Nesta terça feira, mais uma edição da coluna “História & Outros Assuntos”, escrita pelo Mestre em História Fabrício Gomes. No texto de hoje ele analisa a formação de regimes autoritários, tendo especialmente o Estado Novo, o governo de Garrastazu Médici e a ditadura de Pinochet como exemplos. Ressalvo que discordo das observações sobre a política econômica de Pinochet e sua estrutura de apoio – que desenvolverei em outro post.

A Memória, o Sagrado e o Encantamento: a construção social dos regimes autoritários

“Mas somos, não sei como, duplos em nós mesmos, o que faz com que não acreditemos no que acreditamos e não possamos nos desfazer do que condenamos” (Montagne)

O título desse post remete a uma variada mistura de assuntos sobre os quais venho lendo bastante nos últimos dias: a legitimação dos regimes autoritários, exemplificada na excelente coleção “A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX”, organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat – professoras da Universidade Federal Fluminense (UFF).

A coleção, que abrange a América Latina, Ásia/África e Europa, tem o propósito de analisar casos específicos de ditaduras militares em diversos países – muitos os quais não temos muitas informações justamente porque passam ao largo da grande mídia. Ou então regimes autoritários que foram obliterados ao longo da história – seja porque a memória dos vencedores prevaleceu, seja porque foram desqualificados como “vencidos” ou até mesmo politicamente não interessavam serem lembrados.

O double penseé, que Pierre Laborie já falara em seu célebre livro “L´opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d´identité nationale. 1936-1944”, acerca da invasão alemã na França, que acabou por originar a criação do regime de Vichy – de influência nazista e comandado pelo general francês Philippe Pétain – que se auto intitulava um État Français, é capaz de nos direcionar para a ambivalência dos muitos que se negaram a admitir os crimes de guerra cometidos por Hitler, com participação deles mesmos, atores sociais envolvidos no colaboracionismo francês durante a Segunda Grande Guerra. Fascínio? Coerção? Manipulação?

O mesmo questionamento pode ser estendido às demais ditaduras que o século XX vivenciou e o alvorecer deste século XXI ainda insiste em experimentar. Ditaduras de esquerda e de direita – se bem que particularmente estes conceitos (direita, esquerda) estejam, no meu entender, ultrapassados.

Ainda persiste a idéia de que ditaduras são implementadas à força e a plebe manipulada. Não precisamos ir tão longe para exemplificar isso: no Brasil do Estado Novo (1937-1945), Getúlio Vargas foi o ditador (dublê de presidente) que massacrou opositores com sua polícia política, comandada por Filinto Muller, e os desfiles de 1 de maio nos estádios do Pacaembu (SP) e São Januário (RJ) nada mais eram do que imposições do regime, com o povo guiado (e enganado) à força para comparecer.

Afinal, um estádio lotado, saudando o ditador nada mais era do que a chancela popular se contrapondo à política repressora do “Pai dos Pobres”. Entretanto, a eleição de Vargas em 1950 (atenção: apenas cinco anos após a deposição do presidente, impulsionada pelo fim da 2a Guerra Mundial), novamente alçado à Presidência da República suscitou novas dúvidas: como pôde esse povo, tão controlado e reprimido, colocar o “retrato do velho” novamente no lugar mais alto?

Certamente que alguns setores mais conservadores possam ter aderido, mais uma vez, à idéia de manipulação. Difícil, no entanto, acreditar nessa possibilidade, quando do outro lado estava a União Democrática Nacional (UDN), com o seu brigadeiro Eduardo Gomes e o olhar atento do Corvo (Carlos) Lacerda. A chancela popular que conduziu Vargas novamente ao poder – e que posteriormente representou a “Vitória de Pirro” para o próprio presidente – foi a senha para que historiadores e pesquisadores interessados pelo tema pudessem descortinar novas possibilidades de estudos acerca do tema.

