Neste sábado, a coluna “Buraco da Fechadura”, com os contos de Aloisio Villar, retorna contando o dia em que deram volta no morto – mas este voltaria para o acerto de contas…
Garantia de boas risadas.
Deram volta no morto, mas acabaram sambando…
Ah o carnaval…
Quem vê os desfiles de escolas de samba, aquela coisa linda considerada por muitos o maior espetáculo da Terra não sabe como é para chegar até ali, o desfile em seus 82 minutos de avenida.
Os trabalhos das escolas de samba começam poucas semanas depois do carnaval. As escolas escolhem os enredos que vão contar no carnaval seguinte: de preferência enredos que dêem algum dinheiro para a escola. Desse enredo é confeccionada a sinopse, que nada mais é que o roteiro do que a escola levará para avenida: setores, ordem dos carros e alas. Tudo começa a ser feito no barracão da agremiação.

Dessa sinopse, dessas informações contidas nela são feitos os sambas de enredo. Para você ouvir aquele samba na avenida embalando a escola um processo difícil e disputado é realizado.

Mais ou menos em junho os compositores recebem essas sinopses e montam suas parcerias para o concurso que escolherá o samba. Cada parceria tem em média cinco pessoas e nem todas elas escrevem: uns dois ou três fazem os sambas. Os outros são os responsáveis por colocar torcida na quadra, ter boa política com a diretoria da agremiação ou bancar o financiamento da disputa.

Sim, porque uma disputa de samba-enredo é cara. No Grupo Especial do Rio de Janeiro a parceria campeã recebe mais ou menos trezentos mil reais em direitos autorais, então é evidente que esse dinheiro “não vem fácil”.

São necessários gastos como colocar torcida na quadra e para essa torcida estar dentro da quadra os compositores tem que comprar ingressos. Não só ingressos como dar churrasco para esses torcedores, locomoção e bebida dentro da quadra.

Tem que contratar cantor famoso nas escolas de samba e esse cantor precisa de outros cantores para acompanhá-lo, músicos que toquem cavaco e violão, os compositores tem que gravar cds para entregar na escola… Os gastos são altos: com menos de quarenta mil reais dispendidos você não consegue fazer um samba campeão.

O concurso dura mais ou menos dois meses e a cada semana sambas são eliminados até que sobram três ou quatro – que são os finalistas.

Explicada como é uma disputa de samba-enredo e todas as suas dificuldades, vamos à história.

A disputa na Acadêmicos da Guanabara sempre foi difícil. A escola é conhecida por ter os maiores poetas e os sambas mais famosos do Rio de Janeiro e foi assim até recentemente.

Até que os talentosos e malandros Dudu, Martinho, Larcinho e Quito decidiram montar uma parceria.

Dudu e Martinho já eram compositores antigos da casa e se juntaram a Quito que era um excepcional cantor e que se transformara em cantor da escola. Larcinho era um garoto, filho do vice presidente da escola, o senhor Lárcio Sodré.

Ganharam dois anos a competição na escola e como cada vez que se ganha fica mais difícil vencer no ano seguinte tinham que fazer algo para garantir o tricampeonato.

Conseguiram um patrocínio poderoso com o Major Barrosão, chefe da milícia na área que se dispôs a ajudar financeiramente no que precisasse a parceria, só querendo sua grana de volta em caso de vitória do grupo.

Concordaram com a oferta e para fechar o grupo pensaram em um antigo compositor da Acadêmicos que há muito tempo não escrevia e se transformara no responsável pela quadra da escola: Gilberto Borjalo.

Parceria formada, fizeram o samba e foram para a disputa. A parceria era muito talentosa e conseguiu o tricampeonato, ou seja: grana preta garantida por mais um ano.

Na semana seguinte Dudu, Martinho, Quito, Larcinho, Barrosão e Borjalo promoveram um mega churrasco no morro, com presenças até de políticos que promoviam o “beija mão” ao major. Barrosão dava tiros ao alto dizendo que quem mandava ali era ele e sempre ganharia o samba que ele quisesse na escola; que usaria a grana que os compositores lhe devolveriam para fazer uma escolinha de percussão na comunidade.

O dinheiro só saía depois do carnaval. A escola não fez um bom desfile, escapando do rebaixamento por pouco, mas escapou: era o que importava. Assim a parceria poderia planejar o tetra e ganhar mais dinheiro.

Souberam que o dinheiro seria liberado na segunda de manhã e no domingo resolveram fazer uma festinha para comemorar. Quito era casado e Dudu homem caseiro, então não foram. A festinha foi comandada por Martinho e Larcinho.

Pelas tantas Larcinho comunicou a Martinho que tinha chamado Borjalo. Martinho perguntou se era uma boa, a festa estava cheia de mulheres, bebida, não era muito a praia de Borjalo que gostava mais de tomar café e jogar cartas, mas Larcinho mandou que o parceiro não se preocupasse, que o “coroa iria se amarrar”.

Borjalo chegou um pouco depois e os três farrearam muito com cinco mulheres estonteantes, cheias de amor para dar e bebidas de todas as espécies. A farra durou a noite toda até que todos apagaram e Martinho acordou com o relógio tocando: era hora de pegar o dinheiro.

Cheio de ressaca Martinho acordou e perguntou a Larcinho por Borjalo, o rapaz respondeu que não vira. Procuraram por toda a casa até que encontraram o velho no banheiro com a cabeça na privada. Borjalo estava morto.

