A série da Globo sobre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins merece uma observação: a grande Emilinha Borba apareceu pouco. Eu, que sou torcedor da Emilinha desde que me conheço por gente, fiquei um pouco desapontado.

Não, eu não vivi a era do rádio. Mas cresci numa família que me deu boas referências musicais; suficientes para que a Favorita da Marinha seja a minha cantora de Carnaval predileta. E a coisa é séria.

É séria porque há algumas composições carnavalescas que, definitivamente, estão entranhadas na minha alma como um daqueles encostos brabos, que não tem descarrego que faça ir embora.

São as trilhas sonoras do meu mapa sentimental, habitante da mui leal e heróica cidade de São Sebastião, cenário por excelência das marchinhas mais sacanas.

Em 2007, por exemplo, escrevi alguns textos sobre as marchinhas da minha vida. Uma das músicas citadas foi a Marcha do Remador, de Antonio Almeida e Oldemar Magalhães, gravada exatamente pela grande Emilinha Borba. É em homenagem a ela que relembro, com modificações, o que escrevi à época. Foi o seguinte:

Toda vez que subo num avião tenho a firme convicção de que o bicho vai cair. Me preparo para fazer algumas orações aos deuses. Ocorre, porém, estranho fenômeno, daqueles que o sujeito só deveria confessar ao médium de mesa branca depois da morte: Invariavelmente, na hora em que tento rezar, esqueço as palavras sagradas e troco o Pai Nosso pelo refrão :

Se a canoa não virar
Olê Olê Olá
Eu chego lá

Houve uma ocasião em que o bicho pegou. Estava indo à Cuba em um avião da Cubana de Aviacion que mais parecia o irmão mais velho do 14 Bis. A geringonça, um Antonov de fabricação soviética, era, para usar o termo apropriado, uma banheira. Embarquei motivado por uma quantidade industrial de álcool, que eu não sou trouxa de chegar de cara limpa pro acerto de contas com o Todo Poderoso.

Mal aquela espécie de carro de boi alado começou a se preparar para a decolagem, veio o sinal de alerta. Problemas no combustível. Saiu todo mundo. Mais bebida, que ninguém é de ferro.

Voltamos ao avião. O piloto, com voz de dublador de filme de vampiro paraguaio, anunciou uma pane no sistema de refrigeração. Aeromoças que mais pareciam personagens de filmes do Almodóvar se entreolhavam. Descemos novamente. Fui tomar um negocinho pra descontrair.

Voltamos ao avião mais uma vez, depois de algumas horas. O clima entre os passageiros era de comoção absoluta. Pairava entre as poltronas a sombra da indesejada das gentes, epíteto do poeta para a sinistra senhora. Uma dona, que tentava manter a calma, sugeriu que os passageiros orassem pelo sucesso da empreitada. Ela mesma puxou um Pai Nosso e uma Ave Maria.

Me pareceu, confesso, que aquilo estava mais para extrema-unção coletiva que outra coisa. Em desespero, um cidadão ao meu lado jurou que a velha tinha terminado a reza com um profético agora é a hora de nossa morte, amém.

Ela perguntou, então, se alguém gostaria de orar representando algum outro credo religioso. Cheio de goró, considerei minha função rezar pros orixás, caboclos e encantados do Brasil. Com o arrojo de um Garrincha deixando o João estatelado, gritei: – Eu rezo!

Concentrei-me e mandei na lata. Quem disse que saiu alguma rogação? Nem a pau. Como por encanto, da minha boca saíram os versos da Marcha do Remador, cantados, inclusive, com a modificação singela que as torcidas faziam no Maracanã:

Se essa porra não virar
Olê Olê Olá
Eu chego lá

Subitamente, em completo descontrole e impactado pela lembrança da voz da Emilinha, comecei a pular como se estivesse na matinê do baile do Municipal aos sete anos de idade, cantando a marcha aos berros. Pensam que fui seguido por um coro? Nadica. Pelo contrário. Fracasso absoluto.

A senhora ficou puta dentro da roupa, os passageiros me chamaram de palhaço pra baixo e eu, solitário, encolhido como pinto em ovo, afundei-me na poltrona e fechei os olhos. O camarada que viajava comigo foi sincero: – Você tem sérios problemas.

É, talvez tenha. Como acredito, porém, que maiores são os poderes do povo, desisti de lutar contra o que é muito mais forte que eu. Hoje, se a onça ameaça beber água, não tem Pai Nosso, Ave Maria, ponto de macumba ou coisa que o valha. Mando logo uma pra dentro em honra do compadre, seguro firme a guia do Azulão e digo na lata, caprichando no gogó, a Marcha do Remador.

É que nem São Longuinho, rapaziada. Ninguém leva fé mas funciona que é uma beleza.
Evoé e viva a Favorita da Marinha !
Abraços

10 Replies to “A MARCHA DO REMADOR COM EMILINHA BORBA – UMA ORAÇÃO”

  1. Caramba,

    Todo mundo pela hora da morte, esperando uma oração capaz de fazer o próprio Cristo chorar e me vem um doido e bate de prima : Se a canoa não virar … ?!??!

    Cara acho que o passageiro que estava ao seu lado foi bem comedido. Talvez por medo da reação incalculável !!!

    Que situação !!! Ri muito !!!

    Um abraço

    Raphael

  2. Cara,
    como sou bem mais velho do que você,
    ainda me lembro de cantar no Maraca
    os versos originais:
    “Se a canoa não virar
    Olê Olê Olá
    Eu chego lá”.
    Depois é que, já no início dos anos 70, se não me falha a memória,
    é que “canoa” virou “essa porra”.
    Ah, sim, também adoro a Emilinha.

    Um abraço.

  3. Simas você é um pandego ou lembrando Nei Lopes, vc deve ter feito parte daquele primeiro bloco Afro da Bahia o PÂNDEGOS D’ÁFRICA. Conheci esta canoa nos carnavais de 70, mas a versão do palavrão logo apareceu. Na minha casa ouvia-se mais Dalva e sua famosa bandeira branca, minha madrasta cantava isso todo dia; mas, ela me apresentou diversas seresta de Noel então salvou a pátria. Vc há de convir que só ouvir bandeira branca todo dia não dá né?! Adoro suas histórias! Bjs!

  4. RAPHAEL, a coisa foi tensa. Abração.

    SYLAS, é engraçado de ler. Mas na hora, meu velho… Abraço.

    CIRNE, é isso mesmo. No início dos anos setenta virou pornografia. Abraço

    VANESSA, o fundo de garantia é bom? Beijo

    Valeu, PAULO. Abraço.

    ANÔNIMA, obrigado, mas quem é você?

    DENISE, Bandeira Branca mais de três vezes se torna tão emocionante quanto uma corrida de tartarugas sob efeito de Lexotan. Viva Emilinha!! Beijo

    Valeu, DANIEL. Abraço

  5. Também tomei este avião para visitar Cuba. Lembro da fumaceira que saia na parte superior, acima do bagageiro. Bom, como estou escrevendo aqui, suponho que o avião chegou ao destino. Um abraço!

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