilma Rousseff e na transmissão de cargo.
Destaque também para a narração da amizade entre o repórter e Alencar. Burnier é de extrema sensibilidade no relato e faz o leitor se sentir parte da história.
Não esgoto aqui os temas, mas é leitura indispensável para se entender um pouco da luta deste guerreiro pela vida. Também se faz importante pela revelação de bastidores de jornalismo que muitas vezes passam despercebidos.
Na Livraria da Travessa, custa R$ 35. Diria eu que é indispensável.
Abaixo o leitor pode ver a matéria feita por Burnier logo após a morte de Alencar. Também disponibilizoum capítulo do livro, “O Vencedor”.



“O Vencedor
“Desde que ficou claro que o homem sairia de novo pela porta do hospital, eu não pensava em outra coisa: uma entrevista exclusiva com o vice-presidente, a primeira depois do “milagre”.
Nos últimos cinco anos, convivi mais com gente ligada a Alencar do que com a minha família. Entre eles, havia um mineiro baixinho, cara de gente boa e muito gente boa. Adriano Silva, “sombra” do fundador da Coteminas desde os tempos de Associação Comercial de Belo Horizonte, mais de trinta anos atrás. Homem educado, de fala mansa, com “uais” para todo lado e de uma fidelidade sem igual. Tudo o que envolvia Alencar passava por ele. E com meu desejo não foi diferente. “Vamos ver. Primeiro ele precisa acordar…”, respondeu Adriano.
O vice tinha acabado de sair do centro cirúrgico e eu já estava querendo falar com ele. Continuei mantendo meu pleito de plantão. Só quando ele saiu do hospital foi que recebi uma resposta mais positiva. “Vou falar com ele. Acho que vai dar”, comunicou o assessor.
Como o leitor pode perceber, jornalista tem muitos motivos para roer as unhas. Até dos pés, se necessário. Tive que esperar oito dias até que Alencar saísse do buraco. “Oito dias…”, sussurrei para mim mesmo. Aquilo era tempo demais, tempo para a concorrência tentar o mesmo e acabar com a minha exclusividade. Eu já estava muito à frente dos colegas, mas “quase” é o mesmo que nada. A semana se arrastou, e o pronto-socorro do hospital já “piscava” para mim, tamanha era a minha agonia… Ligava todos os dias para Adriano. E a resposta insistia em permanecer igual: “Ainda não”. Alencar estava fraco, tinha dificuldade para respirar. Qualquer movimento, por menor que fosse, já o cansava. A alimentação custava a se normalizar, assim como o funcionamento do intestino, retalhado pela cirurgia. Era evidente a tensão dos médicos. Ele nunca demorara tanto para se levantar e andar. A essa altura, além de Alencar, eu e os médicos pouco dormíamos. Cada qual com sua agonia.
Eu fazia uma ginástica mental para não ficar imaginando que a qualquer momento alguém ia me “furar”, ou seja, ia conseguir a entrevista antes de mim. Durante o calvário, Adriano me disse que a cada dia que passava mais e mais veículos pediam o mesmo. E eu seguia rezando para o vice-presidente se recuperar, voltar a raciocinar e me atender. Eram muitas as graças e foram muitas as rezas. Até que o homem saiu do inferno.
“O vice-presidente topou”, disse calmamente o assessor. “Ele soube dos muitos pedidos e ponderou que o seu havia sido o primeiro e que você era o jornalista em que ele mais confiava.”
Desliguei o telefone emocionado, agradeci aos céus e liguei para a Globo: “Consegui uma exclusiva com o Alencar!”, disse ao meu diretor. “Agora é com você. Vou precisar de um bom espaço no Fantástico!”
Isso não seria problema. No boca a boca, a luta daquele senhor que, naqueles dias, passava dos 77 anos de vida, já atraía a atenção de sãos e doentes. Virou rotina para mim receber mensagens, cartas, livros de anônimos para entregar àquele lutador. Dentro do Sírio-Libanês, quem estava internado me puxava pelo braço e falava baixinho: “Esse homem é um guerreiro! É um exemplo para nós que enfrentamos uma doença. Ele nos dá esperança de que há uma saída”.
