Temos mais uma estreia esta semana no Ouro de Tolo: a coluna “Tangentes Paralelas”, assinada pela historiadora e militante dos direitos das mulheres e dos homossexuais Gabriela Alves.

Gabriela participou do curso da semana passada em Campinas na mesma turma que eu (foto acima) e acabamos conversando por um bom tempo. Apesar de termos experiências de vida diametralmente opostas, uma conversa inteligente sempre aproxima as pessoas e cria afinidades. É isso.

A coluna será semanal, sempre às sextas feiras – com exceção da semana onde houver o texto mensal sobre tecnologia, quando passa para as quintas. No texto de estreia Gabriela parte do curso para demonstrar a importância da presença feminina na história da cerveja.

O Ouro de Tolo dá as boas vindas e vamos ao texto.

Cerveja, ao Gosto das Mulheres

Há anos a cerveja tem sido restrita ao universo masculino, tanto no processo de fabricação – os mestres cervejeiros, jamais as mestras – quanto no consumo e publicidade. No curso Degustação e Cultura Cervejeira, promovido pelo sommelier de cerveja Mauricio Beltramelli no Bar Brejas, em Campinas, encontramos a oportunidade de reverter absolutamente este pré-conceito.

Logo de início, tive o feliz impacto de encontrar uma turma que, numericamente, equiparava-se entre homens e mulheres. Reuniam-se ali entusiastas da cerveja, apaixonados por rótulos de cervejarias belgas e alemãs, micro-cervejarias brasileiras, empresários do ramo da venda de cervejas, etc. O questionamento inicial feito pelo sommelier-palestrante diante da turma foi: “Quem inventou a cerveja?”.

Poucos hesitaram citar algum nome, até surgir na parede que projetava os slides do curso a imagem de uma mulher suméria, pilando grãos de malte. “Quem inventou a cerveja foi a mulher!”.

A mulher suméria, responsável pela coleta de grãos e cereais, descobriu a cerveja quando estes grãos, sob a água da chuva, fermentaram ao ar livre, tornando-se um importante alimento no período. Ainda que reduzida ao fabrico da bebida no ambiente doméstico, desde a antiguidade a mulher ficou encarregada de produzir esta bebida para o consumo próprio e familiar.

Ainda no mundo antigo, os povos mesopotâmicos e egípcios mantiveram esta tradição cervejeira por séculos, até atingir a Europa por meio das rotas do comércio mediterrâneo, chegando à Grécia. Lá, a dominação romana impedira que a cerveja fosse adotada como um alimento ou que ganhasse qualquer status de uma bebida importante, elegendo o vinho como bebida oficial – já que a uva encontrava um solo mais fértil para ser cultivada nestas regiões do que os grãos depois transformados em malte. Neste período, a cerveja seria característica dos ‘povos bárbaros’ do norte, nas atuais regiões da Alemanha e Leste Europeu.

Findo o Império Romano, a cerveja encontra espaço para ser aprimorada nas Abadias da Idade Média, que criam o estilo Trapista de cerveja artesanal, conhecido pelos famosos rótulos Chimay, Rochefort e Westvleteren, entre outros. Neste contexto, a mulher já não encontrava grande espaço para desenvolver suas práticas cervejeiras, visto que não eram aceitas nos mosteiros da Igreja Católica, muito menos poderiam atuar como copistas das tão secretas receitas cervejeiras produzidas pelos abades.

Se soubessem ler, correriam inclusive o risco de parar na fogueira da Inquisição, sempre a postos para reprimir qualquer mínimo gesto de autonomia feminina, julgando-as prontamente como bruxas. De qualquer forma, a cerveja consumida por grande parte da população pobre continuava sendo feita em casa, pelas mulheres, as grandes mestras cervejeiras da História.

Na Revolução Industrial alguns tipos de cerveja passam a ser produzidos exclusivamente para consumo dos operários e carregadores, como foi o caso das Porters inglesas. Em escala industrial, agora na mão de empresários do ramo, as cervejas deixaram de ser produzidas pelas mulheres, que neste período se encontravam nas fábricas trabalhando em longas e exaustivas jornadas junto aos seus filhos. No tempo cada vez mais veloz e exigente do período industrial, tanto homens como mulheres preferiam comprar cerveja em lojas de conveniência a fabricá-la em casa.

Hoje, quando a mulher é relacionada ao universo cervejeiro, ela está para a venda do produto como uma lata de cerveja está para o consumidor. A mulher deve então ser consumida, tal como consumimos o malte da cevada, e perdeu completamente seu papel de agente histórico como conhecedora das técnicas do fabrico de cerveja, e inclusive, de um consumo autônomo e livre da figura masculina, que hoje ‘tutora’ seu consumo nas grandes campanhas publicitárias.

A tradicional cervejaria tcheca Pilsner Urquell, uma das degustadas em nosso curso, não parece deter este preconceito contemporâneo, produzindo bonitos painéis destas mesmas mulheres se divertindo na companhia de outras, também mulheres, regadas à cerveja.

Elas não são auxiliares de venda, não exibem o suor do corpo comparado ao suor de uma garrafa gelada: mas sim, as consomem. Quando não são meras consumidoras, são também grandes mestras cervejeiras – como é o caso de Amanda Reitenbach, que promove o curso de Fabricação de cerveja artesanal no mesmo Bar Brejas, em Campinas.

Inventoras históricas da cerveja, mestras cervejeiras, consumidoras e apreciadores desta maravilhosa bebida e alimento importantíssimo para muitos povos na História, as mulheres mantêm uma relação com a cerveja muito mais complexa e especial do que o marketing publicitário vulgar tenta nos convencer na atualidade.

No cartaz abaixo, vemos duas tchecas consumindo esta saborosíssima Lager lupulada, naturalmente amarga como apreciam os tchecos, com um prazer contagiante – “o gosto das mulheres”!

Até semana que vem!