Mais uma terça feira, ares soteropolitanos, e a nossa coluna “Samba de Terça” traz um samba – sugestão do leitor Emerson Braz – que nem é brilhante, mas é personagem de um dos resultados mais polêmicos da história do carnaval carioca: Beija-Flor 1983.

A Beija-Flor era uma escola pequena, que transitava entre o primeiro e o segundo grupos do carnaval carioca. Em 1974 e 1975 desfilou com enredos de exaltação à ditadura militar, o que granjeou antipatias extremas em setores da intelectualidade carioca.

Em 1976 o banqueiro do jogo do bicho Anisio Abraão David assumiu a escola – onde se encontra até hoje – e investiu fortemente para colocá-la no grupo das grandes. Trouxe do Salgueiro o carnavalesco bicampeão Joãozinho Trinta e gastou muito dinheiro a fim de revolucionar o visual dos desfiles.

Com isso, a escola foi tricampeã em 1976, 77 e 78, vice em 1979, campeã de novo em 1980 – junto com a Portela e a Imperatriz Leopoldinense – e vice em 1981.

Entretanto, em 1982 a escola foi apenas a sexta colocada, ainda tendo de enfrentar um desconto de pontos como punição por ter desfilado com pessoas vivas em suas alegorias – isso era proibido no regulamento daquele ano.

Para o ano seguinte, a escola de Nilópolis optaria por um enredo de fácil comunicação com o público: “A Grande Constelação das Estrelas Negras”. O objetivo era listar personalidades negras de destaque como Pelé, Clementina de Jesus, Ganga Zumba e a passista da escola Pinah – que havia deixado embasbacado o Príncipe Charles da Inglaterra em evento aqui no Brasil.

A escola não tinha tradição de grandes sambas, à exceção de 1976 e 1978 – e o samba escolhido para o carnaval de 83 também não era dos melhores daquele ano. Ainda mais comparando-se com sambas como o do Império Serrano, o da Portela e o da Mocidade Independente, entre outros.

Aliás, Joãozinho Trinta e Paulo Barros, dois dos grandes revolucionadores artísticos do carnaval têm a característica de que as escolas onde passam não possuem grandes sambas enquanto estão lá. Curioso.

Os autores da composição eram o puxador Neguinho da Beija Flor e seu irmão, Nêgo – este mesmo que hoje é intérprete da Mocidade. Era um samba curto e que estava a serviço do visual proposto pelo carnavalesco.

A Beija-Flor foi a décima-segunda e última escola a desfilar, já na no final da manhã da segunda feira de carnaval, 14 de fevereiro – sob um sol escaldante. Toda em branco e prata, a agremiação encerrou os desfiles daquele ano. Se o leitor observar o vídeo com atenção verá que os carros da escola nada mais eram que plataformas para mulatas e destaques – como Jesus Henrique e a cantora Clementina de Jesus – sem esculturas que contassem o enredo – mais tema que enredo.

A expectativa para a apuração era de que a Mocidade Independente, o Império Serrano e a Portela duelariam ponto a ponto pelo título. Mas…

Em um resultado surpreendente a escola de Nilópolis conquistou o título, com 204 pontos, três à frente da Portela e quatro do Império Serrano. A Mocidade parou apenas em sexto, mais de dez pontos atrás da campeã.

Logo depois começaram a aparecer as histórias da apuração. A primeira delas foi a de um jurado, que deu nota baixa para o Império Serrano (um escândalo) e  dez somente para a Beija-Flor. O sujeito, que não tinha muitas condições financeiras, apareceu na semana seguinte ao carnaval com um Monza 0 km – o carro considerado “chique” à época – dado por não se sabe quem.

E tivemos o “Fator Messias Neiva”. Jurado de alegorias, decidiu o carnaval ao dar Nota Dez apenas para a Beija Flor – que só tinha pessoas em cima dos carros, mais nada – e seis para Portela e Mocidade. Como a diferença final foi de três pontos, ele deu o título à Beija Flor.

