Obs: para uma explicação do procedimento das prévias americanas e de alguns termos técnicos usados nesta coluna, leia a coluna explicativa.

Se na Super-terça da semana passada Sanders já perdera o favoritismo para Biden, após os péssimos resultados desta terça, Sanders também perdeu o discurso.

No estado de Michigan, principal prêmio da noite com 125 delegados, Biden não apenas ganhou, mas aplicou uma verdadeira surra: 53% a 36,5%, com direito a ganhar em absolutamente todos os condados do estado. Sanders não foi capaz de ganhar sequer o condado de Kent, seu principal reduto dentro do estado.

Michigan é um estado no qual o eleitorado branco e sem escolaridade, normalmente trabalhadores de fábrica que estão sem emprego após o fechamento de várias delas nos últimos anos, tem um enorme peso. Era um eleitorado democrata tradicional que migrou para Trump em 2016. Aliás, Michigan foi uma das 3 vitórias apertadas no meio-oeste decisivas para Trump.

Também foi lá que Sanders derrotou Clinton de forma surpreendente em 2016, dando força ao discurso político dele de ser o “porta-voz do pensamento do trabalhador da fábrica que está sendo massacrado pelo capitalismo”. A vitória de Biden, ainda mais da forma como ocorreu, mostrou que esse próprio trabalhador de fábrica gosta mais de Biden como seu porta-voz do que Sanders.

Porém, apesar da distância surpreendente, a derrota de Sanders em Michigan era esperada. Por isso, o pior resultado para ele nem foi esse, mas foi o do estado de Washington (estado do extremo oeste que faz fronteira com o Canadá, onde fica Seattle e bem distante da capital Washington D.C.).

Esse estado, com 89 delegados, é um estado historicamente progressista. Sua fama que se retrai até 1999, quando Seattle foi palco das primeiras manifestações anti-capitalistas de projeção mundial, e com um eleitorado jovem. Ou seja, um estado feito para candidatos com a plataforma política mais social de Sanders ganharem. Em 2016, Sanders trucidou Clinton por nada menos que 72% a 27%. Por todo esse contexto, Washington era tido por todos como o estado mais favorável para Sanders de todos os que ainda não haviam votado.

Não obstante, no momento em que escrevo a coluna, a apuração caminha para um empate técnico, com Sanders a frente por fração decimal: 32,8% x 32,7%. Tal qual a Califórnia, os números finais de Washington só serão conhecidos dentro de 7 a 10 dias, mas já temos em torno de 70% dos votos apurados e dificilmente o panorama mudará. Para quem contava com uma performance extremamente forte para contrapor Michigan e outros estados que sabidamente seriam ruins, a situação de Sanders é péssima, mesmo se mantiver a apertada vitória.

No terceiro maior estado do dia, Missouri, um estado com forte guinada conservadora recentemente, o panorama foi ainda melhor para Biden: mais uma lavada de 60% a 35%, com vitória de ponta a ponta no estado. Apesar do recente viés do estado, em 2016 Sanders fora capaz de fazer uma disputa voto a voto contra Clinton, ambos com 49%.

Como percebido acima, ontem os principais estados eram completamente diferentes entre si mas em todos eles a constatação foi a mesma: mesmo tendo 4 anos a mais de exposição na mídia, Sanders perdeu muito terreno em comparação com as primárias de 2016. O porquê é uma questão filosófica que vem gerando embates entre diferentes analistas políticos, mas já é certo afirmar que Biden é um candidato mais forte e com uma aliança política mais ampla na demografia americana em relação a de Hillary Clinton há 4 anos.

Como notícia ruim foi o que não faltou para Sanders nesta rodada de votações, em Mississippi, coração do “deep south”, com 98% dos votos apurados ele nesse momento está com 14,9% dos votos. Uma grande derrota já era esperada graças aos eleitores negros, fiéis a Biden por todo país, porém sem sequer fazer os 15% necessários para receber delegados. Em uma eleição estritamente proporcional, como são as prévias democratas, ficar completamente fora da distribuição de um estado é terrível.

Nos dois outros pequenos estados que votaram ontem, Biden ainda foi capaz de arrancar uma vitória em Idaho, estado vizinho a Washington no qual Sanders também ganhara em 2016, por 49% a 42%. A única e solitária vitória de Sanders foi em North Dakota, que com seus 14 delegados é o menor estado em delegados em todo o país. Uma vitória de pirro e o próprio Sanders reconheceu isso ontem quando, aproveitando o cancelamento dos comícios por causa do COVID-19, decidiu sequer fazer um pronunciamento para a televisão.

Obs: tanto Biden como Sanders já cancelaram seus comícios nas próximas duas semanas, acatando o pedido das autoridades de saúde. Já Trump na terça feira afirmou que todos os seus comícios estão confirmados.

