O Jornal Hoje, no início da tarde, sempre caracterizou-se por ser um telejornal de serviços, com linguagem leve e prioritariamente direcionado a um público menos familiarizado com certas sutilezas da economia. É o menos politizado dos telejornais da casa. Mas perdeu o pouco que lhe restava de pureza.

É relativamente fácil manipular as sensações do telespectador, como pode-se demonstrar dissecando esta matéria com carinha de inocente.

A matéria abria o JH do Dia do Trabalho. Sandra Annemberg, com sua carinha de noviça, já inicia o Jornal falando que o dinheiro recebido no início do mês não vai durar até o final. Puro terrorismo, claro, mas ela está prestes a “provar” sua tese.

Lição número 1 – Mexer com o medo do telespectador com um começo sensacionalista.

Aos 15″ ela anuncia seu tema: “diminuição do poder de compra”. Será verdade? Vejamos.

A matéria começa com o depoimento de uma senhora que acaba de reformar toda sua residência. “A casa parece de revista de decoração”, diz a repórter. Mas “se fosse hoje nós não conseguiríamos”, diz a entrevistada. Abaixo do nome, a profissão: “autônoma”.

Ora, “autônoma” não diz nada sobre a atividade econômica da entrevistada, mas nós passamos a saber que não se trata de uma assalariada. Logo, tenta-se mostrar uma possível queda do poder de compra do trabalhador com um exemplo de consumo de uma autônoma, ou seja, alguém que é exceção no ambiente de trabalho.

Também é interessante notar que é alguém que, muito recentemente, conseguiu melhorar de vida, fazer uma reforma cara. A mensagem da Globo é: “você, que melhorou de vida, agora será ladeira abaixo, viu”. Muito útil para diminuir a felicidade de quem, como a maioria absoluta dos brasileiros, vem ganhando poder de compra há mais de uma década e criar pânico baseado numa projeção futura.

Em seguida, “um estudo feito com exclusividade mostra que o poder de compra caiu”. E que estudo é este?

Pegaram um valor fixo, de um mil reais, e mostraram quanto deste valor fica comprometido com gastos inevitáveis. Ora, ora, desde que exista alguma inflação, por mínima que seja, se a base de comparação é um valor fixo, sempre haverá perda de poder de compra. Por óbvio. Precisa mesmo fazer um estudo exclusivo para chegar a isso, mané?

Segunda lição: prove uma teoria óbvia com uma falar elaborado, todo o resto parecerá sábio e profundo.

E qual é o problema com o estudo exclusivo do JH?

Ora, com mais ou menos intensidade, os preços sobem (não apenas no Brasil) de forma contínua desde todo sempre. Logo, mil reais perderam poder de compra ao longo de um ano, de uma década e de um século. É tão estúpido que fica difícil imaginar como alguém possa não perceber que está sendo engrupido pela matéria.

Mas o telespectador é levado pela linha de raciocínio e ,em geral, cai como um patinho.

O problema de comparar com um valor fixo, no caso um mil reais, é que isso não reflete a realidade da maioria dos trabalhadores, cujo salário também variou ao longo do mesmo período analisado.

Ou seja, a premissa de que um mil reais não valem a mesma coisa não apenas é real, como é óbvia. Mas a comparação correta seria entre a variação média dos salários e dos preços. ISSO é que equivale à variância do poder de compra do trabalho. E é exatamente isso que a matéria finge ignorar.

Em seguida, o JH mostra o depoimento de um economista dizendo que os itens analisados são de consumo inadiável e que isso mostra como a inflação é um tema importante. Novamente, mais duas obviedades ditas por um especialista, o que só vem a reforçar a credibilidade da informação. Ou seja, a mentira é sustentada por verdades parciais.

Entra a repórter dizendo que “o poder de compra diminuiu”, que é a mentira que tenta se impor, mas sustenta-se, novamente, no óbvio: “as contas continuam chegando”. Qual o objetivo aqui? Levar o espectador ao desconforto, é claro.

Para reforçar, vamos ao depoimento de uma outra dona de casa. Uma professora de educação física que, para manter seu poder de compra, agora tem que trabalhar mais. Ora, mais uma pessoa cujo ganho pode oscilar em função da carga de trabalho. Será que isso reflete a realidade da maioria dos brasileiros? Claro que não. Mas o que importa? DUAS mulheres que têm atividades de autônoma para representar a perda de poder de compra do salário? Que tipo de piada é esta?

Para finalizar, um segundo economista diz que o momento “não é para se esbanjar”. Ora, eu nunca vi um economista na tevê dizendo que o momento era bom para se esbanjar. Você já viu?

E então, vamos fechar com chave de ouro? O economista fala uma segunda obviedade, diz que é mais fácil passar a gastar mais do que quando se precisa apertar o cinto. Ah, bom, eu jamais saberia disso sem os conselhos da Globo.

Não se pode finalizar esta análise sem antes lembrar que a matéria ignora uma lição básica do bom jornalismo: ouvir o controverso, tentar ouvir alguém que discorda da tese central de que houve perda de poder aquisitivo.

É fato que as condições da economia global não apontam mesmo um cenário dos mais promissores. O próprio governo federal já indicou que este ano será de ajustes da realidade brasileira a este quadro global, de forma a podermos crescer com mais saúde num futuro próximo.