Ele foi acusado de ter recebido 1 milhão de cruzeiros – a moeda da época – para dar estas notas. Mas vamos à matéria publicada no jornal O Globo em 19 de fevereiro de 1983, sábado seguinte ao desfile, que uma boa alma digitalizou, colocou em uma das listas de discussão e eu tive o cuidado de guardar. Ela fala por si só:

Messias nem se lembra dos enredos das escolas

O jurado Messias Neiva afirmou ontem ter “esquecido” até o enredo da Portela e só poderá explicar por que lhe deu nota seis em Alegorias e Adereços se ver o teipe do desfile. Ele disse ter esquecido também o enredo e a razão da nota oito à Imperatriz Leopoldinense e não se lembra sequer do enredo do Império Serrano. Reconheceu que não entende de samba e disse que, se a Mocidade Independente tivesse colocado o tatu no chão, e não em cima da árvore “levaria mais dois pontos”.

Artista plástico, morador de Caxias, Messias Neiva disse não ter recebido qualquer orientação da Riotur sobre como votar: “Fui lá e dei nota de acordo como que senti na hora”. Ele informou que foi convidado para o júri por um freguês de seus quadros, o juiz José Cauipe, que o apresentou ao Coronel Annibal Uzêda. Nas reuniões a que compareceu, soube apenas que não poderia dar nota zero.

Justificativas

Ele mostrou ao GLOBO o papel no qual justificou as notas dadas à Unidos da Tijuca, União da Ilha, Mocidade Independente e Mangueira – únicas escolas que mereceram anotações ao lado da nota. A Unidos da Tijuca, por exemplo, tirou sete porque “um cidadão empurrava um carro à paisana”:

– Esse cara matou o desfile da escola, porque ela merecia mais, mas ele empurrava um carro alegórico sem estar fantasiado. (A Riotur, porém, permite que os componentes empurrem os carros sem fantasia, o que em todas as escolas).

Messias Neiva, que disse viver de sua pintura “desde a década de 50”, começou a carreira como pintor de letreiros eleitorais. Sobre a acusação de ter recebido Cr$ 1 milhão da Beija-Flor para lhe dar dez, disse:

– É muito pouco para eu sujar meu nome.

Ele confirmou que vem recebendo ameaças de morte e recusou-se a dar seu endereço, em Caxias, onde mora com a família. A entrevista foi na casa de um amigo, em Copacabana.

Esquecimento

Messias afirmou que julgou o desfile “como artista e não como sambista”, porque não entende de samba. A Mocidade Independente foi a única escola que ontem soube analisar rapidamente, mas se referiu a seu enredo como “aquela coisa da selva”:

– Da Mocidade eu sei: nos carros, vinha a vegetação lá em cima uma mulher, com onças em volta dela trepadas na árvore. No segundo carro, vinham tatus nas copas das árvores: foi nesse carro que ela levou pau. Se ela colocasse os pássaros em cima e o tatu em baixo eu aumentaria a nota em dois pontos: de seis para oito. No terceiro carro, vinha a selva, mas faltou a mulher: ou seja, ela adoeceu ou se atrasou. A Riotur disse que, se faltasse um componente, a gente tinha direito até de deixar de votar. E eu vi o espaço da figura viva vazia.

– E a Mangueira, por que mereceu seis?

– Ah, a Mangueira estava fraca de alegoria e aquele trem realmente era maravilhoso, enchia os olhos da gente, mas era só um belo trabalho de carpintaria.

– E o seis da Portela?

– Dei o que ela merecia.

– Mas por que merecia seis?

– Porque na hora eu vi e achei que era seis. Agora não me lembro mais. Como é que posso me lembrar do que vi há quatro dias?

– Você não se lembra nem do enredo? Qual era o enredo da Portela?

– Sinceramente não sei, não posso me lembrar de todos. Sei que a escola estava maravilhosa, não houve falhas.

– E por que o seis, se não houve falhas?

– Ih, já vi que você é portelense. Ora, não sei me lembro. Na hora, eu achei que era seis. Se você me trouxer o teipe do desfile, eu digo.

– Ué, a União da Ilha?

– A União da Ilha tenho aqui anotado ( e começa a ler sua justificativa): “Uma senhora sonolenta em cima de um carro, oferecendo perigo”. Dei nota sete por isso.

Visão Precária

Messias Neiva não se lembra nem do enredo da Beija-Flor, única escola que mereceu sua nota dez, “porque desfilou de dia, para o sol, e pude ver tudo melhor”. Ele explicou que os desfiles durante a noite são sempre prejudicados pela má visibilidade (ele abaixou-se junto ao abajur para ler, sem óculos, suas anotações com dificuldade de visão e, na Avenida Marquês de Sapucaí, também não usava óculos).

