Bombou nas redes sociais. Há pouco, comemoramos os cinco anos do dia em que Caetano Veloso estacionou o carro no Leblon. Ou, para tentar achar alguma pertinência na notícia por detrás da notícia, cinco anos que marcam o fundo do poço em que o jornalismo brasileiro foi parar.

Para contextualizar ao leitor desatento: num dia comum de março de 2011, Caetano Veloso foi clicado por um paparazzo segundos depois de estacionar no Leblon. A foto, com a legenda “Caetano estaciona no Leblon” foi publicada na internet a pretexto de ser notícia. Não havia maiores informações sobre a razão para Caetano estar no local, nem relação com algum trabalho do compositor baiano. Aparentemente, o editor achou interessante o fato de uma celebridade estacionar um automóvel. E a coisa toda só tomou as proporções que tomou exatamente pelo ridículo de uma não-notícia ter sido publicada como se notícia fora. A ponto de gerar inúmeros memes e a comemoração anual da data desde então.

(Parêntese: tenho, pelo menos, dois amigos que afirmam que só quem nunca tentou estacionar no Leblon pode achar que isso não é notícia. De certa forma, é verdade: eu prefiro deixar o carro na Lagoa e dar uma caminhada.)

dilmalulaHá algumas semanas, passamos a saber que Dilma telefonou para Lula. É o equivalente político do “Caetano estaciona no Leblon”.

Sim, a presidenta Dilma fez uma ligação telefônica para um ex-presidente, companheiro de partido, já convidado e pré-confirmado como Ministro de Estado. Estranho seria se eles não se falassem. O teor da conversa é trivial. Fala-se sobre enviar o documento de nomeação, para que Lula o assine. Eu não conheço profundamente os trâmites legais de uma nomeação já anunciada, mas minha opinião de leigo é que este ritual se assemelhe em cada um dos casos dos 759 ministros que já passaram pelos 213 ministérios do governo Dilma.

Sabemos, no mesmo momento, que o ex-presidente Lula, investigado pela Polícia Federal a mando do juiz federal de primeira instância Sérgio Moro, comporta-se como alguém cuja vida está sendo revirada, preocupa-se com isso, troca observações sobre o tema com amigos e correligionários, indigna-se com a situação e fala muito palavrão em conversas privadas. Ou seja, nenhuma novidade, nem nada fora do esperado do comportamento de qualquer um que estivesse na mesma situação, fosse culpado ou inocente. Aliás, a indignação manifesta poderia vir a sugerir inocência quanto às acusações, mas também indignação pode ser simulada.

É verdade que a atual situação política do país coloca Lula em uma evidência natural maior do que Caetano, e que sua intimidade tem sido alvo de maior curiosidade, coisa que vai além da bisbilhotice de paparazzi togados e aves de rapina.

Entretanto, no conceito, trata-se do mesmo tipo de mau jornalismo: tentar fazer notícia (a até mesmo escândalo) a partir de fatos comezinhos. Tem tanto sentido saber-se que Caetano estacionou no Leblon quanto que Lula fala palavrão em privado. Em nome de quem estaria o tal carro que Caetano dirigia, ou se o celular utilizado por Lula era registrado em seu nome. Que tipo de produto Caetano viria a comprar (ou não), que tipo de imóvel teria Lula interesse em adquirir, desde que, em ambos os casos, haja fundos aparentes e justificáveis para as compras (o que é o caso). Tanto para Caetano quanto para Lula, a evasão da informação privada se dá a partir de uma invasão da vida pessoal por motivação sórdida e curiosidade mórbida. E param por aqui as similaridades.

Porque a forma pela qual foi obtida a “informação” sobre Caetano, se não é ética, não é expressamente ilegal. Já a obtenção e divulgação de informações a partir de interceptações telefônicas deve obedecer estritamente às regras legais.

