O ciclo é o seguinte: o Banco Central aumenta os juros para tornar a economia do País atraente aos investidores. É uma exigência tácita (e, algumas vezes, gritante) do “mercado”, seja lá o que isso for. A atividade econômica real fica deprimida, o lucro do sistema financeiro aumenta. Mas os juros são o principal gasto do governo, de forma que aquilo que é feito em nome de uma maior competitividade da economia se transforma em fonte de déficit público. Aumenta-se, então, os impostos. O que deprime mais a atividade econômica. Investidores atraídos são, na verdade, meros especuladores. Porque quem investe em produção não se sente atraído por uma atividade econômica deprimida. Por que, então, governos de todas as colorações e inclinações ideológicas acabam, mais cedo ou mais tarde, com mais ou menos intensidade e frequência, caindo nesta armadilha?

A Economia é uma ciência que permite simplificações, para consumo geral. Mas cobra algumas sutilezas que, com um pouco mais de calma e espaço, devem ser levadas em conta.

Usamos o exemplo brasileiro, porque afinal é este o cinto que nos aperta. Não obstante, é sempre bom lembrar que esta situação não é exclusivamente nossa. Muito pelo contrário. A começar por aquele que é (ou deveria ser, porque assim é reconhecida) a maior economia do mundo, os senhores de todos os impérios, os Estados Unidos. A dívida do tesouro americano é tão grande e impagável que chega-se ao contrasenso de que o Brasil seja-lhe hoje o terceiro maior credor oficial. O Estado americano vive para financiar esta roda da fortuna dos bancos. De tudo que o cidadão americano paga de imposto, o que não vai para pagar a máquina de guerra, vai para os juros. (tanto que os serviços públicos, lá, estão em colapso). Os papéis americanos não têm lastro real, mas são o lastro desse sistema no mundo (por isso o tesouro brasileiro tem papéis deles).

Esta mesma questão dos bancos quebrou também a Europa, como vemos cotidianamente nos jornais. Sobrou quem tem um sistema financeiro mais robusto, como a Alemanha. Mas, de uma forma geral, a crise global está ligada ao poder dos bancos.

Cores+de+carrosHá uma diferença entre “investidores internacionais” (ou nacionais, que seja) que alimentam esta roda (e se alimentam dela) e investimentos produtivos. Os investidores que contam são os que geram empregos e riqueza, não os especulativos. Em relação a estes, estamos bem, desde muito tempo. Grandes empresas continuam a investir pesado no Brasil, que é o terceiro maior recebedor de investimentos produtivos no mundo. Só nos últimos meses, pode-se citar novas fábricas da Jeep, da Bayern, da BMW, do acordo que garantirá 80bi dos chineses para transporte ferroviário etc.

Entretanto, há uma dívida pública que é impossível ser paga, devendo-se pagar os juros até o fim dos nossos dias. A menos que alguém considere válida a ideia de um calote, mas eu não acho que seria viável, ou aconselhável.

Como funciona isso? Os papéis da dívida, que são títulos dos empréstimos contraídos, são de curto prazo. Ou seja, o governo pega mais emprestado para pagar os que vão vencendo. Ou, para ser direto, “renova” o empréstimo de curto em curto prazo. Todo dia tem título caducando. Ou o governo paga o valor total desses títulos, ou rola a dívida. A única opção real é rolar.

Governo nenhum pode fugir disso, a menos que pague (com que dinheiro?) ou dê o beiço. E faz parte do conhecimento de qualquer criança quem é que faz as regras de um empréstimo: quem está emprestando. Quando se diz “o governo aumenta os juros”, na verdade, se está dizendo que o governo faz uma proposta pública de quanto está disposto a pagar pelos novos títulos emitidos para substituírem os antigos que vencem. O governo poderia oferecer menos. E o mercado diria não. E o governo estaria em maus lençóis, porque não captaria o suficiente para pagar os títulos que vencem emitindo novos. Se o mercado (quem tem títulos nas mãos e se dispõe a recomprar os novos) não se interessar, acabou. O momento atual seria uma belezinha em comparação a isso. Nós lembraríamos dos dias atuais até com certa nostalgia.

O governo tem baixado os juros sistematicamente nos últimos 10 anos. Como? Aumentando a certeza de que tem lastro para pagar futuramente. Se há mais segurança, o especulador tende a se sentir bem recompensado com menos. E como se deu este “milagre”? Ora, o governo só tem dinheiro porque recolhe impostos. E os impostos são um percentual mais ou menos fixo de tudo que se produz. Se a produção cresce, cresce também o caixa do governo. E a certeza de que ele poderá pagar pela dívida. Se há menos vigor econômico, cai o caixa, cai o recolhimento de impostos, cai a confiança do mercado. E se cai a confiança, a única forma de continuar captando é aumentar a oferta do quanto vai se pagar.

Deserto+do+SaaraO ponto fundamental, realmente, é que este vício se auto alimenta. É uma armadilha quase perfeita. Um tipo de areia movediça econômica.

