A coluna “Samba de Terça” de hoje está um pouco diferente. Trago o depoimento do psicanalista e integrante do Conselho Deliberativo Aloysio Félix, mangueirense de quatro costados e que pode contar muito melhor que eu – até porque vivenciou os fatos e não era um garoto de dez anos como eu – a história do samba e do desfile de 1985 da verde e rosa. Vamos ao texto.
Roda Baiana! Levanta a poeira do chão?
Foi num bate-papo informal entre mim e o blogueiro Migão que surgiu a ideia de escrever a coluna de hoje. Agradeço a ele tal oportunidade. Eu, mangueirense emocional de carteirinha e ele, portelense racional, vivemos a alfinetar um ao outro, de forma que revivemos assim a eterna e “terna” disputa entre a verde-rosa e a azul-e-branco de Madureira, já que isto não acontece muito nos carnavais atuais… [Nota do Editor: de três anos pra cá está 2 a 1 para a Portela, mas isso ele não fala…]
A concepção original, que eu pensei, era a de mostrar os bastidores de uma escolha de samba-enredo que acabou se estendendo para o próprio desfile. O carnaval escolhido foi o de 1985. Da Estação Primeira de Mangueira, lógico.

A Estação Primeira veio de dois campeonatos inéditos e quase que simultâneos em 1984. Explico: o campeonato do desfile de segunda e o supercampeonato do sábado seguinte, onde bateu maior rival da época que ganhara no domingo, a Portela. Sim, são dois campeonatos no mesmo ano, já que a Portela contabiliza no seu rol de títulos o ano de 1984 como seu 21º título… Assim, a Mangueira ganhou o seu 13º e 14º títulos. Depois vieram os de 1986, 1987, 1998 e 2002, totalizando até o momento da postagem deste texto 18 títulos e ser a única escola, entre todas, a vencer em todos as décadas desde que o desfile existe (anos 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90, 2000). Em pouco tempo passaremos aquela rival, acredito…

Para além de brincar com o Migão, menciono o desfile de 1984 para falar de 1985 porque esta volta da Mangueira às campeãs, depois de 10 anos, também influenciou o desfile seguinte. Todos sabem e as pesquisas indicam que a Mangueira é a escola com maior torcida, justamente pela diferença em alguns itens que impõe: a garra, o samba no pé, as inconfundíveis e faladas cores e sua batida única na bateria. Mas o que ocorreu é que mangueirenses, adormecidos pela falta de títulos, acordaram com a retumbante vitória do “vai e vem” de 1984. E todos queriam desfilar na Mangueira…

A Manga estava com “tudo”: dinheiro, boa safra de samba, componentes entusiasmados, etc. Era a sétima e penúltima a desfilar no Domingo de Carnaval daquele ano, 17 de fevereiro. Ou seja, sabia que iria desfilar de dia. Perdeu Max Lopes que à época, era apenas um discípulo de Joãosinho Trinta para a Vila Isabel (que, aliás, antecedeu a Mangueira e fez um ótimo desfile, já retratado na série).

Reza a lenda reducionista que ele teria ficado magoado porque a Mangueira não creditou a ele e às suas fantasias e alegorias o motivo de ter ficado em primeiro lugar… A direção da escola escolheu o excelente enredo sobre Chiquinha Gonzaga, com o título oficial: “Abram alas que eu quero passar”.

Foram contratados então a pesquisadora que tinha concorrido num programa chamado ‘8 ou 800’ (acho que o título é este…) falando sobre Chiquinha Gonzaga – Edinha Diniz –  e para materializá-lo, Eloy Machado, grande campeão de fantasias de originalidade dos concursos da época. Tudo caminhava para dar muito certo, mas…

Antes de falar do desfile propriamente dito, preciso falar da disputa de samba… A final do samba contava com três bons sambas, onde dois se destacavam: o campeão de Hélio Turco, Jurandir e Darcy da Mangueira e o samba de Rody do Jacarezinho e Leci Brandão. Coloco a letra dos dois sambas para vocês apreciarem. A melodia do samba que perdeu, infelizmente, eu vou ficar devendo… A melodia do que ganhou todo mundo conhece e é fácil postar um vídeo para vocês relembrarem até o próprio desfile – acima.