– O artista da Beija-Flor fez a obra para desfilar de dia, com sol, e o trabalho ficou bem visível. Vi, achei que estava bom e dei dez.

– Mas a Imperatriz também desfilou durante o dia e mereceu oito. Por que?

– Porque não sou obrigado a dar dez para todo mundo. Ninguém me disse que eu tinha que dar dez a todas. Vi a Imperatriz, o artista dela era excelente, mas achei que merecia oito.

– Você se lembra do enredo dela?

– Não, não me lembro mais.

– E a Portela, desfilou de dia ou à noite?

– A que horas a Portela desfilou? Não sei. Vai ver ele saiu à noite, quando fica difícil de a a gente ver os trabalhos.

Dinheiro, Não

Messias Neiva, de 58 anos, disse que não conhece o Presidente de Honra da Beija-Flor, o banqueiro-do-bicho. Aniz Abraão David, o Anísio, e nem tem interesse em conhecê-lo.

Muito contrariado com a repercussão de suas notas, comentou que, se soubesse que perderia a tranqüilidade, teria dispensado o convite para ser jurado:

– Olhe, eu tenho casa própria, um sitio na serra de Petrópolis e vivo de minha arte. Graças a Deus, não preciso do dinheiro de ninguém e Cr$ 1 milhão seria até muito pouco para sujar meu nome. Tenho quadros vendidos na Europa e nos Estados Unidos. Até Frank Sinatra comprou um quadro meu quando veio aqui.

Messias Neiva vende quadros pequenos a preço entre Cr$ 60 a Cr$ 100 mil e disse que terá “um prejuízo incalculável” ao manter fechado seu ateliê na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, localização que não considera longe de Caxias, onde mora. Ele disse que está evitando ir ao ateliê devido às ameaças:

– Graças a Deus, não tenho quadros mais para vender. Estão todos vendidos, por enquanto. Só tenho um conselho a dar aos próximos jurados da Riotur, não aceitem.”

(O Globo, 19/02/1983)

Bom, como vêem, no mínimo bastante suspeito o que ocorreu com este julgamento de 1983. Mas o que passou à história é que, por meios suspeitos ou lícitos, mas de forma injusta, a Beija Flor foi a campeã do carnaval.

E naquele ano a escola iniciaria um longo jejum de quinze anos sem títulos, somente quebrado em 1998 – em um empate com a Mangueira para lá de contestado…

Vamos à letra do samba:

“A Grande Constelação das Estrelas Negras”

Ô ô ô Yaôs quanto amor
Quanto amor
As pretas velhas Yaôs
Vêm cantando em seu louvor

A constelação
De estrelas negras que reluz
Clementina de Jesus
Eleva o seu cantar feliz

A Ganga-Zumba
Que lutou e foi raiz
Do negro que é arte, é cultura
É desenvoltura deste meu país

Êh ! Luana
O trono de França será seu baiana

Pinah êêê Pinah
A Cinderela negra
Que ao príncipe encantou
No carnaval com o seu esplendor

Grande Otelo homem show
Em talento dá olé
E o mundo inteiro gritou, Gol !  (É gol)
Gol do grande Rei Pelé  (Ô Yaôs) 

4 Replies to “Samba de Terça – “A Grande Constelação das Estrelas Negras””

  1. A Portela e o Império foi muito mais escola em 1983. Me lembro que a antipatia da escola já era grande na época. Será que poderíamos comparar a antipatia contra a Imperatriz no início do nosso século?

  2. O sexto lugar da Beija-Flor de 1982, única classificação fora das 5 primeiras de 1976 a 1991 (em 1992, a Beija foi sétimo e Joãosinho depois saiu da escola) me lembrou do ano anterior, 1981, quando a Beija foi vice com as polêmicas Muralhas da China… Isso me remeteu a uma resenha que fiz em meu site Cinema é Magia em que cito este carnaval… :)

    https://cinemagia.wordpress.com/2008/03/15/10000-ac/

    Um abraço e parabéns pelo post e pelo excelente site.

    Tommy
    https://cinemagia.wordpress.com/

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