Nesta sexta, mais uma edição da coluna ”Cinecasulofilia”, assinada pelo professor de cinema, crítico e cineasta Marcelo Ikeda. Como sempre, publicada em parceria com o blog de mesmo nome.
Drive
Drive me lembra a famosa frase de Samuel Fuller de que tudo o que se precisa para se fazer um filme é “a girl and a gun”.
Nicolas Winding Refn poderia acrescentar: “…e um carro!”
A narrativa de Drive é profundamente banal, mas o que nos encanta é como o diretor consegue transformá-la por um cuidadoso domínio da linguagem cinematográfica, em seduzir o espectador através de uma manipulação dos nossos sentidos. Ou seja, o bom e velho cinema americano.
Um certo cinema cool de referências nos vem imediatamente à cabeça, como o cinema do Tarantino, especialmente por alguns cacoetes como a narrativa elíptica, com abruptos flash forwards, que nos dão “um certo barato” sensorial.
Se pensarmos em português, “Drive” ainda nos oferece outras camadas de leitura: a “direção” do carro e a “direção” do próprio filme, já que, de fato, o ator é um dublê de si mesmo, que a certo ponto veste uma máscara, numa das mais impressionantes cenas do cinema contemporâneo, em que a câmera lenta abdica de sua aura de fetiche para ser um mergulho fatalista corajoso e admirável, potencializado pela estonteante trilha sonora de Angelo Badalamenti (músico dos filmes de David Lynch) e de Cliff Martinez (ex-Red Hot Chili Peppers).
Como se não bastasse, há ainda a impressionante atuação de Ryan Gosling, herdeira das comédias de Buster Keaton, ou ainda, fruto do “efeito Kuleshov”: uma “máscara branca” que compõe, de forma brilhante, uma mistura de extrema frieza e de uma enorme compaixão, melancolia, diante de seu futuro inevitável.
Drive é uma bela alegoria sobre a inevitabilidade do mal, e todo o filme se desenvolve como uma tragédia. A sobriedade e a frieza do personagem de Gosling são quase a mesma do estilo de Nicolas Winding Refn, e elas não escondem tanto a profunda paixão desse personagem frio nem a profunda pulsão desse filme “frio”, meticulosamente decupado, em que o improviso parece ser completamente impossível.
É dessa forma que vejo o filme com muito em comum com o recente trabalho dos Irmãos Coen (muito mais do que com Tarantino). É muito interessante compararmos Drive com Onde os Fracos Não Tem Vez: são dois filmes de persoanagens que se veem, pelas circunstâncias do destino, tendo que fugir de inimigos sanguinários por conta de um saco de dinheiro. Ambos os filmes possuem um prazer quase sarcástico em manipular as emoções do espectador, numa decupagem fina, meticulosamente planejada.
Mas enquanto o cinema dos Irmãos Coen apontam para o absurdo da falta de sentido dessa desesperada corrida contra a inevitável vitória do mal, Drive parece apontar para uma pequena possibilidade de algo pulsar para além do plano: ainda é possível dizer “eu te amo”.
Se ambos concordam que o cinema é “a girl and a gun”, Refn parece mais interessado na garota, enquanto os Coen na arma. Nesses breves momentos, Drive se mostra além de seus jogos narrativos e de sua falsa aderência ao cinema de gênero, para compor algo realmente raro e singular. Vamos ver seus próximos filmes!