Pois o homem que se sentou à minha frente, numa tarde de quinta-feira, não tinha pinta de gladiador. Estava pálido, mais magro, mais envelhecido. Mas orgulhoso. O que o corpo mostrava os olhos ignoravam. Estavam ali, vivos, espertos, loucos para falar. E falou: “Eu ainda tenho um pouco de cansaço. A quimioterapia traz diversos efeitos colaterais, entre eles, esse”.
Alencar separava bem as palavras e as frases. A respiração mostrava que ele se cansava sem esforço. “Não foi nenhum heroísmo, não. Eu tinha que tomar essa decisão. Não tinha outra. Eu tinha que me operar.” Dobrou o lenço com o qual acabara de enxugar o rosto, botou no bolso de trás da calça e seguiu falando: “Eu não estou habituado às coisas fáceis. Eu sempre deparei, na vida, com problemas difíceis. E nunca deixei de enfrentá-los”.
O recado era claro. Quem quisesse levá-lo ia ter que suar muito mais do que a camisa… Aquele homem não ficava com a cabeça presa no problema, mas na solução. Ele dedicava toda a sua energia para resolver em vez de lamentar. Trocava ansiedade por solução. Foi assim sempre.
Tanto sabia que a cirurgia era de alto risco que assinou um documento, quatro dias antes, tomando ciência de todos os perigos que a intervenção poderia produzir. O autodidata pediu licença ao filósofo Sócrates e emendou: “Eu não tenho medo da morte. Tenho medo da desonra”. E prosseguiu falando do fim de todos nós. “A morte é um fenômeno natural. Assim como você nasce, você um dia vai morrer. A gente não tem que ficar pensando nisso. E você vai viver o tempo que Deus quiser que você viva. Eu não posso pensar que vai acontecer alguma coisa comigo sem que Deus queira. E se Ele quiser que eu morra é porque vai ser bom para mim. Deus não faz nada ruim contra ninguém.”
O vice-presidente parecia estar com uma carga extra de adrenalina nas veias e na memória. Contou “causos”, passagens da vida e a bronca antes da cirurgia. “Eu não podia deixar que a turma entrasse com cara e espírito de velório. Disse que nós não podíamos recuar da operação. Eu precisava do empenho deles. E tive dobrado.”
Acostumado a decidir, habituado a mandar, mas com elegância, com jeito bem mineiro mesmo… Foi assim que se referiu à mulher, companheira e “fiscal” contra algumas travessuras. “Ajuda tanto que até atrapalha. Porque ela não me deixa fazer nada. Por exemplo, não me deixa tomar um golo ! Não senhor!, ela fala.” E comentou dos brasileiros que torciam por ele. “Eles têm me ajudado muito. O que eles torcem por mim, as mensagens que eles mandam me deixam emocionado. E vêm de pessoas que não são do nosso dia a dia. São de gente que mora longe, que eu nunca vi.”
Humilde, Alencar agradeceu aos céus. “Deus não me deve, e nem quero que Ele me dê um dia a mais de vida de que eu não possa me orgulhar.”
E ganhou de vez o coração do povo ao dizer o que pensava da vida, dali em diante. “Espero legar uma herança da qual meus herdeiros possam se orgulhar. Mais nada.”
O homem fraco, cansado e magro saiu com pose de vencedor. 
Se o impacto de ler o que ele disse já é grande, imagine ouvir tudo aquilo, cara a cara. Saí atordoado do bairro dos Jardins, em São Paulo. Eu e toda a equipe. “Meu Deus! Quanta história!”, era o que eu ouvia de mim mesmo. Se pudesse, colocaria no ar a entrevista bruta. Quarenta minutos de estimulantes na veia. Sabia que muita coisa ficaria de fora. Guardei aquilo na memória, mas bem por perto…
Quando vimos a matéria editada pela primeira vez, não houve testemunha que não tivesse se comovido. Na segunda-feira pela manhã comprovei, mais uma vez, a potência da televisão. Todo mundo me parava para comentar a entrevista. Pouco depois das oito e meia, meu celular tocou: “É do Palácio do Jaburu. O vice-presidente vai falar”.
Alencar contou que já tinha visto cinco vezes a reportagem. Estava emocionado por ter conseguido falar aos brasileiros que o apoiavam. Estava agradecido. 
“Agradecido estou eu, presidente. Foi um privilégio compartilhar daquele momento. As pessoas não param de perguntar sobre sua saúde.”
Tão logo o vice desligou, surgiu na minha frente o então presidente. Na Fiesp, ao lado de sua colega argentina Cristina Kirchner, Lula desviou-se do caminho e veio na minha direção. Abraçou-me e disse no meu ouvido: “Adorei o que você fez ontem com o Zé Alencar! Muito bonito!”.
