Excepcionalmente no domingo, a coluna “Sobretudo”, assinada pelo publicitário Affonso Romero. Em belo texto, serpenteia por uma torrente de sensações que nos levam até a pensar que é um texto anti-clerical ou anti-religioso, mas que na verdade é uma ode à paixão.

Vamos ao texto.

Minha Catedral

Houve um tempo em que eu não freqüentava templos. Orei sobre elementos da natureza, grama, pedras, areias, numa festa pagã permanente. Nem tanto a festa cotidiana, mas o paganismo como hábito.

No tempo seguinte, a suposição de que, para demonstrar ao mundo o amadurecimento que eu me cobrava, eu deveria me devotar a uma só divindade. E vivi simulando fé, convencendo-me de uma crença fria e distante, ainda que por vezes reconfortante.

Tudo parecia transcorrer bem, os dias seguiam calmos e sem paixão.

Até que, um dia, o pastor de mim mesmo seria eu. Eu subiria ao púlpito, falaria para muitos. Anotei o endereço. Não mais importa, tanto tempo depois. Importou, e importa, o destino que eu encontrei naquele lugar.

Naquele dia eu vi a minha catedral pela primeira vez. Ela veio a mim, surgiu à minha frente. Bela, reluzente, fresca, exalava eternidade, prometia paraísos.

Prostrei-me de joelhos aos pés de sua torre. Não que tenha feito isso literalmente: não caí ao solo, elevei-me aos céus. Entretanto, meu espanto era evidente, o ar faltou-me, fui tomado de calafrio. Desta forma, se não havia caído realmente ao solo, estava tão fora de mim que já não importava o lado ou a altura, a direção ou a perda de senso, eu já não era meu.

Durante dias fui até metade do caminho para rever a bela edificação e dali voltei. Cheio de dúvidas, de como me portaria, se seria bem recebido ou não, se era correto me deixar arrebatar. Certeza, uma só: meu coração e minha fé haviam mudado para sempre.

Por fim, a catedral me aceitou, assim como eu me fiz convertido. Sem, contudo, dedicar exclusividade na fé. Ainda havia o compromisso em minha fé fria e distante e, por isso mesmo, aparentemente mais segura. Quanto mais os deuses se colocam presentes em sua vida, mais e mais o poder afeta aquilo que deveria parecer estável. Os benefícios da presença divina não brotam sem conflitos e tufões. O não-acontecer, muitas vezes, pode ser mais confortável. Um carro não enguiça quando fica parado na garagem.

Então, com medo que a beleza resplandecente de minha catedral cegasse meus olhos, afastei-me dela. Reneguei a mudança que se fazia em minha alma. Pensei: se a catedral parece tão bela aos meus olhos, se há tanto ouro e prata, uma fé tão vaidosa de si não pode ser eterna. E preferi a eternidade morna e certa. Ou, aparentemente certa.

Com o passar dos meses, a chama que ardeu em meu peito virou uma imensa pedra de gelo, um sentimento que me paralisou e me fez tremer, não mais de sensações, mas de frio invernal. Fui desacreditando em tudo. Primeiro, na vida, na felicidade. Depois, na possibilidade de rever qualquer catedral que não habitasse apenas meus sonhos. Por fim, na própria fé.

Quando acordei do pior pesadelo e fui à procura do sentimento que havia perdido, certo de que jamais haveria de reencontrar a minha catedral, mas que talvez pudesse encontrar a mesma beleza em outro templo, corri a corrida desesperada daqueles que não sabem que rumo tomar. Não sabia sequer se haveria algum rumo possível.

Não, não foi uma oportunidade única aquilo que eu houvera jogado fora. Era bem mais que isso. Era a oportunidade única num tempo único. Esta constatação seria a morte, se a morte fosse tão ágil e benevolente.

Mais ocioso é o destino, que em suas tramas inventa chances que somente o mais criativo dos autores teria em mente. E o destino tem todo o tempo para tecer suas malhas, quase sempre o tempo que dura uma vida inteira.

Meu destino, ainda que ociosos como seus iguais, me deu a sorte de ser mais expedito que toda a vida que havia pela frente. Passaram-se muitos anos, é certo.

Tempo suficiente para que todas as minhas crenças definhassem, principalmente a minha crença em mim mesmo e na minha capacidade de pegar o bonde. Mas tempo menor que a morte de tudo.

Foi então que o acaso se fez agora. Como a montanha na Bíblia, minha catedral veio a mim. Não de uma forma invasiva, como muro postado à minha frente. Mas pelas vias tecnológicas que não aconteceriam mais de uma década antes. Da mesma forma que há pastores pela tevê, pregadores pela internet e rabinos de aeroportos, minha catedral usou de novos meios para reavivar minha fé.

