O menino tem sonhos…

O menino joga bola, solta pipa, roda peão e quando vai dormir, sonha. Sonha com seu futuro fazendo gol num estádio lotado por seu time do coração, virar um ator de TV e beijar a mocinha, virar médico, advogado, professor, policial.

O menino tem sonhos…

Sonha crescer. Ser adulto como seu pai. Ter barba no rosto, voz grossa, conhecer uma menina legal (ou menino, viva a diversidade), namorar, casar, ter filhos e criar sua família. Sonha fazer por sua gente, seu país, ser alguém produtivo.

O menino tem sonhos…

Sonha ter seus primeiros cabelos brancos, alcançar a maturidade, envelhecer, ter uma boa aposentadoria e desfrutar, enfim, de tudo que investiu durante a vida. Viajar, conhecer lugares, se divertir. Um dia, bem velhinho, minutos antes de morrer refletir a vida e ver que valeu a pena.

O menino tem sonhos…

Ele só quer ser feliz. Andar tranquilamente na favela em que nasceu. Ter estudo, cultura, saúde, saneamento, moradia, o respeito da sociedade e dos governantes. O menino quer pelo menos ter o direito de se preparar e competir com igualdade nessa luta diária que é viver.

O menino tem sonhos…

O menino tinha sonhos…

Seus sonhos acabaram em um terreno baldio, em uma via pública na contramão atrapalhando o tráfego, no porta-malas de um carro ou na areia de uma praia tentando fugir de um genocídio.

O menino viu seus sonhos despedaçarem numa bomba caindo no Japão, pulverizados num ataque aéreo no Vietnã, destruídos pela polícia carioca, esmagados pelo tráfico do mesmo lugar. Perdidos na Candelária, chacinados em Osasco. Afogados em uma praia da Turquia.

O menino tinha sonhos e agora está inerte. Tentou fugir do horror da guerra. Horror que o pequenino em tão remota idade nem sabe o que significa. Tão novinho já tem de lutar pela sobrevivência e lutando, vê as águas levarem seus sonhos.

A natureza não tem culpa. O menino não tem culpa. Somos todos culpados.

Temos culpa porque enquanto o homem exerce seus podres poderes esquece que é o único animal racional e faz sofrer seus semelhantes por ganância, cobiça ou fé. Sim, fé. Aquela que devia unir os povos e nos aproximar de um ser espiritual maior acaba nos afastando do criador.

O ser racional é o único ser que mata sem ser por defesa ou alimento. É o que caça um leão, lhe deixa agonizar até a morte e arranca sua cabeça para usar como troféu. É aquele que quer punir, trancafiar, amaldiçoar, assassinar os jovens de sua espécie em vez de tentar lhe ensinar e assim fazer um mundo melhor.

O ser racional é tão burro que incentiva a violência que vai se voltar contra ele.

O menino não tem mais sonhos.

Agora ele dorme na praia turca. Seu frágil corpo se confunde com as areias brancas do lugar e tem a face beijada pelas águas. Águas mandadas por Iemanjá como uma forma de carinho e para mostrar que existe beleza nessa vida. Todos os dias perdemos crianças e seus sonhos para nossa fragilidade de espírito e compaixão. Mas os flashes e o alcance global, dessa vez, resolveram dar um tapa na cara de todos nós.

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, pensam na economia, em disputa política, em capitalismo, comunismo e outros ismos, pensa que seu Deus é maior que os outros as águas resolvem levar de vez o menino.

Aos poucos a maré tira o menino dos holofotes e a comoção vai passando. Outros meninos irão surgir afogados em nossa ignorância e egoísmo. Seja em uma praia qualquer ou com tarjas nos olhos.

E nós?

Esqueceremos do menino como um dia esquecemos que também já fomos um e tínhamos sonhos.

O menino tinha sonhos.

Nós temos um pesadelo.

Twitter – @aloisiovillar

Facebook – Aloisio Villar

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