As arquibancadas de São Januário estavam vazias. Roberto cobrou a falta, a bola passou por sobre a penúltima cabeça da barreira móvel, entrou na meta lambendo o travessão e escorreu pela rede até quicar no chão e se aninhar entre a malha e o relvado. Quantas vezes antes na história deste estádio? Desta vez, silêncio. Não havia plateia nem disputa. O único adversário de Roberto naquele dia 8 de agosto de 1989 era o seu coração.

Roberto trocou de roupa no vestiário. Ele não queria ir embora do Vasco. Eurico Miranda, licenciado para ser diretor de futebol da CBF, também não queria que ele fosse. Mas ninguém mais parecia se importar. Roberto tinha contrato com o clube até fevereiro do ano seguinte e um bom time estava sendo montado para a disputa do Campeonato Brasileiro. O Vasco vinha de contratar o ponteiro Tato, ex-Fluminense, ao Elche. Boiadeiro viera do Guarani para repor a saída de Geovani para o Bolonha. Luís Carlos Winck era dado como certo. Mas o Vasco não queria Roberto para o Brasileiro. O Vasco tinha seu novo Roberto: Gama de Oliveira, o Bebeto, golpe de mestre cruzmaltino contra o Flamengo.

robertovasco1989Roberto estava triste. Fado, fatum, destino. O destino de Dinamite seria longe do Vasco, mas não menos português. Sua nova casa seria fabulosa. Sua camisa dez seria verde e vermelha. À saída do vestiário, Roberto anunciou que disputaria o Campeonato Brasileiro pela Portuguesa, treinada por seu amigo Antônio Lopes, imune à amnésia coletiva que fizera tanta gente esquecer que ele ainda era Roberto Dinamite, o maior jogador da história do Club de Regatas Vasco da Gama.

No dia 10 de agosto a página 4 do caderno de Esportes da Folha de S. Paulo estampava em manchete: “Magoado, Roberto chega à Portuguesa”.  O atleta desembarcou do carro que o trouxera do aeroporto com um sorriso amarelo. – O Vasco está investindo alto, pagando bem, não sei porque cargas d’água não investe no seu maior ídolo, seu jogador maior, disse Roberto, como se não acreditasse que estava prestes a vestir outra camisa.

Vestiu. A dez da Portuguesa de Desportos desceu por sobre a azul social que Roberto usava e ele ouviu aplausos. De repente, o sorriso parecia o velho sorriso aberto. Talvez fosse hora de esquecer a mágoa por alguns instantes e curtir aquele carinho. Talvez fazer gols e dar às pessoas uma breve felicidade, essa ilusão abençoada do jogo que escolhera para ser a sua vida.

A Portuguesa fez a sua preparação para o campeonato brasileiro em Poços de Caldas. O joelho direito lesionado no campeonato carioca foi ganhando firmeza e Roberto regulou a lenta: em um treino de cobranças de faltas, marcou dezoito gols em vinte chutes. No domingo, dia 3 de setembro, a Portuguesa encerrou sua intertemporada em amistoso contra a Caldense. Bola rolando às onze da manhã, para que todos pudessem ver depois a Seleção Brasileira decidir a vaga para a Copa de 1990 contra o Chile. Com duas dinamitadas, Portuguesa 2 x 0 Caldense.

portuguesa89cO time do Canindé ainda tinha remanescentes da mítica geração de 1985 e bons reforços pontuais. Além de Roberto, havia outro ídolo de um time de massa: Biro-Biro. Lê, campeão paulista pela Inter de Limeira em 1986 e pelo São Paulo em 1987, dava leveza e velocidade ao ataque e seria bem municiado por Roberto, que também se entenderia em altíssimo nível com Jorginho, Toninho, Bentinho e Sinval. Antônio Lopes havia montado uma grande Portuguesa.

Roberto abriu o placar na estreia contra o Goiás, no Serra Dourada. O time da casa virou com dois gols de Túlio Maravilha, duelo de gerações de artilheiros. Mas a derrota não diminuiu em nada a expectativa dos Leões da Fabulosa e de todos os torcedores da Portuguesa para o primeiro jogo de Dinamite no Canindé. E todos eles que estiveram lá, naquele sábado, 16 de setembro de 1989, assistiram a uma aula de futebol da Portuguesa sobre o Fluminense.

