Em edição extra – história quentinha, saindo do forno – o compositor Aloisio Villar nos traz mais um conto sambista.

A escola que ninguém viu

A Bezerro do Cocotá passava uma crise. A  outrora escola de samba gloriosa do carnaval carioca passava por uma série de administrações ruins e foi caindo de grupo, caindo até chegar ao último grupo do carnaval.

E a situação para aquele carnaval não era boa. O presidente Tino Mariola era um paspalho. Assumiu a escola no ano anterior já conseguindo um rebaixamento, naquele ano caminhava para a mesma situação.  A agremiação carnavalesca ensaiava em uma pracinha e só não posso dizer que ficava às moscas porque as próprias preferiam fazer outras coisas. Eram tantos rebaixamentos que seus pobres componentes já se sentiam o Vasco da Gama.

Faltando apenas dois dias para o carnaval veio a bomba. A escola não desfilaria. O telefone do compositor Berolinha não parava de tocar com todos querendo saber o ocorrido. Berolinha era um dos últimos que restaram dos tempos áureos da escola e sobrou para ele ter que dar explicação. Só que o pobre compositor também não sabia de nada e respondia a todos que era apenas boato e deviam esperar a palavra oficial do presidente.

Mas Berolinha ficou encafifado. Sabia que Tino Mariola era 171 juramentado e registrado em cartório. Tipo de homem que tacou fogo em sua própria loja para receber grana de seguro e, pelo sim pelo não, decidiu ligar para o cantor da escola, o Fanho do Cocotá pra ver se o homem sabia de algo.

Fanho disse não acreditar, informou inclusive que emprestara na noite anterior o dinheiro que conseguira de patrocínio para pagar o carro de som para acertar contas do barracão e antes de terminar o raciocínio gritou… “Filho da puta”, desligando o telefone.

Ligou novamente alguns minutos depois, esbravejando com sua voz fanhosa: “O desgraçado sumiu Berolinha!! Dizem que foi curtir o carnaval de Salvador deixando a galera do ateliê e do barracão sem dinheiro!! Pior!! Levando o meu dinheiro!!”

Enquanto ouvia Fanho se lamentar Berolinha perguntou pela situação da escola. Fanho respondeu: “Já era, não tem carnaval pra botar na avenida, nada pronto, não vai desfilar”.

Aquilo doeu no coração do compositor que ainda alegou “mas é o último grupo, se não desfilar fica em último e vira bloco”. Fanho respondeu que sim e Berolinha fez uma última tentativa “Vamos desfilar você e eu. Você cantando e eu levando a bandeira, para que a escola pelo menos passe com dignidade”.

Fanho sepultou as esperanças respondendo: “Fica em último do mesmo jeito”. Berolinha desligou o telefone com grande dor no coração. Sua escola estava acabando.

Passou o dia vendo fotos dos momentos gloriosos da agremiação, olhando os prêmios que conquistou na escola e se indignou pelo Bezerro do Cocotá morrer daquela forma. Lamentou “Se tivesse mais tempo pro carnaval eu pegava a escola e botava na avenida. Se conseguisse dar um jeito dela não ficar em último esse ano eu pegava a presidência e acabava com todo esse drama”.

Pensou, pensou até que soltou um grito de “É isso” e ligou novamente para Fanho. O cantor atendeu e o compositor disse: “vamos colocar a escola na avenida”.

Fanho perguntou como já que a escola não tinha fantasias nem carros e Berolinha reforçou “Chame a comunidade para o desfile”.

Berolinha tinha moral com a comunidade e a mesma apareceu em peso na Intendente Magalhães para o desfile. Lá todos repararam não existirem fantasias e nem carros, perguntando a Berolinha como fariam. O compositor, em uma surpreendente calma respondia “Calma que dará tudo certo, vocês nunca viram nada igual”.

Integrantes da Associação das Escolas de Samba foram até a concentração e viram a Bezerro bagunçada. Sem alegorias, roupas e perguntaram a Berolinha se ele tinha certeza que botaria a escola para desfilar daquela forma. O compositor respondeu que sim e alegaram que a Bezerro tinha nome e não podia passar vexame na avenida. Berolinha respondeu “Não passaremos vexame, será um desfile iluminado”.

Chegou a hora do desfile e a direção de harmonia tratou de separar a escola em alas. Berolinha impediu respondendo “Nada de alas, quero todos misturados e se divertindo como um grande bloco”. A harmonia ainda tentou implorar para que deixasse separar em alas e manter um pouco de dignidade quando a bateria acabou seu esquenta e Berolinha se encaminhou ao carro de som para falar no microfone.

Enquanto Fanho falava baixinho ao amigo compositor que aquilo seria humilhante Berolinha disse no microfone aos seus componentes “Conto com vocês para um grande carnaval! Nossa escola está linda! Cantem forte o samba que o milagre acontece! Nunca ninguém terá visto um desfile como faremos!”.

Passou o microfone ao cantor, que começou a cantar o samba do ano. A bateria entrou rasgando como sempre e a comunidade atendeu ao pedido do compositor cantando forte o samba. A comissão de frente, única certinha, com roupa, entrou na avenida sempre muito aplaudida pelo público. Quando o vexame começaria entrando os primeiros componentes com bermudas e chinelos algo muito estranho ocorreu.

A luz da avenida acabou.

Foi uma confusão na avenida. O breu foi total, ninguém enxergava nada e enquanto os dirigentes da Associação desesperados tentavam resolver o problema junto com a Light Berolinha mandava a escola correr na avenida.

A harmonia ainda alegou que a escola estouraria o tempo mínimo e Berolinha gritou “Porra!! Nós não temos nada aqui e vocês ainda estão preocupados com tempo? Bota esse povo pra correr e cantar o samba!!”.

Assim foi feito. Ninguém enxergava nada, mas todos ouviam  o show da bateria e a comunidade cantando forte. Depois de algum tempo conseguiram resolver o problema da luz, mas naquele instante a velha guarda – exausta de tanto correr – encerrava o desfile da Bezerro do Cocotá.

Mostrando indignação Berolinha chegou no presidente da Associação e disse “Tínhamos um grande carnaval e fomos prejudicados. Não se esqueçam quinta dessa grande injustiça”.

Quinta aconteceu a apuração no Terreirão e antes que as notas começassem a ser lidas o locutor oficial informou que devido ao problema com a iluminação a Bezerro do Cocotá não seria julgada. Não poderia subir nem ficar em último e virar bloco.

Berolinha assistia tranquilamente a apuração bebendo uma cervejinha quando Fanho se aproximou e disse “Impressionante nossa sorte. Com isso sobrevivemos mais um ano”.

Berolinha bebeu mais um gole e nisso surgiu um homem de macacão.  O homem apertou a mão de Berolinha e foi embora. O compositor se despediu de Fanho contando “Reunião semana que vem na sede. Temos que planejar o carnaval de 2015”.

E assim Berolinha caminhou sorrindo e triunfante, carregando na mão um fusível que para ele valia como um Estandarte de Ouro.

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