Os terreiros das escolas de samba cariocas (e não “quadras”, como se denominam hoje) obedeceram durante muito tempo a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé. O acesso à roda, por exemplo, era permitido somente às mulheres, que cantavam os sambas girando no sentido anti-horário, conforme giram as rodas de yaôs nas casas de culto. Os fundamentos religiosos das agremiações, em larga medida, se perderam ou estão diluídos a ponto de não serem mais reconhecidos.

Apesar dessa “desafricanização” dos fundamentos, as agremiações são, até os dias de hoje, veículos em que a temática africana é recorrente; ainda que seus enredos e sambas enfoquem, salvo exceções, a África por uma perspectiva predominantemente folclorizante e, curiosamente, distante (a “África misteriosa”; a “África de mistérios e magias”; e outros clichês constantemente repetidos nas letras dos sambas exemplificam isso).

O samba-enredo é uma modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema elaborado como enredo de uma agremiação. Os primeiros sambas-enredo, de livre criação, abordavam normalmente a natureza, o próprio samba e o cotidiano dos sambistas. Com a oficialização dos concursos, na década de 1930, passou a predominar a exaltação dirigida aos personagens e efemérides da História oficial, em um processo de negociação entre os sambistas e o poder instituído que incluía a disputa pelas subvenções. Os enredos se limitavam a contar a história do ponto de vista da classe dominante, abordando os acontecimentos de forma invariavelmente ufanista.

A reversão desse quadro começou a ganhar contornos mais efetivos – ainda que viesse se insinuando antes – em 1959. Naquele ano o Salgueiro apresentou uma homenagem ao pintor francês Debret, retratando o cotidiano dos negros no Brasil à época da colônia e do Império; o que motivou uma sequencia de enredos da escola, ao longo da década de 1960, sobre o Quilombo dos Palmares, Chica da Silva e Chico Rei.

Desde então, no universo dos enredos apresentados pelas escolas de samba cariocas e fluminenses das várias divisões, as referências mais diretas à África se fazem constantes. Podemos listar, apenas a título de exemplo e sem a pretensão da totalidade, os seguintes enredos: “Navio negreiro” (Vila Isabel, 1948, e Salgueiro, 1957), “Quilombo dos Palmares” (Salgueiro, 1960, Viradouro, 1970, e Unidos de Padre Miguel, 1984), “Chico Rei” (União de Vaz Lobo, 1960, Salgueiro, 1964, e Viradouro, 1967), “Ganga Zumba” (Unidos da Tijuca, 1972), “Valongo” (Salgueiro, 1976, e Unidos de Padre Miguel, 1988), “Galanga, o Chico Rei” (Unidos de Nilópolis, 1982), “Ganga Zumba, raiz da liberdade” (Engenho da Rainha, 1986), “Porque Oxalá usa ekodidé” (Acadêmicos do Cubango, 1984), “Logun, príncipe de Efan” (Arranco do Engenho de Dentro, 1977), “As três mulheres do rei” (Império da Tijuca, 1979), “A visita do Oni de Ifé ao Obá de Oyó” (Unidos do Cabuçu, 1983), “O sonho de Ilê Ifé” (Viradouro, 1984), “Oxumaré, a lenda do arco-íris” (Imperatriz Leopoldinense, 1979), “De Daomé a São Luiz, a pureza mina-jeje” (Unidos do Cabuçu, 1981), “Kizomba, festa da raça” (Unidos de Vila Isabel, 1988), “Pleito de vassalagem a Olorum” (Unidos do Viradouro, 1974), “Olubajé, a festa da libertação” (Difícil é o Nome, 1994, reeditado em 2006), “Orum-Ayê” (Boi da Ilha, 2001), “Geledés, o retrato da alma” (Arranco do Engenho de Dentro, 2006), “Áfricas, do berço real à corte brasileira”, (Beija-Flor, 2007), “Suprema Jinga” (Império da Tijuca, 2010), “O reencontro entre o céu e a terra no reino do Alafin de Oyó” (Unidos de Padre Miguel, 2013), Candaces (Salgueiro, 2007), Negra Pérola Mulher (Império da Tijuca, 2013), O Império nas águas de Oxum (Império da Tijuca, 2015), Um Griô conta a História (Beija-Flor, 2015), etc.