A fonte também faz muita diferença. Caetano pode ter sido fotografado por um paparazzi profissional, ou mesmo por um transeunte comum, não importa. Lula foi grampeado pela Polícia Federal, a mando de um juiz. O conteúdo foi divulgado pelo juiz, que disponibilizou-o para a Rede Globo e para o STF ao mesmo tempo.

moroJá era certeza para quem acompanha a Lava Jato de que sempre houve uma parceria ilegal entre policiais, procuradores e imprensa corporativa, no sentido de divulgar seletivamente informações – sigilosas ou não – sobre o inquérito, sempre em primeira mão e sob um calendário muito bem calculado, de forma a comprometer alguns dos acusados. Seja para pressionar por novas delações, seja para provocar fatos políticos.

A certeza foi acrescida da constatação de que o próprio juiz responsável pela operação é quem comanda esta indústria de vazamentos e esta parceria judicial-midiática. Se estivéssemos sob os rigores de um País que se levasse a sério, seria o suficiente para a reestruturação da Polícia, do Ministério Público e a destituição do juiz de suas funções, com posterior prisão e processo por fraude e conluio. Moro conseguiu se superar em se colocar numa posição insustentável e incompatível com a ética e caráter imprescindíveis a um juiz.

E vamos, há algumas semanas, saltando de “caetanos-estacionam-no-Leblon” em “lulas-falam-palavrão”, numa medição de quanto a sociedade admite os absurdos como coisa vulgar, comum, comezinha, aumentando-se o volume a cada tentativa, chegando-se à conclusão de que a sociedade brasileira, idiotizada pela mídia, hoje é capaz de aceitar qualquer coisa sem que haja capacidade de reação ou ao menos um mínimo de reflexão. Não, ao contrário, o discurso hegemônico é capaz de tudo e passam por loucos aqueles que se opõem a ele.

E, desde então, vale qualquer coisa. Cada um que tente o seu absurdo. A Presidenta foi grampeada. Aécio foi expulso de manifestações anti-PT enquanto Lula foi consagrado pelas ruas na mesma semana, mas a versão midiática diz o contrário e ficamos assim. O Supremo não se importa mais com um mínimo de coerência. As instituições, todas, absolutamente todas, naufragam. E, portanto, não há interlocução possível, nem caminho confiável pela via democrática.

Então, com o termômetro do non-sense marcando o momento certo, um Congresso totalmente comprometido por investigações resolve que é hora de derrubar Dilma. Conduzida por Cunha, a Câmara vota a sequência da farsa, encaminhando ao Senado o impeachment. Não há um crime a ser apontado, ficamos por isso mesmo. As votações no Congresso mostram isso, porque a cada voto as alegações são as mais diversas possíveis, nunca coincidindo com a acusação formal. CAMARA/RENEGOCIACAO DA DIVIDA DOS ESTADOS E MUNICIPIOS

Se havia suspeita se era ou não golpe, toda a imprensa mundial, numa rara unanimidade, aponta o que se passa no Brasil como tal. E é um golpe açodado porque, mesmo a população acostumada com a anestesia permanente, algumas vozes de protesto começam a ser ouvidas e a destoar do discurso único.

Chegamos à semana decisiva sem que reste alguma esperança de que Dilma reverta a tendência na votação do Senado, ou seja, o seguimento do processo, com afastamento da Presidenta, são favas contadas.

Dilma é acusada de estacionar no Leblon, não importa. Lula pode ser preso a qualquer momento. A acusação é mais abstrata, ele deveria saber que carros são estacionados no Leblon, não importa. Moro sai de cena, Janot assume o protagonismo. Teori atropela e é atropelado. Sobra para Cunha que, apesar de ter uma lista interminável de crimes, acaba afastado por estacionar no Leblon. É sintomático: mesmo sobre Cunha, sobre quem não restam dúvidas de culpa, não se estabelece um crime palpável. Tudo é abstrato, tudo são vagas no Leblon.

Era de se esperar que o governo Temer estivesse pronto, capaz de retomar a normalidade do país. Mas não. O ministério de notáveis é notado por ter notórios bandidos. Muitos deles citados nominalmente na Lava Jato. Um homem ponderado não serve para a Justiça, será chamado o secretário de Segurança de São Paulo, acusado de ligações pessoais com o PCC, sob cuja administração a PM paulista passou a ser ainda mais violenta e blindada de punição.