Sabe quando o neném tem febre? Ao perceber seus filhos tremendo de frio, febris, as nossas avós aqueciam os pimpolhos com mantas. Hoje, nós sabemos que devemos fazer o contrário. Que, se você aquecer uma criança febril, a febre demora mais a ceder. No entanto, nossas avós não mataram nossos pais, tanto que nós existimos. Nós damos banhos quase frios, tiramos das mantas. Nossas avós aqueciam e protegiam, estavam erradas.

Mas não há o certo ou o errado absoluto, apesar de ser meio óbvio o que é uma febre. Mesmo para nossa geração, que não coloca manta no filho febril, se começar a nevar, vamos fechar a janela e aquecer o filho adoentado. O que eu quero dizer com este exemplo? Que o combate ao mal (na economia, na saúde) depende das circunstâncias EXTRÍNCECAS ao ente a ser cuidado. O ambiente é que indica a atitude a ser tomada. Não há, portanto, incoerência em se aplicar medidas diversas, alternadamente.

Durante anos, o Brasil baixou juros e teve resultados muito bons. Crescimento constantemente superiores à média mundial. O Brasil fez uma coisa que os economistas ortodoxos diziam que era impossível: cresceu e distribuiu renda ao mesmo tempo. Só que isso é financiado por alguma coisa. No caso, além das medidas internas corretas (para aquele cenário) o superavit econômico era pago pela balança comercial favorável.

A balança virou, simples assim. Sem que tivesse mudado em nada o perfil do comércio exterior, a produtividade (ao contrário, até aumentou) ou as condições internas. Só que os principais produtos da nossa cesta tiveram preços internacionais drasticamente baixados. Ora, se eu te vendo um quilo de banana e você me vende em troca um quilo de mamão, quem vai ganhar dinheiro de quem? Depende do preço da banana e do mamão.

bananasE nós fomos burros de vender banana, em vez de mamão? Não, porque durante uma década a banana valeu mais. E daqui para frente? Em alguns momentos, o mamão vai valer mais, como agora, em outros não. Como tudo na vida, porque economia é ciclo.

Então, não houve erros? Houve, sim. Um erro básico, de avaliação. Quando a banana começou a perder competitividade, o governo deve antever que começará a ter menos dinheiro em caixa num futuro próximo, E, se tiver menos dinheiro, tem que tomar medidas preventivas para poupar. Por outro lado, um ciclo vicioso se inicia quando se começa a apostar na poupança, em vez de incrementar a produção (com subsídio). Quando abrir ou fechar a janela, colocar ou não a manta no neném. Porque não queria começar um ciclo vicioso difícil de sair, o governo adiou a desaceleração.

Apostou (e perdeu) que a queda das bananas seria menor e mais passageira. Não foi.

Inevitavelmente, de uma forma ou de outra, os efeitos seriam muito parecidos. Porque eles têm causas externas. Fechar a janela em vez de tirar a manta do bebê não vai fazer parar de nevar. Se nevar até se fazer uma nova era glacial, todo mundo morre de frio. Quem fechou ou não a janela. Tanto faz. O que o governo apostou, com janela aberta mais que devia, era que a neve ia parar. Não parou, ao contrário, se intensificou.

Durante anos, foi bom exportar commodities. Hoje, não é mais. Há uma crise grave de commodities, uma face especialmente amarga da crise que se arrasta desde 2008, que atingiu em cheio o preço daquilo que fazemos melhor. Culpa de quem? De ninguém, ora. Ou melhor, a longo prazo, culpa do mesmo mecanismo que você mostrou no seu post: a economia global quebrou, e está quebrada desde 2008, porque é refém do sistema financeiro.

sojaE se você, unilateralmente, nega-se a fazer este jogo? Depende. Se você bate de frente, simplesmente, acaba. Game over. Acaba de acontecer com a Grécia. Se você tem as condições mínimas, você toma medidas que diminuem o impacto desse jogo sobre a sua casa. O Brasil fez isso durante uma década. Não bateu de frente, não rompeu, mas reduziu juros progressivamente.

Hoje, as condições externas não permitem isso. Estamos reféns. Se serve de consolo, todo mundo está. Se perdemos empregos, todo mundo perdeu bem mais. Se vivemos para pagar juros, todo mundo também. Algo tem que ser feito? Sim. Mas não adianta fazer sozinho, nem no momento de maior fragilidade. Agora, é prender o ar e esperar a onda passar. E a gente tem que ter maturidade para isso. Maturidade.

O que estamos fazendo no Brasil, o governo também, mas principalmente a sociedade, é o contrário de maturidade. É se debater na areia movediça. Se a questão fosse procurar os culpados, seria até simples. O problema é ter dívidas impagáveis, cuja única forma de rolar é fazê-la mais e mais impagável. Portanto, a culpa é de quem fez esta dívida ficar impagável, pela primeira vez.