Não demorou tanto para que eu reencontrasse suas belezas. Agora, o prédio já era repleto de marcas, que acusavam menos a passagem do tempo e mais a passagem da vida. A catedral sentira falta da minha fé tanto quando eu havia me feito cego à falta de sua luz.

Todo final assim merece ser feliz, tudo deveria recobrar a cor, não é mesmo? Talvez, e eu acreditava que assim seria. Mas não tão facilmente. A fé que não resistiu a ser posta à prova uma vez, teria que passar por mais de duas provas para se firmar. E foram muitas as provas que nos impusemos mutuamente, até que pudéssemos nos reconciliar em ato santo. Plenamente, integralmente. Uma fé imediata, um dia. Reencontrada, mais de uma decana depois. E reconstruída ao longo – agora sim! – de uma vida inteira.

O tempo todo que o tempo e o destino necessitarem para tecer a trama da vida e dos santos autos.

Eu vivo sob a cúpula de minha catedral. Eu me reconforto dentro de suas paredes. Só ali a minha alma pode despir o peso de meu corpo e se reconciliar com o que verdadeiramente é. Só ali, eu sou. Hoje, menos importa a beleza de seus afrescos, o estado de sua via sacra, as imagens de seus santos, a batina de seus pregadores. Minha catedral é refúgio e estímulo. Mas também é a agitação apaixonada das certezas, a instalação permanente do fogo da fé, o conturbado questionamento da vida, o estudo, a reflexão, o aprendizado. Portanto, não é só o adormecimento relaxante, é também o refasto e a digestão, o sonho e a alucinação.

Viver sob minha catedral é ter a razão superior da existência. Isso faz as outras coisas parecerem tão menores que a vida se torna mais simples, frente a coisa tão complexa.

Minha razão e minha loucura, fundidas nas entranhas da minha mente, formadoras do que eu sou, e já não mais me assustam. Meus fantasmas, que trabalham por mim e, fantasmas que são, têm superpoderes, carregam quanto peso for preciso, superam quantas paredes forem erguidas. Eu vivo minha catedral, oro, alimento corpo e alma, sou protegido e cuidado. Recupero cada minuto perdido nos anos de afastamento, renovo os votos e sigo até onde o destino for mais cioso que ocioso.

Não sei se há uma catedral em sua vida, amigo leitor. Ela pode ser erguida em devoção a um amor terreno, a um amor idealizado. Ela pode ser plantada no campo onde joga seu time. Ela pode comportar discursos políticos, profissões ou cultos de fé estritamente religiosa. Não há catedral melhor que outra. Minto, há sim: cada um tem sua melhor catedral, melhor para si mesmo, melhor para sua vida. Só há um requisito: tenha sua catedral, uma bela catedral, procure por uma, ache-a e guarde-a da melhor forma possível. Mas tenha uma.

Finalmente, divido com o amigo leitor a versão de Zélia Duncan para o sucesso de Tanita Tikaram, e “dedico esta canção” aos tijolos sólidos e permanentemente belos de minha catedral.

“O deserto que atravessei
Ninguém me viu passar
Estranha e só
Nem pude ver que o céu é maior
Tentei dizer
Mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar
É deserto onde eu te encontrei
Você me viu passar
Correndo só
Nem pude ver que o tempo é maior
Olhei pra mim
Me vi assim
Tão perto de chegar
Onde você não está
No silêncio uma catedral
Um templo em mim
Onde eu possa ser imortal
Mas vai existir
Eu sei, vai ter que existir
Vai resistir nosso lugar
Solidão, quem pode evitar?
Te encontro enfim
Meu coração é secular
Sonha e desagua dentro de mim
Amanhã, devagar
Me diz como voltar
É deserto onde eu te encontrei
Você me viu passar
Correndo só
Nem pude ver que o tempo é maior
Olhei pra mim
Me vi assim
Tão perto de chegar
Onde você não está
No silêncio uma Catedral
Um templo em mim
Onde eu possa ser imortal
Mas vai existir
Eu sei, vai ter que existir
Vai resistir nosso lugar
Solidão, quem pode evitar ?
Te encontro enfim
Meu coração é secular
Sonha e deságua dentro de mim
Amanhã, devagar
Me diz como voltar
Se eu disser que foi por amor
Não vou mentir pra mim
Se eu disser deixa pra depois
Não foi sempre assim
Tentei dizer
Mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar

(Foto: Taj Mahal, Portela 2009, enredo sobre o amor. Autor: Fabrício Gomes)