Nossa coluna “Samba de Terça” de hoje traz um samba e desfile que hoje, em 2011, já seria bastante polêmico. Imagina em 1986.

“Cama, Mesa e Banho de Gato”, da Unidos da Tijuca, é o nosso tema de hoje da coluna. Originalmente era um enredo sobre os sete pecados capitais, mas como a sinopse deixa claro era focado em um deles: a luxúria.

1986 seria um ano histórico para o carnaval carioca. Após longos 21 anos de ditadura, seria o primeiro carnaval sob a regência da democracia, sem amarras de quaisquer espécie sobre a liberdade de expressão e sem a censura sobre a mesma.

O resultado é que tivemos alguns enredos e sambas que testavam a permissividade recém-conquistada. Um bom exemplo era a Vila Isabel, que trazia um “não venha agora me sacanear” na letra do samba. Ou mesmo a vetusta Portela, com um insólito enredo crítico.

Contudo, coube à Unidos da Tijuca testar os limites não somente da nascente liberdade como da sociedade como um todo. O enredo proposto pelo carnavalesco Wany Araújo – que fora auxiliar de Joãozinho Trinta nos áureos tempos de Beija Flor de Nilópolis – buscava mostrar a luxúria como vértebra que movia todos os demais pecados capitais. Nas palavras da sinopse e do roteiro de desfile:

Sinopse:

Entrando em ritmo de Nova República, de liberação da censura, de reavaliação do instinto e reposição do prazer em seu espaço legítimo, nosso desfile torna como referência a sucessão de “Pecados Capitais”, que são sete, mas que no nosso filtro se equilibram sob uma única vértebra, a da luxúria.

Os “Pecados Capitais”, assim denominados, passam aqui como fonte de alegria e de expressão plena, relacionando a parceria bíblica (homem/mulher) e suas variantes, com o senso de humor das circunstâncias mais conhecidas:

  • a conquista da beleza jovem e seu teste de competência sexual (orgulho);
  • a defesa do ciúme e da área competitiva de sua atuação (avareza);
  • a passagem do amor oficial para o amor alternativo (luxúria);
  • situações agressivas geradas pelo ciúme e a insegurança (ira);
  • as variações mais bizarras, representadas na metáfora da mesa “qualquer prato satisfaz a quem tem fome” (gula);
  • o olhar dissimulado para a visão ideal, no corpo que passa fora do nosso alcance (inveja);
  • o fazer que alimenta todas as idéias, que cobre a imaginação, que extenua o corpo saciado, incapaz, muitas vezes, de cumprir o dever conjugal, no dia-a-dia da rotina (preguiça).

A vida é o grande palco desses acontecimentos: Seus espaços vitais, a casa, o motel, a literatura erótica, o mercado dos prazeres, passam diante dos olhos do público, em tempo de cornucópia, derramando a euforia sem repressão, na hora de dizer sim aos desejos.

Os corpos, molhados de suor, parecem celebrados pela língua do carnaval, que canta a beleza do instante, deixando nos nervos e músculos dos carnavalescos aquele sabor molhado de liberdade e êxtase.

Nos propomos a uma obra aberta sobre a liberação da carne, sem os subterfúgios dos disfarces, com a pureza da entrega que não se culpa, contra a discriminação que avilta, em favor da presença do que é humano em seu instante de extroversão.

Delírio, coração aberto, sensualidade e humor, são os temperos desta grande mesa oferecida a todos os apetites e, na verdade, atendendo ao apetite básico do homem, pelo qual se multiplica e perpetua a espécie, ao mesmo tempo que exercita a imaginação, valorizando a breve caminhada planetária.