Helio Turco, Jurandir e Darcy (samba oficial)

É carnaval
O samba faz vibrar a multidão
Lá vem Mangueira
Não posso conter a minha emoção
Vamos reviver o Rio antigo
Onde Chiquinha se fez imortal
Oh! Deusa da folia
Rainha do meu carnaval
Eu sou da lira
Não vou negar
“ô abram alas que eu quero passar”
Só não passa a saudade
A saudade que ficou no seu lugar
Liberdade…
Oh! Falsa realidade
Liberdade…
O sonho foi morar n’outra cidade
Desprezou a burguesia
E o requinte dos salões

Abraça a boêmia
E deixa na boca do povo
Mais de mil canções

Roda baiana
Levanta poeira do chão
Roda baiana
Nas cores do meu coração

Rody do Jacarezinho e Leci Brandão

Abram alas pra esta mulher
Mais uma dama que desfila na Mangueira
Vejam só que linda criatura
No olhar, uma ternura
E na mente, uma bandeira
Fez a feminina revolução
Na arte deste meu país
Com sua garra e sua força-mulher
Canto o meu samba mais feliz
(eu sou é raiz)

O tango, a valsa e a polca
Pra quê, burguesia, pra quê?
Chiquinha Gonzaga no piano
Mostrava jogo e cateretê

Maestrina
Pioneira dos Direitos Autorais
Tão “Divina”
“Atraente” nos momentos musicais…
Liberdade…
Seu grito pela abolição
Que batizou o carnaval
E até hoje move esta nação

Roda Baiana
Roda e ginga sem parar
“Corta” este chão de poesia
“Eu sou da lira” e não posso negar

Podemos logo observar, rapidamente, que o samba do Hélio é interpretativo, com uma melodia simples, mas envolvente, enquanto o da Leci prima por uma letra descritiva, mas que trazia, de fato, a importância dos atos revolucionários de Chiquinha à época, com uma riqueza de letra, anexando algumas obras da autora. E a melodia também é boa.

Mas o fato é que Hélio Turco, Jurandir e Darcy já eram bem conhecidos no dia a dia da escola, enquanto Rody vinha do Jacarezinho e a Leci não freqüentava tanto a quadra. E a Estação Primeira queira um samba popular…

No dia da final, uma quarta-feira de meados de outubro de 1984 (sim, até o meio dos anos 90, a Mangueira tradicionalmente escolhia seu samba nas quartas-feiras), o clima estava tenso. As torcidas estavam inflamadas e os dois sambas tinham o maior apoio da quadra. É claro que o samba do Hélio Turco foi mais cantado, não só pela simplicidade, mas pela imensa torcida cativa que este autor mantém até os dias de hoje… E eu também torci pelo samba do Hélio, embora reconhecesse os atributos do oponente…

Por volta das 5 da manhã, todos os sambas já haviam se apresentado. O resultado demorou mais de uma hora pra sair. Todos angustiados pro resultado pois, afinal, alguns teriam que trabalhar no dia seguinte e eu ir pra faculdade… Até que vem Djalma Preto ao microfone (presidente da escola à época) anunciar o resultado.

Após alguns minutos angustiantes de discurso de falar sobre a Estação Primeira e a importância da escolha de um bom samba ele anuncia o resultado. A quadra em silêncio e ele fala: – Houve um empate. Isto mesmo, diletos leitores, um empate… Como assim, Bial? A quadra veio abaixo, uma algazarra só… Uma reclamação total, o povo (e as três torcidas) gritando em coro: – é marmelada, é marmelada. Ele anuncia os dois sambas empatados e…

Diz que o desempate se daria no sábado seguinte e saiu do palco dos compositores… Além da dúvida que possa mesmo ter existido, o adiamento da final garantiria mais um dia de quadra lotada e muito mais lucro para uma Mangueira que já tinha dinheiro… Chegou o sábado seguinte, quadra mais lotada ainda e eu lá, espremido novamente, em pé, das 22 às 6h, para ver afinal qual dos dois sambas se sairia vitorioso. Acabou dando a “lógica” e o samba do Hélio ganhou… O cordão atrás da bateria e o morro fizeram a festa…