Até o último governo neo-liberal no Brasil, a dívida era de 36% do PIB. Ou seja, se fosse possível congelar os juros, se o Brasil trabalhasse um ano inteiro, e todo dinheiro arrecadado pelo governo pudesse ser usado para abater o principal da dívida, o Brasil pagaria o que deve ao mercado em um ano. Porque, por coincidência, a carga tributária brasileira é de uns 35%. Claro que isso é teoria, porque é impossível ficar um ano sem governo, sem exército, sem justiça, sem energia, sem polícia, sem escola etc etc etc. Pois bem, em menos de 8 anos, esta dívida que foi feita nos 500 anos anteriores, que somava 36% do PIB, saltou para 75% do PIB. Isso mesmo. Um determinado governo DOBROU a dívida pública brasileira e tornou-a impagável. O governo Fernando Henrique Cardoso, do PSDB.

Durante os anos do PT no governo, em que diz-se que “o governo gasta demais” o serviço da dívida continuou sendo pago, ela não recuou quase nada em termos do principal, e nos mantemos por volta dos 70% do PIB (ou um pouco menos) sem que nenhuma dívida nova tenha sido feita. Agora, o serviço da dívida antiga, dobrada pelo FHC, tem que ser pago. Ou não?

Para fechar. A dívida é de curto prazo. Foi feita lá atrás, mas tem que ser permanentemente rolada. Para tal, permanentemente, o governo tem que captar recursos no mercado. Os recursos são captados pelos juros. Se os juros foram baixos, a dívida caduca sem poder ser paga e o País quebra. Se foram altos, a dívida é rolada, mas atrasa o crescimento, que seria a única forma de fazer caixa um dia para pagar. Este é um problema clássico. Eu nunca fiz dívida (sim, crediário, compra de carro, mas nunca empréstimo pessoal) exatamente por isso. Todos nós conhecemos gente que vive em função de pagar os juros das dívidas que tem.

Quando a dívida é sua, O.K., problema seu. E se o seu pai, o seu avô, morre e te deixa a dívida? Você será escravo do sistema bancário eternamente. Vovô FHC “morreu” e nos deixou uma dívida. A dívida nunca deixou de ser esta. Ela não foi feita pelo atual governo. As condições permitiram apenas que fossem pagos os serviços da dívida, sem aumenta-la, nem diminui-la. Colocar a culpa em alguém não resolve o problema. Nós sabemos bem qual é o problema, sabemos por que o cinto apertou justamente agora. A pergunta que fica é: alguém tem uma sugestão madura a fazer?

4 Replies to “A armadilha”

  1. “Colocar a culpa em alguém não resolve o problema.”

    O que li no texto foi somente culpar os governos anteriores, especialmente os que foram os maiores responsáveis pela estabilização da economia brasileira em toda a história desse país. Sem isso os sucessores não estariam em condição alguma de cantar as glórias que cantaram. Agora é interessante dizer que depois de 13 anos a culpa das dívidas e crise não são em nada do governo atual. 13 anos? Haja peneira para tampar o sol.

    Sinceramente, aguardo um post sobre a corrupção no governo PT. Aqui no Ouro de Tolo só vejo glórias, e amores. Aguardo imparcialidade e realismo. Cansei.

    Abça

    1. Caro Rafael,

      Primeiramente, muito obrigado pela participação.

      Talvez eu não tenha me feito entender, o que certamente é culpa minha como autor, mas eu não culpo “governos anteriores a este”. Dos três governos anteriores, Lula abateu a relação dívida/PIB (bem como Dilma) e Itamar foi responsável pela estabilização da moeda – que, de resto, era uma tendência mundial, o que não retira méritos de Itamar. Em seu curtíssimo período, não é possível avaliar com isenção a questão da dívida em Itamar.

      O Brasil vem, portanto, de uma sequência razoável de governos, ficando a exceção por conta de FHC. Naqueles oito anos, a inflação (debelada por Itamar, com o Plano Real) voltou a patamares muito acima dos atuais. Itamar entregou o governo a FHC com inflação zero. FHC entregou o governo a Lula com inflação acima de 12% ao ano. (Hoje, estamos com cerca de 9%, portanto, abaixo). Houve, sob FHC, um crescimento acentuado da dívida pública. E houve perda de patrimônio público. Isso não é opinião, é absolutamente factual.

      O Ouro de Tolo é um blog bastante plural, sendo possível encontrar muitas opiniões pouco elogiosas aos governos do PT.

      Mas é possível encontrar o tipo de “imparcialidade e realismo” esperado pelo caro leitor em outros órgãos de imprensa, como Veja, Folha de São Paulo, Estadão, O Globo, Jornal da Globo, Jornal Nacional, Jovem Pan FM, Época e Isto É. Boa sorte.

  2. O texto veio muito bem. Até que começou a culpar o governo FHC e jogar confete no Governo Lula e Dilma. A Crise atual é conjuntural, os erros do passado foram culpa do Governo. Perdeu a oportunidade de arrematar uma bela matéria sobre Economia Global e finanças Públicas.

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