Jorginho investiu pela direita e cruzou a bola na área. Contra a descrença, contra a passagem do tempo e contra a mágoa, Roberto mergulhou no ar e dinamitou as redes tricolores em uma cabeçada digna de seus melhores momentos. O Fluminense empatou, mas não escapou da goleada histórica: Roberto tocou de cabeça para Toninho fazer o segundo e mandou no travessão a cobrança de falta que originou o gol de Sinval. Toninho fechou o placar de Portuguesa 4×1 Fluminense, com participação direta de Roberto em três gols.

O Vasco arrancou para o título, reafirmando que não precisava de Roberto naquele campeonato. Roberto respondeu marcando nove gols no certame, mais do que qualquer atacante vascaíno – Bismarck marcou oito; Bebeto, seis. Talvez pudesse ser Roberto, e não Sorato, quem aparasse o cruzamento de Winck na final contra o São Paulo. Talvez Roberto pudesse estar no pôster do segundo campeonato brasileiro, quinze anos depois de estar no primeiro com sua vasta cabeleira, quando não podia nem imaginar que seria um dia desprezado pelo clube que quase virou seu sobrenome: Roberto, do Vasco.

imagem742Mas aquele era Roberto, da Portuguesa. Que deu gols a Lê e Toninho. Que fez outros que derrubaram Palmeiras e Atlético Mineiro. Que comandou as vitórias contra o Flamengo de Zico no Morumbi e contra o Internacional no Beira Rio. Que fez a Portuguesa chegar com chances de ser finalista na última rodada contra o São Paulo, quando não pôde jogar por estar suspenso pelo terceiro cartão amarelo. Aquela era a Portuguesa de Roberto, um time que deixou saudade.

Saudade que Roberto não sente do dia 21 de outubro de 1989. Naquele sábado, ele abriu e edição de O Globo na concentração da Portuguesa no Rio de Janeiro e leu a manchete do jogo que aconteceria em algumas horas: Roberto, um inimigo em São Januário. Mais tarde, com a bola rolando, a Portuguesa teve uma falta a seu favor na entrada da área. Washington Rodrigues comentava a partida na Rádio Globo e registrou: – Se Roberto fizer o gol, o árbitro tem que botar na súmula gol contra.

Roberto não fez o gol na cobrança de falta e não fez quando recebeu livre na entrada da pequena área: caiu sozinho. Talvez tenha se atrapalhado com o desvio da bola na saliência do gramado, que sob seu comando era um morrinho artilheiro e, ao ver Roberto com outra camisa, transformou-se em morrinho zagueiro. Talvez Roberto tenha vacilado inconscientemente ao se ver em posição de estufar as redes do Vasco. Por mais que tenha sido bem recebido pela Portuguesa, Roberto não queria estar ali. Não com aquela camisa. Não contra o seu coração.

Ao final da partida, o repórter que perguntou a Roberto se havia sido uma tarde especial, ouviu do artilheiro uma resposta com a mesma contundência de seus chutes: – Não digo que foi uma tarde especial. Eu não gostaria de ter essa tarde na minha vida.

Diante de quase oito mil pessoas no estádio em que se acostumara a fazer as pessoas felizes, Roberto Dinamite assinou uma confissão de tristeza.

Uma tristeza portuguesa, com certeza.

Maurício Neves de Jesus é escritor, professor universitário e advogado. Nasceu no dia 7 de abril de 1973, pouco antes de o Flamengo enfrentar a Portuguesa no Maracanã. Zico estava no banco e, quando entrou no jogo, Maurício nasceu. Ele não acredita em coincidências e nem no Facebook. No Twitter: @badsnows

One Reply to “O fado de Dinamite”

  1. Muito bom o texto, mostra bem, e de forma poética, o que foi a passagem do bom Dinamite pela minha Lusa e a tristeza dele em deixar o Vasco, seu clube de coração.
    A única informação que faltou foi a de que muitos dos gols de falta e de penalti feitos pelo Roberto nas noites vazias de São Januário foram originados por decisões malandras dos homens do apito, numa época em que o Vasco exercia uma influência muito maligna sobre as arbitragens. É preciso sempre que se conte sempre a história toda, porque infelizmente o mundo não é feito só de beleza e poesia.

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