Organograma de Desfile:

  • Comissão de Frente: “Gatões”
  • “Abre Alas “Pavão” – Representa o símbolo da Agremiação em desfile,
  • Destaque: Fernando Ramos como conquistador.
  • 1° Setor de Alas “Conquistadores”
  • 1° Destaque de chão Rosana Estrassy
  • 2° Setor de Alas “Panteras”
  • 1° Quadripé “Avareza”
  • Destaques: Antonio dos Santos, Shirlen Machado e Sônia Machado – Representam a Poligamia
  • 3° Setor de Alas “Matriz”
  • 2° Quadripé “Matriz”
  • Destaque: Edmela
  • 1° Tripé “orgulho”
  • 2° Tripé “avareza”
  • 4° Setor de Alas “filial”
  • 3° Quadripé “filial”
  • Destaques: Ana Mirtes, Carla Fernanda Horta, Jane Vieira de Sá e Raquel Vieira de Sá
  • 2° Destaque da chão: Tereza – Representando a “Noiva”
  • 5° Setor de Alas “Noivos”
  • 3° Destaque de chão: Isaias – Representando Rosas do Jardim da Vida
  • 4° Destaque de chão: Luiz Carlos – Representando Rosas do Jardim da Vida
  • 5° Destaque de chão: Julio César e Fernando – Representando Rosas do Jardim da Vida
  • 6° Setor de Alas “Jardim da Vida”
  • 6° Destaque de Chão: Representando “Prato Predileto”
  • 3° Tripé “luxúria”
  • 4° Tripé “ira”
  • 7° Setor de Alas “Pratos Prediletos”
  • 5° Tripé “gula”
  • 1° Carro Alegórico “Gula”
  • Destaques de complemento “Coelhas”
  • 8° Setor de Alas “Pratos Prediletos”
  • 4°, 5° e 6° quadripé “Pratos Prediletos”
  • Destaques: Jacy, Ricardo Alam e Roberto – Representam pratos feitos
  • 9° Setor de Alas “Trincha”
  • 7° Quadripé
  • Destaque Elsio – Representando a Trincha
  • 6° Tripé “inveja”
  • 10° Setor de Alas “Laminas”
  • 8° Quadripé
  • Destaque: Atié – Representando a Lâmina
  • 7° Tripé “preguiça”
  • 11° Setor de Alas “Cupidos Emissários do Amor” – Ala das Crianças
  • 12° Setor de Alas “Vedetes”
  • 13° Setor de Alas “Caricatas” – Mercado dos Prazeres
  • 9° Quadripé “revista e TV”
  • Destaques: Linda Amorim, Carla Bruninha e Ana Paula
  • 14° Setor de Alas “Sapatão”
  • 15° Setor de Alas “Caricatas” – Mercado dos Prazeres
  • 16° Setor de Alas “Amantes Profissionais”
  • 2° Carro Alegórico “Motel dos Prazeres”
  • Destaques: Toni Fernandes como “Amante Profissional”
  • Criste Sauer de “Viúva Alegre”
  • 17° Setor de Alas “Enfermeiros”
  • 7° Destaque de chão Regina Hammeltt, Iracema – Representam o “êxtase” (Baianas)
  • 18° Setor de Alas “Êxtase” – Ala de Baianas
  • 3° Carro Alegórico “Êxtase”
  • Destaque Jhousse Maia
  • Destaque de complemento como “Prazer Prolongado”
  • 19° Setor de Alas Passo Marcado
  • Bateria “conquistadores”
  • Mestres Sala e Portas Bandeiras como “noivos””

(Fonte: Galeria do Samba)

https://www.youtube.com/watch?v=fN7FWtio5RU

A escola da Tijuca tinha sido promovida ao Grupo 1A (hoje Especial) com o vice campeonato no segundo grupo ano anterior. Era um ano com quinze escolas no grupo, por causa da confusão no ano anterior envolvendo a questão da cronometragem: nem União da Ilha nem Unidos do Cabuçú aceitaram ser rebaixadas, de modo que para 1986 o grupo teria quinze escolas.

Uma apenas seria rebaixada e viriam duas agremiações do segundo grupo, de forma a se ter dezesseis escolas para o carnaval de 1987.

O período pré-carnavalesco foi complicado para a agremiação tijucana. Além de passar pelos percalços habituais às escolas promovidas de grupo, a escola enfrentou uma campanha muito forte por parte de setores conservadores da sociedade. A abordagem de Wany Araújo era claramente transgressora, em um Brasil que ainda vivia seus primeiros passos como libertado das amarras autoritárias.