É curioso notar a predominância, nestes sambas, de temas ligados ao universo iorubano, fato que certamente se explica pela maior visibilidade que esta matriz, notadamente através da Bahia, tem no Brasil. Segundo algumas interpretações, a visibilidade desse acervo cultural teria ocorrido pela presença histórica, em Salvador e no Recôncavo Baiano, de diversas “nações” africanas organizadas e, muitas vezes, adversárias; cada uma ciosa de sua identidade étnica. Isto teria feito com que, no combate ao racismo, os afrodescendentes baianos se destacassem mais fortemente através da afirmação de suas expressões culturais específicas do que através da luta política.

Cabe destacar, todavia, que personagens como Chico Rei, Ganga Zumba, Zumbi e Rainha Jinga, pertencentes ao universo banto, são também bastante frequentes nos enredos que relacionamos.

O curioso é que em 2016, ao menos aparentemente, a África passará distante dos enredos do grupo especial. Será mesmo? Acho que não. A África se apresentará, na verdade, mais próxima, em algumas referências a Ogum na Estácio de Sá e ao candomblé de ketu na Mangueira de Bethania. O Salgueiro (com um enredo sobre Zé Pelintra malandramente disfarçado na “Ópera dos Malandros”) falará da linha do povo de rua, mais afeita aos catimbós, umbandas e encantarias afro-ameríndias. Mas a África se fará presente também na verbalização do Laroiê de Exu.

Confesso que me agrada mais essa linha de enredos que rompe com os “mistérios da África distante”. As áfricas, afinal, estão aqui: potentes, desafiadoras, próximas e brasileiras. O tratamento distante pode, afinal, trazer embutida uma sutil, e muitas vezes não intencional, negação.

2 Replies to “Áfricas e Sambas”

  1. Bom artigo. Gostaria de chamar a atenção também para uma análise de como a África vem sendo retratada nos enredos, sob o ponto de vista cultural. Tenho a percepção de que ainda há o predomínio de uma visão generalizante de uma África como sinônimo de “sofrimento e dor” (juro que já ouvi, inclusive essa rima em algum samba enredo sobre o continente africano rs), em detrimento de explorar temáticas que prezem por outro enfoque – “afinal, à despeito dos séculos de exploração pelo colonizador, a África é apenas isso?”. Novos estudos historiograficos têm nos mostrado que a visão “europeu X africano” é bastante simplista, é discussão sobre as várias Áfricas descerrou certos tabus presos no tempo, a começar pelo fato de que os próprios africanos se dividiam em reinos rivais e eram capturados por seus irmãos de cor e negociados com os colonizadores em troca de armas, pólvora, fumo, aguardente e utensílios.

    No carnaval 2015, entretanto, uma escola de samba apresentou um enredo com a temática africana (Nelson Mandela e a busca pela igualdade racial eram os enfoques): a Imperatriz Leopoldinense. O que vimos? Ao invés de alegorias de navios negreiros (tumbeiros) que retratavam masmorras, carrancas, expressões de tristeza e dor, cores carregadas em tons escuros, fomos apresentados a uma África colorida, multifacetada, rica culturalmente. Uma África que fugia ao lugar-comum (mais precisamente a África apresentado durante muitos anos pela Beija-Flor e Salgueiro). Então percebemos que “a África não era apenas desesperança ou referencia a tristeza”. Acho que esse debate, a despeito de qual interpretação se faça sobre o objeto em questão é bastante bem-vinda e enriquecedora para os debates historiograficos e carnavalescos. Saudações.

    1. O próprio carnaval da Cubango de 2014, cuja foto abre o post, já traz uma perspectiva diferente da habitual sobre o “continente negro”.

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