Mas o que estava atrás desta escolha? Talvez isto possa explicar o desastre do desfile de 1985, que levou a Mangueira até então ao inédito e vergonhoso 9º lugar (com 207 pontos), após a anulação do quesito cronometragem… Tal resultado não contesto pois eu estava no sambódromo vendo e realmente o desfile começa razoável e vai se tornando uma sucessão de erros…

Explico: A Mangueira tenta “beijaflorizar-se” visualmente e trazer uma apelação ao povão na parte musical. Antes da comissão de frente, mais de 500 pessoas trajando trajes beges simples com bandeiras da Mangueira na mão. A ideia inicial era de ter uma coreografia, mas virou um imenso bloco de sujo desordenado.

Depois disto uma comissão de frente com 14 integrantes masculinos, representando duas escalas musicais com Leci Brandão, única mulher, representando a própria Chiquinha… Uma boa concepção dentro do caos que viria. O imenso abre-alas espelhado e verde para aproveitar o sol, tinha muitas mulatas de biquíni rosa, nem tão em forma assim, mexendo plumas rosa. A ideia era a de se ver uma imensa rosa, mas não funcionou plasticamente… (foto abaixo)

Depois disto, uma imitação dos tons verde e rosa que Max criara, fantasias que não retratavam direito o cenário histórico de Chiquinha (e não entendo o motivo, já que a tal Edinha Diniz sabia muito sobre a maestrina). Além disto, alegorias, muitas alegorias e tripés somente para colocar destaques em cima. Sobrou dinheiro e faltou criação, realização e tempo.

Algumas alegorias quebraram, inclusive uma muito bonita, imensa, que trazia ao alto outra Chiquinha Gonzaga com o piano, quebrou na minha frente e quase aquele fake de Chiquinha cai de lá… E o samba? O samba passou reto, só animou inicialmente.

A bateria nem parou no Box… Sabe o porquê?  A Mangueira estava gigante (sem trocadilhos, por favor…). Parecia até a Portela do Migão que cansa de tanta gente… (desculpe a alfinetada, mas não resisti Migão… risos) A Praça da Apoteose ficou entupida de gente de verde e rosa e ali a Mangueira até conseguiu fazer uma boa festa (sim, àquela época não existiam cadeiras no setor 6 e 13 e o combinado era que cada escola fizesse uma festa lá). Pelo menos esta alegria a Estação Primeira conseguiu e me deu… Eu estava no setor 11 – arquibancadas – e presenciei o desastre do desfile e a verdadeira apoteose na Apoteose da Mangueira…

E assim a baiana não levantou a poeira do chão… Tudo isto começou com o supercampeonato de 84, passou por uma escolha equivocada do samba, que já apontava a direção do “oba-oba” e do “já ganhou”, atravessou uma concepção de alegorias monstruosas e se realizou com um número de mais de 8 mil desfilantes, com mangueirenses apaixonados ou não… Mas como a Mangueira é Jequitibá e aprende com os próprios erros, em 1986 e 1987 foi desfilar com a cara de Mangueira e sagrou-se bicampeã do carnaval carioca. Mas isto já é um outro post… [Nota do Editor: este resultado de 1987 é, no mínimo, polêmico…]

Abraço verde e rosa!
Aloysio Felix”

5 Replies to “Samba de Terça – "Ô Abre Alas, Que Eu Quero Passar"”

  1. Fala Migão!!!!!

    Ando meio sumido do Ouro de Tolo. Mas ligado nos post do amigo. Me fala aí: vamos acreditar no Zico ou não?
    PS: Como estão as meninas?

    Vovô XAruto

  2. A parceria do samba de Lecy alem do Rody tinha o Comprido e José Ananias sua surioridade em minha opinião era grande mas não que o do Helio fosse ruim mas uma questão de gosto.

  3. Vale lembrar ainda que em 1985 Jamelão não cantou o samba na avenida. Jurandir foi quem utilizou o microfone 1. O mestre estava em compromissos profissionais no exterior e seu voo de volta ao RJ atrasou. Jamelão pisou na passarela no exato momento em que a Mangueira entrava na dispersão.

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