Definitivamente, as mensagens de Alencar haviam se espalhado pelo país afora e alcançado os lugares mais improváveis. No mesmo dia, seus ex-colegas lembraram-se dele no plenário da Câmara dos Deputados.
Alencar havia virado assunto nacional. A guerra daquele homem pela vida despertou sentimentos e inspirou atitudes que me fizeram acompanhá-lo, seja de perto, seja de longe. Aquilo me atingiu fundo. Eu precisava ouvi-lo mais e, depois, contar a todos.
Na semana da Páscoa, fui à casa dele apresentar oficialmente a ideia do livro e a minha colega, Patricia Carvalho, que me ajudaria na pesquisa. Eram oito da noite quando entramos na ampla sala de visita. Alencar nos recebeu na porta vestido como sempre, de paletó e gravata. Muito cordial, apresentou-nos as duas filhas, Maria da Graça e Patrícia. Adriano, presente, dispensava a cerimônia. Antes de nos sentarmos, o anfitrião nos levou ao corredor e nos mostrou diversas fotos que cobriam as paredes. Parou diante de uma que registrava seu casamento, e seus olhos brilharam. Ficou claro por que aquela moça de Caratinga fisgou o comerciante à primeira vista. Dona Mariza estava linda.
Entramos à esquerda, no seu escritório íntimo. Era uma sala simples, com um sofá de couro preto e uma TV. Apesar de ter se tornado um dos homens mais ricos do Brasil, Alencar mantinha a humildade. Nunca gostou de esbanjar.
A reunião foi na salona decorada bem à mineira, com motivos barrocos. Tinha pompa, era sóbria e testemunha de tomadas de decisões. Quando expus o que faria, o homem destrambelhou a falar. Contou o que lhe veio à cabeça, sem compromisso com a cronologia. A certa altura, nossos olhos se desviaram. Não era para menos. A copeira trouxe sua bebida preferida, o uísque Buchanan s.
A surpresa foi geral, até da empregada, que ficou paralisada sem saber o que fazer. “Serve! Já falei que é para servir!”, mandou o patrão.
O “golo” nas reuniões informais era de lei. E ai de quem o reprimisse. O silêncio foi tal que deu para ouvir o líquido cor de caramelo se esgueirando pelo copo e fazendo o gelo estalar. 
A cada gole, uma história diferente. O neto Davi, sua paixão, apareceu com uma caixa de chocolate. “Oferece às visitas”, ordenou o avô.
Alencar abraçou o menino como eu nunca o tinha visto fazer com ninguém. Despejou tantas loas ao garoto que o pequeno ficou todo sem jeito. Duas horas e meia depois de entrarmos, saímos com a cabeça cheia de planos.
No encontro, o patrono sugeriu diversos parentes e velhos companheiros que deveríamos ouvir. Eu teria que ir à região de Muriaé, onde ele nasceu, para respirar o ar do ambiente que um dia foi o dele e para onde pouco voltou. Mas, antes de todos, teria que gravar com ele o mais breve possível. A preocupação com o tempo era minha e dele também. Alencar se automotivava, mas mantinha os pés bem no chão. Sabia que o inimigo era poderoso e cada vez mais forte. Sabia que poderia morrer logo. Marcar e desmarcar o primeiro depoimento virou rotina. Ora ele estava fazendo quimioterapia, ora estava ocupado com o trabalho, muitas vezes substituindo o serelepe viajante presidente Lula. Cheguei a comprar passagem para Brasília para uma data que acabou riscada da agenda. Decidi então começar pelo que estava à mão. Liguei para Toninho, o irmão mais próximo do vice-presidente, e marquei minha viagem à Zona da Mata. Ao mergulhar no passado de José Alencar, conheci um personagem chamado Zezé.”

(pp. 49-55)

2 Replies to “Resenha Literária – "Os últimos passos de um vencedor – Entre a vida e a morte, o José de Alencar que conheci"”

  1. Acabo de ler o seu texto que achei por acaso quando procurava informações sobre o livro do Roberto Burnier. Alimentou ainda mais minha vontade pela leitura deste livro e agradeço a disponibilidade destas informações tão cuidadosamente aqui postas a propósito da recomendação de leitura. Com a devida divulgação, faço também um agradecimento.

    Michelle

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