Nossa coluna “Samba de Terça” hoje será uma homenagem àquele que considero um dos maiores compositores de escola de samba de todos os tempos e que completará sessenta anos de idade no próximo dia 26: Juan Espanhol, “cria” do Arranco do Engenho de Dentro e com sambas vencedores também na Portela e na Unidos da Tijuca. Sua parceria com o também compositor Sylvio Paulo é uma das mais prolíficas da história do samba de enredo carioca.
Espanhol será o entrevistado da próxima sexta feira da coluna de entrevistas “Jogo Misto” do Ouro de Tolo. E o samba abordado hoje é um dos indicados pelo compositor como preferidos: “Guelédés, o Retrato da Alma” – Arranco 2006.
O Arranco do Engenho de Dentro é uma escola bastante tradicional da Zona Norte carioca. Era um bloco que se transformou em escola de samba no início da década de setenta, chegando a desfilar no hoje chamado “Grupo Especial” em 1978 e em 1989. Também foi uma das escolas onde o hoje laureado Paulo Barros trabalhou antes de ir para a Unidos da Tijuca.
A agremiação, após alguns anos no Grupo B, retornava em 2006 ao Acesso A, o chamado “segundo grupo”. Alcançara tal feito com o vice campeonato no ano anterior, quando reeditara “Quem Vai Querer”, seu samba mais famoso e com o qual a escola havia desfilado em 1989 no Olimpo do samba. Algumas mudanças foram feitas na equipe: vieram o carnavalesco Jorge Caribé – que depois teria uma passagem razoavelmente bem sucedida por Portela e Mangueira – e o puxador Zé Paulo, hoje na Mangueira, faria sua estréia como primeiro intérprete.
O enrtedo proposto não era exatamente inédito. Contar a história das máscaras e da personalidade humana através delas já havia sido enredo da Unidos da Ponte e da Tradição em naos anteriores. A perspectiva do carnavalesco era a de acrescentar toques místicos e afro brasileiros à proposta de enredo. Como podemos ver na curtíssima sinopse:
“Vamos cantar a história da personalidade humana, através das máscaras, desde a África antiga até o novo mundo.

O homem da pré-história, com cabeças e peles de animais adquirindo força e poder;
A morte e a vida na mesma direção;
O culto do Egungun da África para o mundo; As bruxas e seus encantos, feiticeiras e curandeiras;
Máscaras ritualísticas, dança e crença na ressureição;
Egito dos faraós, múmias, Anúbis e sarcófagos mortuários; tudo sobre a proteção de Anúbis;
Oriente, budas, gueixas, dragões, quimeras;
As mil e uma noites de Ali Babá, Xeiques e Odaliscas;
Grécia da Medusa, Minotauro;
Veneza, o Zorro, Máscara Negra;
Super-heróis infantis;
Operações transexuais;
Conduta, comportamento, liberdade de expressão;
Carnaval, posso ser tudo o que quiser, desde que seja fantasiado e tenha alegria;
Com a máscara no rosto posso ser tudo o que quiser e puder.” 
(Fonte: Galeria do Samba)

A disputa de samba desde o início foi polarizada entre as parcerias de Juan Espanhol/Sýlvio Paulo e Carlinhos Maciel, apesar de ter contado com dez parcerias concorrentes e pelo menos a metade deles com bons sambas. Espanhol e Sylvio Paulo retornavam à disputa da escola após vários anos afastados por discordar dos rumos que as disputas de samba estavam tomando. Entretanto, a reedição do ano anterior possibilitou o retorno da dupla ao concurso como uma forma de retribuir a homenagem recebida por parte da escola em 2005.

Segundo Espanhol, ao contrário do que vemos hoje a sinopse de Caribé possibilitou muita liberdade criativa aos compositores. Segundo seu relato – que faz parte da entrevista – muitas coisas que compunham o samba não estavam originalmente na sinopse, e as palestras para a dissolução de dúvidas aos carnavalescos também trouxeram elementos novos, como o pássaro “Eleié”. Novamente de acordo com o relato do compositor, a impressão que ele tem é que Caribé montou o roteiro de desfile e a parte plástica a partir do samba – impressão que também foi manifestada à época em grupos de discussão pela internet.

Juan Espanhol e Sylvio Paulo venceram a disputa, ao lado de Fernando, Bola e Bira Só Pagode. Era a décima terceira vitória de Espanhol no Arranco – recorde na escola – e até o momento em que escrevo foi a última. E o samba foi considerado o melhor inédito daquele grupo pela maioria e, por muitos, o melhor samba do carnaval 2006.

A preparação da escola seguiu com dificuldades financeiras. A escola não tem patrono e a subvenção deste grupo é claramente insuficiente para um desfile competitivo – embora tenha melhorado, ainda hoje o é. E a escola disputaria com agremiações muito mais estruturadas como a União da Ilha, a São Clemente e a Estácio de Sá, esta também voltando do Acesso B mas com patrono forte. Sua luta seria para se manter no grupo.

O Arranco foi a sétima escola a desfilar na noite de 25 de fevereiro de 2006, sábado de carnaval. O carnavalesco optou por um desfile em tons escuros, utilizando-se de materiais reciclados e fantasias mais simples a fim de driblar a falta de recursos. A bateria cometru um erro durante o desfile, “atravessando”, e depois optou por passar “reta” sem efetuar paradinhas ou coisas correlatas. O puxador Zé Paulo não mostrou o brilhantismo que desenvolveria nos anos seguintes mas não comprometeu o ótimo samba escolhido.

Nas palavras do jornal O Globo no dia seguinte ao desfile (assinadas pelo jornalista Bernardo Araújo):

“O Arranco, que também voltava ao grupo, animou o público com o ótimo samba “Gueledés, o retrato da alma”, mas a parte visual do desfile não ajudava em sua compreensão. O público ficou sem saber se os Gueledés eram uma entidade, uma lenda ou apenas alguma espécie de ser onipresente, que passeava pela Índia, pelo Extremo Oriente e pelo Brasil. Mas a escola do Engenho de Dentro deve conseguir permanecer na Segundona do Samba.”

Havia uma certa apreensão na escola com o resultado, mas em uma apuração cuja vitória da Estácio de Sá não surpreendeu àqueles que acompanham com mais atenção o dia a dia pré-carnavalesco a escola obteve a sétima colocação entre dez escolas, com 236 pontos.

O melhor estava guardado para o final: o samba ganhou os dois principais prêmios carnavalescos cariocas, o Estandarte de Ouro e o Prêmio Sambanet – ambos na categoria “Melhor Samba do Grupo de Acesso A”. Eram dois prêmios que os dois grandes compositores não tinham, corrigindo grave injustiça.

Vamos à letra do samba, que pode ser ouvido acima em sua versão ao vivo.
“E foi-se a luz: trevas, raios, bruxaria…
E foi-se a paz: pesadelos e agonia…
E desde então, os Orixás,
Ou aliados ou rivais,
Formam correntes de paixão
Nos Rituais…
Aí eu personalizei
O Bem, o Mal de cada ser
Que eu ajudei a definir sem escolher..

Mascarei a Liberdade
E pintei poder e fé,
Semeei Desigualdade
Sob o olhar de Eleié

Assim, na Grécia Filosofei…
Em Roma eu conquistei…
Lá no Egito fui Rei…
Vesti Ali Babá, fui ladrão…
Já fui Gueixa no Japão…
No Nordeste Lampião…
Mas, não me leve a mal,
Hoje sou Poeta, é Carnaval…

Sou a Alma, sou a cara
Sou o retrato
Que retrata o que na Alma
Eu sou de fato!”