O historiador e professor da UFF, Jorge Ferreira, em seu “Trabalhadores do Brasil – o imaginário popular”, prestou importante e decisiva contribuição – um estudo que impulsionou diversos outros trabalhos – para que leigos e interessados no tema pudessem entender que a relação entre a classe trabalhadora no Brasil e o presidente da República, no período entre 1930 e 1945, ia muito além a de admiração e submissão.

As fontes utilizadas foram várias correspondências enviadas pelo povo para Vargas, que iam parar na Secretaria de Comunicação da Presidência. Eram cartas que pediam empregos, moradia, comida, mas também cobravam posicionamentos do próprio presidente – o que expõe o caráter participativo do povo perante seu líder. Por outro lado, seria também fantasioso negar a influência da propaganda ideológica e o caráter da violência policial utilizadas no período, só que apenas utilizar tais manejos para falar do Estado Novo corresponde a um recurso insuficiente de aferição – o que na História é extremamente condenável.

Afinal: como um homem sozinho, de baixa estatura e já não tão novo, poderia enganar tanta gente – os milhões de brasileiros? Como poderia manipular tantos? Se não houvesse um fundo de verdade em suas palavras e, principalmente, na sua relação de intenso carisma com a população, Vargas seria facilmente abatido.

Uma andorinha só não faz verão…

A memória popular, primeiramente do gaúcho que derrotou uma elite oligárquica que permanecia no poder desde a Proclamação da República (1889), concebendo a Revolução de 1930, lhe era grata. O sagrado, por sua vez, correspondeu às distintas atribuições sobrenaturais que lhe foram impostas – “Pai dos Pobres”. A sacralização em torno do mito transformou Getúlio quase numa figura santificada perante os miseráveis – e principalmente após sua morte, quando, num golpe de mestre, saiu da vida para entrar na História, jogando seu cadáver aos seus encarniçados inimigos políticos e pessoais.

Sua carta-testamento virou o manifesto do PTB, quase uma Bíblia para todo o trabalhador. Isso acirraria ainda mais os anos posteriores que culminariam, mais tarde, com o golpe civil-militar. Por fim, o encantamento popular com o mito, com a inauguração de um novo tempo para os trabalhadores, trazendo cidadania à realidade desesperançosa de outrora. 

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – inspirada (mas não copiada) da Carta del lavoro italiana, a racionalização das horas de trabalho (antes, adultos, mulheres, idosos e crianças trabalhavam mais de catorze horas por dia, sete dias por semana, em condições inóspitas de trabalho), a criação da Carteira de Trabalho e a implementação de diversos outros benefícios não podem ser subjugados ou esvaziados na hora de mostrar a importância que Vargas teve para o povo brasileiro.

“No ano de mil oitocentos e oitenta e três
No dia dezenove de Abril
Nascia Getúlio Dorneles Vargas
Que mais tarde seria o governo do nosso Brasil
Ele foi eleito deputado
Para defender as causas do nosso país
E na revolução de trinta ele aqui chegava
Como substituto de Washington Luis
E do ano de mil novecentos e trinta pra cá
Foi ele o presidente mais popular
Sempre em contacto com o povo
Construiu um Brasil novo
Trabalhando sem cessar
Como prova em Volta Redonda, cidade do aço
Existe a grande siderúrgica nacional
Tendo o seu nome elevado
Em grande espaço
Na sua evolução industrial
Candeias, a cidade petroleira
Trabalha para o progresso fabril
Orgulho da indústria brasileira
Na história do petróleo no Brasil

Salve o estadista
Idealista
E realizador
Getúlio Vargas
O grande presidente de valor”

(“O Grande Presidente”, samba-enredo de autoria de Padeirinho – Estação Primeira de Mangueira, 1956 – áudio acima)

Viajando na História, é comum também atribuir às ditaduras “de direita” o poder coercitivo e manipulador, tão  presentes no século XX.

