Outro dia estava assistindo ao interessante canal do YouTube do ator Bemvindo Siqueira. Em um dos vídeos, ele fala da dramaturgia e como ela anda anestesiada, isto é, deitada em berço esplêndido.

A arte sempre foi importante não só para o entretenimento, mas para cultivar o debate. Outro dia mesmo, escrevi uma coluna falando sobre o samba e como ele sempre foi um porta voz de seu tempo e perdeu isso. Essa questão também vale para a dramaturgia.

A dramaturgia tem por obrigação além de divertir, emocionar, entreter ser porta-voz, contar a história de seu tempo. O teatro existe desde a Grécia Antiga e até hoje os dramaturgos gregos, assim como os que vieram depois ao longo dos séculos, são encenados e aplaudidos porque, além de cumprirem bem a parte do entretenimento, contam a história de seus tempos e conseguem tocar a alma com questões que sempre farão parte de nós.

Mas e a dramaturgia que é feita hoje? Vai ficar pro futuro? Saberá contar a história do nosso tempo?

O século XX foi muito bem contado pelas canetas de Nelson Rodrigues, Dias Gomes, Plínio Marcos, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, etc. Os tempos de ditadura militar são perfeitamente entendidos pelos textos teatrais, temas que se muitas vezes perdem na atualidade servem como registro histórico.

Hoje que vivemos numa era democrática, a dramaturgia não aproveita. Não é porque vivemos uma democracia, que vivemos tempo de calmaria, muito pelo contrário, vivemos o momento mais turbulento no século com mudanças de poder, protestos, ódio, intolerância, e o que faz o teatro brasileiro?

Divide-se entre stand up e musicais.

A questão é simples. Bota-se uma calça jeans, uma camisa preta, pega um microfone e fica uma hora contando piadas em torno do próprio umbigo ou então busca-se um musical da Broadway ou uma pesquisada no Google pra descobrir centenário de algum artista popular e corra-se atrás de leis de incentivo e fomento cultural.

Assim que funciona o teatro hoje, pela vaidade ou o dinheiro fácil. Tem produtor teatral que pega milhões de reais e em vez de aproveitar que já tem, o dinheiro pra fomentar cultura, mete ingresso a cem reais. Peças com fomento cultural, isto é, já com dinheiro, em vez de fazer atividades gratuitas, cobram e não só cobram, não fazem material de propaganda, não divulgam porque tanto faz para eles ter cem, pessoas ou cinco, o dinheiro já está garantido.

Semana passada apresentamos a minha peça Dona Carola na Arena Carioca Renato Russo na Ilha do Governador. Mesmo sem apoio governamental ou fomento, vendemos ingressos a dez reais e com isso botamos quase duzentas pessoas no local, a maior arrecadação financeira da Arena desde a inauguração. Sucesso a ponto de sermos procurados para uma nova apresentação e, detalhe, isso foi numa quinta à noite com chuva.

A peça é uma comédia rasgada e, numa primeira olhada, apenas entretenimento, mas fizemos várias entrelinhas nela como colocar três homens vestidos de mulheres falando as maiores barbaridades intolerantes, repetindo discurso muito usado hoje em dia. Numa cena, uma delas levanta e diz para o público “Uma família é constituída por homem, mulher e filho, se faltar uma dessas coisas não é uma família”. Através do humor, botei a maior crítica que fiz até hoje ao tempo em que vivemos.

Dramaturgia é isso, tem esse poder de falar todas as verdades que precisam ser ditas divertindo. Não podemos perder esse poder. A partir do momento em que os formadores de opinião se calam, os idiotas passam a formá-las.

Precisamos rever nossos papéis nessa peça.

Twitter – @aloisiovillar

Facebook – Aloisio Villar

One Reply to “A dramaturgia anestesiada”

  1. Boa tarde!

    Prezado Aloisio Villar:

    Parece clichê, mas vale repetir que “falta brasilidade no brasileiro”.
    Aquele ímpeto de produzir algo mais com a nossa cara.
    Nada contra tenho os musicais de nossos artistas que morreram, mas por que não fazer um musical com um texto bem Brasil, sem necessariamente prestar homenagem a alguém?

    E assim com tantas outras mídias.
    Recentemente assisti a uma entrevista de Elke Maravilha à Marília Gabriela. O programa é de 2013, e em determinado momento Elke diz que a TV brasileira não é mais brasileira, e sim uma cópia dos Estados Unidos. O último programa genuinamente brasileiro, segundo ela, foi o Chacrinha.

    Nossa Internet também não é das mais imaginativas. Os grandes produtores de conteúdo na rede utilizam formatos consagrados lá fora. Como uma fórmula do sucesso, estes novos profissionais não parecem querer arriscar muito, provavelmente com medo de não atingirem a quantidade de likes pretendida.

    Acredito, no entanto, em mudanças.
    Mudanças que vêm do próprio “povo” enjoado naturalmente daquilo que o cerca.
    Tomando as Escolas de Samba como referência, houve um tempo em que se achava que os sambas acelerariam até se tornarem Power-Techno-frevos. Bem, eles chegaram a este ponto… Aí todo mundo se cansou daquele ritmo louco, e hoje acompanhamos uma desaceleração contínua.

    Não sei em quanto tempo o povo vai enjoar do que anda assistindo no teatro, na televisão, e na internet, mas espero que, pelo menos, ele enjoe. Só assim poderemos aguardar mudanças.

    Atenciosamente
    Fellipe Barroso

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