Dizia-se que o enredo e o samba da escola eram “indecentes” e atentavam à moral e aos bons costumes. A composição mostrava uma série de situações amorosas que são perfeitamente corriqueiras, mas que ainda hoje recebem um tratamento preconceituoso, à margem da sociedade.

O discurso era que o samba era “indecente” e que era um atentado aos bons costumes da família brasileira. Setores mais reacionários defendiam o rebaixamento sumário da escola.

Realmente, o samba possui algumas passagens que, ainda hoje, causariam reações de repúdio de setores mais conservadores. Trechos como:

 “A hora é essa e vamos admitir
Uma só mulher é pouco 
Deixa o homem no sufoco 
Com tantas que andam por aí”
 
E:

 

“Lá vai o trouxa
Crente que está numa boa 
Mas não sabe que a patroa 
Está com o Ricardão 
E sua filha tem fama de sapatão”

 

Certamente seriam considerados “atentados à moral e aos bons costumes”. Particularmente, não deixa de ser uma boa medida da hipocrisia que, muitas vezes, permeia as relações em sociedade. Pode-se discutir a qualidade do samba, mas as situações retratadas são corriqueiras – fingir que não existe não adianta nada.

E foi neste clima que a Unidos da Tijuca abriu a noite de 10 de fevereiro de 1986, segunda feira de carnaval. A escola trazia alegorias e fantasias simples, mas que passavam o recado proposto no enredo: de que a luxúria era algo normal na vida moderna. Muitos componentes seminus – inclusive a transsexual Roberta Close – ilustravam o tema escolhido.

Bom, o que passou para a história é que na apuração a escola acabou rebaixada com a última colocação, obtendo apenas 169 pontos. A família brasileira, há pouco tempo libertada do jugo da ditadura, estava salva. Foi um rebaixamento anunciado e, a meu ver, injusto.

O curioso é que a escola venceria o Grupo de Acesso no ano seguinte com um samba sobre o Plano Cruzado claramente datado, ao contrário desta composição de 1986, atual até hoje. O samba, de Carlinhos Anchieta, Vicente das Neves, Manelzinho Poeta e Azeitona, expressa questões que em 2011 ainda são alvo de patrulhamento por parte de setores mais conservadores.

Vamos ao samba, que pode ser ouvido aqui em versão ao vivo e, abaixo, em estúdio:

O homem orgulhoso como quê 
Não se sente feliz com a sua matriz 
Montou uma filial 
Mostra os pecados capitais no carnaval 
A hora é essa e vamos admitir 
Uma só mulher é pouco 
Deixa o homem no sufoco 
Com tantas que andam por aí 
O arroz com feijão 
Lá de casa é bom 
Mas o cozido da vizinha é melhor 
Dizem que eu sou machista 
Com pinta de egoísta 
Polígamo conquistador 
Mas isso vem do tempo do vovô
Lá vai o trouxa 
Crente que está numa boa 
Mas não sabe que a patroa 
Está com o Ricardão 
E sua filha tem fama de sapatão
Tem piranha no almoço 
Tem virado no jantar 
Pra quem tem fome 
Qualquer prato é caviar
Vida, palco desses acontecimentos 
Desfilando pelo tempo 
Hoje eu quero me banhar 
No prazer mais prolongado 
Que o banho de gato dá 
Gingam cabrochas e ritmistas 
Passistas e vigaristas 
Artistas de revista e TV 
Que não se importam 
Com o que vocês vão dizer
Bota o prato na mesa 
Tudo que vier eu traço 
Prepare a cama 
Que hoje tem banho de gato

2 Replies to “Samba de Terça – "Cama, Mesa e Banho de Gato"”

  1. É um enredo interessante !!! Iria adorar vê-lo reeditado pelo Paulo Barros, até pq este pode fazê-lo sem sair de seu estilo.

    É muito mais interessante e mais a cara do próprio PB do que algums enredos recentes da Tijuca.

    De Rebaixado a campeão seria uma evolução para este samba !!! E ão acho ele sequer ruim !! Talvez seja o samba que mais incorpora o espírito do carnaval de fato que passou na Sapucaí…

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