Os presidentes militares que o Brasil conheceu, entre 1964 e 1985 estão aí incluídos. Afinal: os 21 anos em que o Brasil foi comandado por fardas verde-oliva corresponderam a um período de terror imposto aos brasileiros. Certo? Em parte. Terror político, sim. Mas no que tange à economia… 

“A economia vai bem mas o povo vai mal” foi uma frase dita pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, que foi, ao mesmo tempo, considerado o presidente mais repressor e mais popular do Brasil durante aqueles 21 anos. Como explicar esse fenômeno? Como explicar que, durante as comemorações do sesquicentenário da Independência do Brasil, Médici fosse aplaudido de pé por mais de 100 mil pessoas no estádio do Maracanã, aplaudido por pessoas humildes? O presidente era um aficcionado por futebol e ia sempre que podia ao estádio acompanhar jogos do Flamengo.

Tal fato, por si só, já criava uma aura de identificação do “ditador” com as massas – que se viam ali personificadas.  Em julho de 1971, Médici tinha 82% de aprovaçao, segundo o IBOPE, e em 1972 a economia atingiu um crescimento de 11,9%. Em 1972, o Congresso Nacional chegara a cogitar a hipótese da reeleição de Médici e em junho daquele mesmo ano, o jornal Correio da Manhã iniciara campanha defendendo a permanência do presidente no poder.

Manipulação de um povo alienado? Força e arbitrariedade do regime em prol da aprovação popular do presidente? Difícil de acreditar nesses elementos que a historiografia marxista dos anos 1970 e 1980, apoiada no determinismo, procurou insinuar, nesse sentido, sobre os Anos de Chumbo.

Em outros países verificamos o mesmo paradoxo: a aprovação, até os dias atuais, de diversos presidentes-ditadores – alguns já não mais vivos. Foi o caso do presidente Augusto Pinochet, no Chile. A memória popular por lá é ambígua e bastante dividida, quase meio a meio, entre aqueles que rechaçam qualquer benefício do regime militar chileno, e aqueles que são saudosos do período de bonança chileno – e que atribuem o desenvolvimento do país às medidas econômicas adotadas durante o regime militar.

Parêntese: deve-se lembrar que ao assumir o poder, Pinochet soube separar a política da economia, entregando as decisões monetárias a um jovem grupo de 25 economistas chilenos formados na Universidade de Chicago – os Chicago Boys, pioneiros pioneiros do pensamento neoliberal. O Chile antecipou em quase uma década medidas que só mais tarde seriam adotadas por Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, e responsáveis pelo “The Miracle of Chile”, denominação dada por Milton Friedman, economista estadunidense.

Poderia me alongar aqui em analisar diversos outros regimes autoritários, construídos e referendados socialmente durante a história. Sobre o nazismo, apoiado pela população alemã, escrevi em fevereiro de 2011 um post sobre o tema. Em Cuba, o regime castrista até hoje perdura – embora sem a figura onipresente do já enfermo Fidel Castro.

É natural que regimes autoritários despertem simpatia e oposição. Mas se permanecem no poder, é porque existe uma contrapartida social – senão, cairiam como castelos de cartas. A Primavera Árabe – mais precisamente a Tunísia do ditador Ben Ali, e o Egito do presidente Hosni Mubarak, depostos em deflagrações populares, impulsionadas pelas redes sociais – é um exemplo de que:

“quando o povo quer, o povo pode”.

One Reply to “História & Outros Assuntos: "A Memória, o Sagrado e o Encantamento: a construção social dos regimes autoritários"”

  1. Achei ótimo o post apesar de não concordar com vários pontos dele. Deixo aqui uma dica de documentários sobre as ditaduras na América Latina que valem a pena serem vistos:

    – Utopia e Barbárie
    http://docverdade.blogspot.com/2011/11/utopia-e-barbarie-2009.html

    – A Batalha do Chile:
    http://docverdade.blogspot.com/2010/02/batalha-do-chile.html

    – Arquitetura da destruição:
    http://docverdade.blogspot.com/search/label/Nazismo

    – Contos da Resistência:
    http://docverdade.blogspot.com/2010/07/contos-da-resistencia-2005.html

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