A proteção ao patrimônio histórico brasileiro tem sido consagrada em nosso texto constitucional desde a Constituição de 1934. Ainda durante a década de 1930 foi criado o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, órgão federal que salvaguarda a memória coletiva de nosso país. Insta frisar que o patrimônio a ser preservado não se constitui apenas de bens tangíveis, mas também de bens intangíveis, embora estes não sejam objeto do presente artigo.

A partir da constitucionalização do tema, Estados e Municípios também se preocuparam em inserir a proteção do patrimônio às constituições estaduais e leis orgânicas, já que a tutela dos bens histórico-culturais constitui uma competência comum dos entes da federação.

Nesse diapasão, prevê a Lei Orgânica do município de Manaus que o patrimônio histórico deve ser preservado para as presentes e futuras gerações. Entretanto, a realidade é bastante distinta da letra da lei. O patrimônio histórico da cidade de Manaus tem sido degradado impiedosamente pela ação de comerciantes e da população, que não compreendem a importância da memória da cidade para a formação da cidadania.

E o risco de destruição do patrimônio histórico é majorado pela atitude leniente do Poder Executivo Municipal, que deveria tutelar o nosso patrimônio, e, em alguns casos, até colaborado para a destruição da história de nossa cidade.

Ainda de acordo com a Lei Orgânica de Manaus, o sítio histórico da cidade é formado pelo perímetro entre a Avenida Sete de Setembro até a orla do Rio Negro, inclusive o Porto Flutuante, a praças Torquato Tapajós, 15 de novembro e Pedro II, ruas da Instalação, Bernardo Ramos, Frei José Inocentes, Avenida Joaquim Nabuco em toda a extensão, e Visconde de Mauá, Almirante Tamandaré, Henrique Antony, Lauro Cavalcante e Governador Vitório. Dispõe ainda o art. 342 da Lei Orgânica que:

Art. 342. Fica tombado, para fins de proteção, acautelamento e proteção especial, a partir da data de promulgação desta Lei, o centro antigo da cidade, compreendendo a rua Leonardo Malcher e a orla fluvial, limitado este espaço, à direita pelo Igarapé de São Raimundo  e, à esquerda pelo Igarapé de Educandos, tendo como referência a Ponte Benjamin Constant.  

Centro-Historico-Manaus-reconhecida-IphanNeste artigo, em específico, temos como objeto as edificações históricas do centro da cidade de Manaus. Tais construções foram erguidas no período áureo da borracha, que compreende o fim do século XIX até meados de 1915. Neste interregno, Manaus tornou-se uma das mais prósperas cidades brasileiras, cuja riqueza seria ostentada em grandes construções, tais como o Teatro Amazonas, Palácio da Justiça, Palácio Rio Negro e outras de menor porte, situadas no atual centro da cidade.

É intuitivo que a política de prosperidade resumia-se a uma pequena parcela da população, ao passo que a maioria das pessoas era retirada perímetro urbano central para zonas periféricas.

Com o fim do ciclo da borracha, a cidade enfrentou um longo período de crise, o qual só foi superado com a criação da Zona Franca de Manaus, em 1967.

A partir da Zona Franca de Manaus, muitas das residências históricas do centro da cidade tornaram-se pontos de comércio, que demonstravam o novo renascimento econômico do município e do centro histórico da cidade. Contudo, a presença de um comércio forte no centro de Manaus ocasionou a deterioração e descaracterização de inúmeros prédios históricos, tendo o poder público se omitido em preservá-los, já que o “progresso e desenvolvimento” eram mais importantes.

Assim, conforme preleciona Paoli,

“quando se fala em patrimônio histórico, pensa-se quase sempre em uma imagem congelada do passado. Um passado paralisado em museus cheios de objetos que ali estão para atestar que há uma herança coletiva – cuja função social parece suspeita (PAOLI, 1992, p.25)”

hotel_cassina manausEste pensamento de passado estático prevaleceu entre as autoridades e a população em geral, já que a cidade deveria olhar para o novo. E, em que pese a existência de um amplo ordenamento jurídico municipal que contemple a necessidade de preservação dos mais de 1.600 imóveis tombados pelo município, apenas algumas edificações, sobretudo as de maior porte, foram preservadas, como o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, o Palácio Rio Negro, o porto flutuante da cidade de Manaus, o Reservatório do Mocó, o Mercado Municipal e a então sede da Câmara Municipal. Destes, o Mercado Municipal, o Reservatório do Mocó e o Teatro Amazonas foram tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1987, 1985 e 1966 respectivamente.

As construções tidas como menos importantes eram demolidas e/ou descaracterizadas sem o menor pudor pelos novos proprietários, que pretendiam adequar sua propriedade aos novos tempos. As indiscriminadas ações dos proprietários contavam (e ainda contam) muitas vezes com a conivência do poder público. Em uma matéria veiculada pelo Jornal A Crítica datada de 26 de agosto de 1998, cujo título era “Uso incorreto ameaça prédios históricos”, o então presidente do órgão municipal fiscalizador – Urbam, afirmava que

“a maioria dos prédios do sítio histórico estão localizados no centro, que necessita de mais espaço para empreendimentos ligados à alimentação. Teremos que fechar toda a cidade se formos verificar as situações de risco para incêndios. (…) O presidente da Urbam acrescenta que decisões deste tipo têm que ser analisadas verificando o aumento do desemprego e diminuição de arrecadação da prefeitura.”

Ainda em 1998, a Secretaria de Estado de Cultura realizou um levantamento cujo resultado foi alarmante: de cada nove imóveis históricos de interesse de preservação, sete encontravam-se abandonados e em péssimo estado de conservação – em ruínas, em obras de descaracterização, abandonados e até com risco de demolição.

E, ainda que o já citado Plano Diretor de Manaus tenha sido promulgado em 2002 e incentivado os proprietários de prédios históricos a conservá-los, a situação do perímetro histórico da cidade permaneceu desoladora. Incontáveis são as demolições de edificações históricas, seja em virtude de incêndios ou de abandono.

E nas semanas antecedentes ao 346º aniversário da cidade de Manaus, celebrado neste 24 de outubro, pelo menos três grandes incêndios destruíram quase integralmente estruturas de prédios históricos situados no centro da cidade. Nem mesmo o tombamento do centro histórico da cidade, realizado pelo IPHAN, em 2012, tem inibido a destruição de tais edificações. A cidade de Manaus. com seus 346 anos, pouco tem a comemorar no que se refere à preservação de sua história.

Referências bibliográficas:

ARAÚJO, Naíra. Abandono ameaça sete prédios históricos. Jornal A Crítica, Manaus, p.A5, 11 de setembro de 1998.

NOVAES, Fred. Uso incorreto ameaça prédios históricos. Jornal A Crítica, Manaus, p.A3, 26 de agosto de 1998.

PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p.25-28.