Dia desses ouvi de um conhecido que a volta do Rock Rio, surfando na onda da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016, é a prova mais evidente da revitalização do Rio de Janeiro. Que me perdoem os roqueiros de plantão e os fãs da música pop, mas o dia em que o critério para medir se a cidade está viva, morta, ressuscitada ou revitalizada for um festival de rock, é melhor passar a régua pedir a conta. Tenho lá os meus critérios, absolutamente pessoais, para saber como anda o Rio de Janeiro. Vamos a eles.
O Rio vai dar provas de que o mar está para peixe se a Festa da Penha voltar a ser o que era – uma espécie de carnaval em outubro, onde o sagrado e o profano, o tambor e a reza, a procissão e a ginga da capoeira se encontravam sob as bênçãos da santinha que, do alto da ermida, zela pelos cariocas. Fica a dica para o poder público – dar as condições necessárias para que o povo faça o fuzuê na Penha vai ser a prova mais eficaz da pacificação do Complexo do Alemão e representará o reencontro da cidade com o que há de mais caro na sua história.
O Rock in Rio vai acontecer no final de setembro, coincidindo com a festa de São Cosme e São Damião. A cidade estará mais viva se a festa dos santos meninos não for usada por certos segmentos neopentecostais para manifestar a mais torpe discriminação contra o povo da umbanda e do candomblé. O hábito de correr atrás de doce, comer o caruru dos meninos, festejar os erês nos terreiros, foi se transformando nos últimos tempos quase que em estratégia clandestina de guerrilha. Conheço vários casos de crianças proibidas de pegar doce em virtude das pregações fundamentalistas que tocam o terror na molecada. Os comandantes do bonde da aleluia argumentam que os doces são enfeitiçados, as cocadas e mariolas saíram diretamente da cozinha do diabo e por aí vai.
O meu Rio de Janeiro, permanentemente ferido pelo crime da violação do espaço sagrado do Maracanã, será uma cidade melhor quando clubes tradicionais da Zona Norte e da Zona Oeste tiverem condições de ocupar novamente uma posição digna no nosso futebol. São Cristovão, Olaria, Bangu, Bonsucesso, Portuguesa da Ilha, Campo Grande e Madureira correm permanentemente o risco de sucumbir a esses estranhos tempos do futebol “big business”, repleto de jogadores-celebridades, estádios-shopping centers e camisas tradicionais transformadas em outdoors, onde escudos de clubes somem diante da profusão das propagandas de carros, bancos, funerárias, pomadas, empresas de construção civil, desodorantes e quejandos.
O Rio será mais carioca quando os filmes promocionais de divulgação de eventos não se limitarem a apresentar a imagem de cartão postal de uma Zona Sul estilizada, com favelas misteriosamente apagadas no tratamento das imagens e os subúrbios solenemente ignorados. Um Rio que haverá de repudiar as grotescas excursões de turistas a comunidades em jipes de safáris, munidos de câmeras e binóculos e preparados para fotografar os cariocas como se fossemos leões da savana.
Se querem mesmo revitalizar a cidade, é melhor mandar para escanteio os arquitetos moderninhos, que entendem a alma carioca tanto quanto eu entendo a alma dos esquimós, e considerar crimes de lesa-majestade “intervenções na paisagem” (expressão descolada para maluquices arquitetônicas) que maculem a sagrada vista das águas da Guanabara. Os sambas Cidade Mulher e Linda Guanabara, de Paulo da Portela, devem ser ouvidos como verdadeiras Marselhesas tupiniquins, a inspirar a derrubada dessas medonhas bastilhas de concreto que aprisionam a beleza.
É preciso, por fim, parar com essas declarações, que vez por outra os homens públicos sacam da cartola, de que o Rio vai mostrar ao mundo do que é capaz. Ao invés de se preocupar demasiadamente com o que o mundo acha da cidade, é melhor saber o que os cariocas pensam sobre ela. Enquanto a opinião de um investidor estrangeiro sobre o Rio tiver um peso maior do que a de um morador de Brás de Pina, Ramos, Acari, Fazenda Botafogo, Lins, Pilares, Olaria, Penha, Benfica, Irajá, Parada de Lucas, etc. eu vou desconfiar, daqui do modesto coreto do meu jardim, de que na banda dessa tal de revitalização tem gato na tuba.
(Texto publicado no jornal O Globo, 14 de agosto de 2011)

13 Replies to “O QUE PENSAM OS CARIOCAS?”

  1. O amor carioca em grande destaque. No entanto você esqueceu do ameriquinha que meu avô amava e acredito que faz parte dos amores cariocas. abs

  2. Como sempre, irretocável. É lastimável tentarem nos impingir, nesse discurso de que o Rio vai se mostrar ao mundo e tal, o papel mesmo de leões de Savana. O Rio tem que deixar ser Rio (e está deixando de sê-lo) para que o mundo o conheça.

  3. Olha,seu artigo foi a melhor coisa que já li nos últimos anos. Parabéns. EStou de alma lavada.
    Bjsssssssssssssssssssssss

  4. Comentário que fiz a uma amiga que me apresentou o blog — do qual me faço leitor a partir de agora com muito prazer: me preocupa ainda mais no que NÃO pensa o carioca ultimamente…

  5. Bom , tem lá seu lado positivo, enquanto a galera do oba-oba, os descolados, os antenados e cia estarão reunidos no Rio Centro nos eventos de sambistas estarão os sambistas.
    E a vontade , o que é o melhor , com espaço , entende…

  6. Caramba, Simas, que bom ler este desabafo maravilhoso! Estava procurando-o desde que o Digão da Folha me repetiu a primeira parte!! Destes voz ao que me vinha pela alma, criado que sou em Olaria, Ramos e Bonsussa, tardio admirador do samba e de tantas outras boas coisas que fazem o Rio de fato maravilhoso!!

Comments are closed.