Larcinho soltou um “puta que pariu” e correu para tirar a cabeça de Borjalo da privada. Martinho reclamava que bem que tinha dito para não chamar Borjalo e Larcinho revidada mandando que ele fizesse alguma coisa. Martinho pegou o telefone e ligou correndo para Quito e Dudu.

Os quatro ficaram lá na sala com o corpo de Borjalo perguntando o que fariam. Quito respondeu que ligaria para a escola de samba informando o falecimento e perguntando por parentes para comunicar. Quando começou a discar o celular Dudu mandou que desligasse.

Dudu falou que não podiam fazer isso, porque se comunicassem o falecimento a parte do dinheiro de Borjalo ficaria presa e sobraria para os quatro ter que dar a parte de Barrosão. Ficaria muito pesado para eles dividirem aquela despesa em quatro partes ao invés de cinco, quase sobraria nada.

Larcinho disse que ele tinha razão e Dudu continuou dizendo que Borjalo não tinha mulher nem filhos então poderiam dar a parte dele toda para Barrosão e completar só com um pouco de dinheiro deles. Seria perfeito: eles ficariam com muito mais dinheiro que pensaram, dariam o dinheiro de Barrosão e ficariam todos felizes.

Martinho disse que o plano era bom, mas perguntou como fariam aquilo.

Dudu, Quito, Martinho e Larcinho foram até a arrecadadora de direitos autorais com Borjalo a tiracolo de chapéu e óculos escuros, copiando o filme “um morto muito louco”. A diretora do órgão notou que Borjalo estava muito quieto e os rapazes disseram que era ressaca. Ela entregou documentos à eles e disse que já voltava com os cheques.

Na saída dela rapidamente Dudu assinou os documentos referentes a Borjalo com assinatura perfeita e quando ela voltou entregaram os documentos e pegaram os cheques.

Saíram dela, pegaram o dinheiro no banco, deixaram o corpo de Borjalo sem que ninguém visse na secretaria da escola e todos pensaram que ele morrera na agremiação. Depois entregaram a parte de Barrosão e concluíram o “crime perfeito”.

Borjalo foi enterrado com a agremiação toda presente, um surdo fazendo a marcação do minuto de silêncio e os parceiros chorando sua morte – e com grana no bolso.

As semanas se passaram com tudo parecendo cair no esquecimento quando Dudu foi ao supermercado e voltando ao carro viu um bilhete no vidro. Pegou para ler e estava escrito: “deram volta em morto”.

Dudu se irritou com aquela brincadeira sem graça, mas deixou para lá e entrou no carro. Chegando em casa viu no espelho do banheiro escrito em batom “deram volta em morto, vão pagar”. O telefone tocou logo depois, ele começando a ficar assustado atendeu e ninguém falava nada do outro lado. Ficou realmente assustado.

A campainha tocou e Dudu cheio de medo abriu a porta. Eram seus parceiros de samba assustados relatando os mesmos tipos de fenômenos. Quito apavorado dizia que era o fantasma de Borjalo assombrando e Dudu mandava ele parar de ser ridículo – fantasmas não existiam.

Martinho teve idéia de rezarem uma missa pela alma de Borjalo e eles foram até a igreja que o defunto freqüentava e fizeram. Mas não adiantou nada: a perseguição continuava.

Os quatro se reuniram novamente na casa de Dudu, já pensando em contratar um exorcista, quando bateram na porta violentamente. Quito se assustou dizendo que era a alma de Borjalo e Larcinho mandou que ele deixasse de ser idiota – fantasma não batia portas.

Abriu a porta e Barrosão, que era um negão, entrou branco na casa com uns capangas armados e contou que há uma semana vinha sendo perseguido pelo fantasma de Borjalo. Sonhava com o defunto e recebia cartas dizendo que o dinheiro que recebeu era roubado de morto e que ele iria pagar por isso.

Dudu tentou desconversar dizendo que era mentira, mas um Pai de Santo acompanhava Borjalo e desmentiu Dudu afirmando que era verdade. Disse inclusive que recebeu o espírito do morto dizendo que se vingaria de todos, a começar por Barrosão.

Barrosão fez o sinal da cruz e os quatro começaram a gaguejar e não dizer coisa com coisa. O Pai de Santo completou que a única forma de Barrosão escapar da maldição era que dessem as partes de dinheiro deles ao miliciano.

Martinho tremendo e gaguejando respondeu que não tinham mais a grana e nessa hora o miliciano e seus capangas sacaram as armas e apontaram aos compositores. O Pai de Santo saiu de fininho da casa enquanto os quatro se ajoelhavam e pediam piedade.

Barrosão contou “um, dois…” e interrompeu a contagem pra perguntar:

 – Vocês não estão ouvindo um ‘tic tac’?

Sim, tinha um tic tac. A casa explodiu mandando tudo pelos ares.

Enquanto os bombeiros tentavam apagar o fogo da casa e a polícia entender o que ocorria, em outro canto da cidade o pai de santo chegava com uma mochila para encontrar uma mulher que também tinha uma mochila.

O homem deu um beijo na mulher e disse “o dinheiro do otário ta aqui, ele acreditou na história que seu irmão baixou em mim e falou que era dinheiro maldito”.

A mulher riu e respondeu “o dinheiro daqueles quatro idiotas também está comigo, esses nunca mais darão volta em morto. Que se entendam com meu irmão no inferno”.

Deram outro beijo e entraram em um carrão em direção ao aeroporto e desfrutar de todo aquele dinheiro.

Vai, vai dar volta em morto para você ver…