Acontece, para surpresa geral, até do próprio governo, que a reação da economia às medidas têm sido as melhores possíveis. Março teve um acréscimo de empregos formais, a queda no consumo ficou abaixo do esperado, a crise política está sendo contornada. Tudo indica que o pior momento já passou. A Globo precisa continuar a criar um ambiente hostil, de desesperança, de abatimento nacional.

Tenta fazer de eventos de exceção uma regra geral. Eu não duvido de que as entrevistadas realmente tenham experimentado uma queda de poder aquisitivo. Para muitos, isso é uma realidade. Mas para a maioria dos assalariados, não é. Principalmente nesta época, em que a maioria tem reajustes a reboque do reajuste do salário mínimo. A hora é de criar pânico, porque se este clima não pegar agora, não pegará daqui a um ou dois meses, quando se sentirá mais claramente os efeitos da subida do mínimo e dos ajustes do governo.

E, neste tempo, mesmo quem não percebe a maledicência da matéria do Jornal Hoje, vai perceber na pele e no bolso que o clima de pessimismo era artificial. E a Globo vai assim perdendo mais um naco de credibilidade. Vai se afastando da percepção média da população.

novojn2015Afinal, o telespectador pode até voltar a acreditar em cada vez em que, pontualmente, “analistas” agourentos como a Miriam Leitão dizem que tudo vai piorar. Mas nada resiste a uma análise de longo prazo. O cidadão olha para trás, lembra que há mais de uma década o tal analista, a tal Leitão, fala uma coisa, mas na soma da década aconteceu exatamente o contrário.

Depois, a Globo e seus defensores colocam a culpa da perda de audiência nas novas tecnologias, na internet, na tevê fechada etc. Mentira. A Globo, bem como a imprensa tradicional toda, perde credibilidade dia após dia. Não adianta nada colocar o Bonner de pé na frente de uma tela gigante. Não adianta mudar o cenário. Tem de mudar o conteúdo, tem de voltar a fazer jornalismo de verdade.

5 Replies to “Dissecando um cadáver: o jornalismo global”

  1. “Voltar a fazer jornalismo de verdade”, na linguagem dos apoiadores do Desgoverno federal, seria “somente falar bem da gente”. Vide as declarações recentes do Lula.

    (sim, os governadores são igualmente terríveis).

    Mas tem mané que acha mesmo que foi a mídia que fez subir o preço dos alimentos, da água e da luz; que atrasa obra do Metrô e do VLT; que superfatura obra em estádio de futebol; que tira dinheiro do FIES para não faltar no fundo partidário.

    Pelamordedeus!! Sério que dizem que o Brasil está muito bem?

    1. Caro Rodrigo, obrigado por participar.
      A coluna não se propõe a defender a posição de que “o Brasil está bem”. Na minha opinião – e ela não foi expressa NESTE texto acima – o Brasil está muitíssimo melhor hoje do que estava há 12 anos atrás, mais: o Brasil está reagindo melhor á crise econômica mundial que algumas das antigas potências mundiais. Ambas as avaliações coincidem com a frieza dos números.
      A questão aqui não é defender se esta ou aquela opinião é mais razoável, mas o direito que uma emissora que é fruto de concessão pública tem ou não de manipular as informações que permitem ao espectador chegar a conclusões, quais quer que sejam. A manipulação fica provado no caso estudado. Abraço.

    2. Rodrigo, eu entendo que inicialmente (em termos de governos petistas) a imprensa até fez um bom trabalho. Sobretudo no estouro do mensalão. Imprensa é para ser oposição mesmo, não é para ser aquele braço estendido que foi do governo FHC.

      Só que a coisa degringolou. Talvez até mesmo pressionados pela imprensa governista (os variados blogs e sites, geralmente bancados com verbas federais), o jornalismo passou a sofrer e hoje vemos, por exemplo, a Veja transformada em mero panfleto (ainda que bem escrito).

      Ainda vejo bastiões de equilíbrio na imprensa, qdo leio um Elio Gaspari, uma Miriam Leitão (tucana sim, mas equilibrada), etc. Mas são raros, são ilhas em meio a uma diversidade de opiniões meramente panfletárias. Todos descobriram como é bom ser Diogo Mainardi. Mesmo jornalistas que eram considerados de respeito, como Merval Pereira, perderam-se em meio ao fla-flu atual (Merval ainda escreve de forma elegante, longe do panfletarismo de tantos outros, mas afastou-se do equilíbrio que um jornalista deve prezar).

      Não sei se a imprensa brasileira já fez, no grosso, jornalismo de verdade. Sei que, hoje, o grosso dela não o faz.

      (e não considero, claro, o lixo vendido ao governo)

      1. Você acha o Merval elegante escrevendo? O estilo dele é bem pernóstico. Quem conhece o sistema diz que ele é uma espécie de “vocalizador” das opiniões dos donos e do diretor geral de jornalismo.

        1. Sim, Pedrão, muito elegante. Compare-o aos panfletos da Veja ou dos blogs governistas e vc verá a diferença. Todos fazem proselitismo, mas Merval Pereira o faz sob manto jornalístico — inclusive chegando a acusar os outros de fazer proselitismo político (que ele faz diariamente!). O cara é bom, muito bom. Propagandistas têm muito o que aprender com ele.

          Não vejo como vocalizador dos donos, é muito mais vocalizador de um segmento partidário.

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