Semana passada escrevi uma coluna chamada “O menino”, sobre o menino cujo corpo apareceu em uma praia da Turquia fugindo da guerra e fiz paralelos com vários meninos. Com a infância perdida.

No começo da semana me deparei com outro corpo. Não de uma criança distante, mas de uma pessoa bem perto.

Voltava da casa de minha noiva, indo para a minha, quando atravessei a passarela em frente ao Parque União. Vi uma multidão na mesma olhando para baixo e percebi que algo diferente ocorria. Olhei para baixo, ainda andando e vi um ônibus parado e dois carros da polícia. Continuei andando, tentando entender, até que entendi.

Como diria um locutor esportivo antigo. “Tá lá um corpo estendido no chão”. Mas não era metáfora futebolística.

Tinha mesmo.

O ser humano é curioso por natureza e tem uma curiosidade mórbida. Evidente que, para deter um grupo de pessoas tão grande no meio de uma tarde, é que algo grave ocorrera – e eu não sou diferente. Andei pela passarela olhando para o corpo. Nessas horas tento fingir que sou diferente, que essas coisas não mexem comigo, mas não tem como.

Curioso como o assunto morte mexe tanto com a gente e a presença de um corpo chama tanta atenção mesmo nós sabendo que é a única coisa certa na vida e que todos nós um dia seremos “apenas um corpo”.

Desci da passarela, cheguei ao ponto e ali praticamente “dei de cara” com o corpo. Estava do outro lado da rua estirado no chão, ao lado dos policiais. Rastro de sangue no chão saindo de sua cabeça. Camisa azul, bermuda: devia ter uns trinta anos. Ninguém se preocupou em pelo menos por um plástico em cima e dar a ele um pouco de dignidade.

Desconforto no ponto. Todos tentavam ignorar a presença do corpo, mas não tinha como. O rapaz morto estava ali. Até que uma pessoa soltou:

“Devia ser crackudo”.

Contando essa história durante o dia ouvi várias vezes a mesma frase e nela a entonação de minimizar, como se esperasse de volta um “Ah sim”. Como se eu entendesse a situação – e até achasse normal.

Não. Não é normal.

Usuarios-de-crack-na-Av.-BrasilPara o leitor de fora do Rio de Janeiro, informo que realmente aquela área é intensa de “crackudos”, expressão usada para os usuários de crack. Eles perambulam pela região, usavam as obras (já encerradas) do BRT para se esconderem e consumirem a droga e entorpecidos, muitas vezes, atravessavam a avenida no meio dos carros. O próprio Migão uma vez por muito pouco não atropelou um usuário neste trecho.

Não é por serem usuários de drogas é que devemos minimizar uma morte, usar a expressão “Ah sim”. Sim: eu sei que se arriscam quando atravessam a avenida e tenho quase certeza que o motorista do ônibus não teve culpa nenhuma.

Mas minimizam porque a nossa hipócrita sociedade que se acha perfeita e faz coisas que até o diabo se envergonha debaixo dos panos vê o viciado em drogas como escória, vagabundo e que a morte de um desses não deve incomodar. Veem um “crackudo” como barata que pisam, deixam seu resto em um canto e prosseguem a vida normalmente.

Ninguém é viciado em drogas porque quer. Tem que ser muito doido ou imbecil para largar uma vida, família, casa, amigos para morar na rua, se sujeitar a humilhações, perda de peso, da saúde, se prostituir, arriscar a vida e viver como um zumbi. Ninguém quer isso. Em pleno ano de 2015 tratam a droga como vagabundagem e não como doença.

Ninguém escolhe ser drogado, ninguém escolhe ser um menor infrator. Ser menino de rua e roubar bolsas no centro da cidade. Todas as pessoas, se tiverem oportunidades na vida, vão querer ser algo melhor.

aeroporto cláudioVagabundagem, safadeza eu vejo de gente que teve oportunidades, condições e faz besteira. É o filhinho de papai rico que bate em mendigos, taca fogo em índio, briga em boates e bota droga em bebidas para estuprar. É o político safado que se aproveita do voto e desvia dinheiro. Rouba da saúde, da educação, desvia merenda escolar, esconde drogas em helicópteros, faz aeroporto em terras do tio e desvia dinheiro da Petrobras. É o sujeito que um dia foi líder estudantil, foi pego em corrupção e nada em dinheiro enquanto otários fazem vaquinha pra lhe tirar da cadeia.

Escória é o religioso que se aproveita da fé alheia para tirar dinheiro do pobre coitado que no desespero se apega a Deus e a uma religião para ter amansada a sua dor.

O Brasil tem um monte de vagabundos. Um monte de gente que pode ser considerada escória. Não o crackudo morto na Avenida Brasil.

Não sei se aquele rapaz teve oportunidades na vida. Não sei se alguém lhe estendeu a mão para tirar do vício ou se algum dia ele teve força para ao menos tentar. Não sei nada de sua história, nem seu nome e nunca saberei.

É apenas mais um desconhecido. Mais um para as estatísticas. Nunca foi notado na vida sendo um ser invisível e só se fazendo notar na hora de morrer. Por alguns minutos porque todos pegaram seus ônibus, desceram da passarela e a vida continuou.

É o corpo do menino na praia. O corpo do homem doente na avenida.

Quantos corpos precisaremos para acordar?

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