Na matemática dos delegados, Biden já lidera Sanders por mais de 150 e tem condições de até dobrar esta vantagem na próxima terça como se verá abaixo.  A fatura já está liquidada e o fato de Biden chegar aos 1990 delegados necessários para garantir a indicação é uma mera questão de tempo. Aliás, aquela prévia que há apenas 10 dias parecia ser a mais esquizofrênica da história, acabou se resolvendo como um passe de mágica e terminou sendo a vitória mais rápida do século em qualquer prévia competitiva, seja democrata ou republicana.

Do ponto de vista do discurso, Sanders o perdeu em relação ao “chão de fábrica” como já escrito acima. Também ele está temporariamente impedido de fazer seus grandes comícios, que inflamam pessoas desde 2016 e se tornou uma marca registrada dele, pois todos eles foram cancelados até segunda ordem. O que mais lhe restará fazer na campanha?

Diferentemente de 2016, ele não está trocando vitórias com Clinton. Pelo contrário, está perdendo onde deveria ganhar, está sendo surrado onde deveria apenas perder e está ficando sem um mísero delegado onde já deveria ser surrado. Também diferentemente de 2016, é muito difícil vislumbrar a manutenção da candidatura como pavimentação de outra campanha para daqui a 4 anos, afinal Sanders fará 79 anos em setembro. O contexto político também está diferente, já que hoje temos um atual presidente pertencente ao partido opositor, assumidamente populista e ávido por explorar qualquer crítica feita a seu futuro adversário nas eleições de novembro. Com que base e com qual objetivo Sanders manterá uma campanha política que já se revelou infrutífera?

Dinheiro não lhe falta, pois a máquina de arrecadação de Sanders continua a todo vapor e ele terá recursos de sobra caso queira levar a disputa até junho. Então, não sendo dinheiro uma preocupação, a única preocupação de Sanders é o próprio cálculo político.

Ele já deu entrevista nesta quarta avisando que a campanha continuará e confirmou sua presença no debate da semana que vem. Mas, especialmente se as duras derrotas continuarem a vir como vieram nas duas últimas semanas, aposto em uma desistência oficial pouco antes ou logo após as prévias do nordeste (New York, Pennsylvania e região) que serão no dia 28 de abril.

Contagem de delegados

Biden – 885 delegados

Sanders – 732 delegados

Bloomberg – 75 delegados (desistiu)

Warren – 66 delegados (desistiu)

Buttigieg – 27 delegados (desistiu)

Klobuchar – 7 delegados (desistiu)

Número mágico: 1990 delegados

Fonte: The Green Papers

Próximas Prévias

14/mar – Ilhas Marianas do Norte (6 delegados)

17/mar – Arizona (67 delegados)

Florida (219 delegados)

Illinois (155 delegados)

Ohio (136 delegados)

24/mar – Geórgia (105 delegados)

Teremos na semana que 3 dos 5 últimos estados pesados que faltam: Florida, Illinois e Ohio. Para desespero de Sanders, Biden é favorito por mais de 10% em todos eles.

Apesar da Florida ter muitos latinos, que tem sido o melhor eleitorado de Sanders neste ano, são os mais conservadores dos Estados Unidos e muitos tem origem cubana. Logo, sentem arrepios na espinha ao ouvir a palavra “socialista”, com a qual Sanders se autointitula. O estado como um todo também tem guinado ligeiramente mais ao conservadorismo nos últimos 5 anos e espera-se uma surra confortável de Biden, possívelmente acima de 20% de diferença. Caso isso se confirme, a diferença de delegados que isso causará será enorme.

Ohio e Illinois são estados do meio-oeste com perfil populacional ligeiramente parecido com Michigan e Minnesota, duas vitorias de Biden. Mesmo que o último seja marcadamente democrata, Illinois sempre seguiu a linha moderada do partido desde os tempos de Bill Clinton. Já Ohio sempre foi o estado mais disputado da história entre democratas e republicanos, mas dentre os democratas também sempre teve um perfil mais moderado. Também são esperadas vitórias de Biden acima de 10% de diferença em ambos.

Sanders talvez tenha esperanças no Arizona graças a entrada maciça de votos latinos em sua coalizão neste ano. Ele ganhou os estados fronteiriços da California e de Nevada com perfis populacionais parecidos, além de ter ido bem no Texas. É um estado com histórico fortemente conservador, mas que vem aos poucos se tornando ligeiramente mais progressista e dando algumas vitórias inesperadas aos democratas. Por todo exposto, é difícil dizer exatamente o que esperar do estado.

Mas mesmo que Sanders vença no Arizona, caso se confirme o tamanho do estrago nos três principais estados da noite, tal vitória terá sido absolutamente inútil e, só no dia, o déficit de delegados para Biden pode ficar em 3 dígitos.