Michel TemerTemer não tem sustentação interna. Muito menos externa. Sofre ameaças de retaliação de todas as partes. É igualmente acusado na Lava Jato. Tem o fantasma de Cunha agora a seu encalço. Na Câmara, pode ser aberto um processo de impeachment contra ele. A Justiça Eleitoral paulista desencava um antigo processo e ele fica inelegível por oito anos. Vale para já? Poderá nomear ministros? Diz a lógica que não, porque é apenas um substituto eventual, não é ainda Presidente de fato, nem será por 180 dias. Mas poder ou não poder depende das vontades dos guardas de trânsito do Leblon.

Tudo se desfaz no ar, tudo é abstração. As instituições são diluídas, não dependem mais de si, de suas estruturas, mas da vontade de um conjunto cada vez menos afinado de conspiradores.

É o que há: uma conspiração mal orquestrada.

E o Governo Federal, pelo menos pelos sinais que emite, trata tudo dentro da normalidade das instituições. A resistência é retórica. Alega-se golpe para consumo externo. Ora, se é golpe, reaja-se como tal. Não se reage a golpe com diálogo. Não se reage com petições aos golpistas. Com alegações em instâncias e tribunais igualmente comprometidos no golpismo.

Golpe é virada de mesa. Como o Governo Dilma quer negociar sobre uma mesa virada?

Enquanto isso, Temer envolve os militares em sua trama. Percebe que um golpe civil acabaria emparedado num beco escuro, tratou de arrumar trator e lanterna. Tratou de envolver a única instituição que se mantinha neutra. Michel está fazendo o que lhe cabe. Precisa conversar, negociar. Tudo o que Dilma teve anos para fazer e não fez. Para Michel há tempo, para Dilma não há.

Sem conversa, Temer acaba no mesmo ponto que Dilma. Se isso ocorrer, não há saída negociada possível. Com um ou outro, o tempo democrático se esgotou. As instituições, como são (ou deveriam ser) se contaminaram e se inviabilizaram. Alguns cínicos já chamam a isso de “pausa democrática”.
Há uma vantagem nisso tudo: se o golpe é inevitável, vamos para um golpe aberto. E como provocar um golpe aberto? Partindo para o embate.

Um governo Temer recolocará o Brasil a reboque do modelo hegemônico norte-americano, cortará verbas e programas militares, reduzirá a autodeterminação e soberania. É impressionante que, mesmo assim, Temer tenha um diálogo mais fácil com alguns setores militares e Dilma não confie nos canais que possa ter. Dilma e o PT que, em mais de uma década, foi quem liderou o processo de não-alinhamento automático, de investimentos e reaparelhamento militares.

Ocorre que nenhuma corporação é totalmente homogênea. De qualquer forma, haveria rachas em todas as instituições, inclusive nas Forças Armadas. Até mesmo em 64 não havia consenso. O consenso militar só veio com o recuo covarde de Jango. Porque, até então, havia tropas leais dispostas a lutar. E, por enquanto, por poucos dias, Dilma ainda está no comendo formal da tropa.

Portanto, é hora de agir, enquanto cabe à Dilma o comando. Há um espírito de corpo que, se não impede, retrai os militares a lutar entre si. Para evitar o conflito aberto, a tendência das Forças Armadas é aderir ao primeiro grupo que sai em defesa de alguma das partes. Portanto, é hora de usar a voz de comando.

Denuncie-se o complô, dê o sinal verde para que os movimentos sociais ocupem ruas e palácios. Com o Senado tomado por civis, evite-se a votação em plenário. Tome-se também o Supremo e engesse-se a reação togada.

Sob os olhares de toda a imprensa mundial, qual comandante militar ousará desobedecer a ordem da (ainda) comandante e disparar contra a população? Use-se, portanto, as tropas para proteger estes mesmos prédios, depois de tomados. Ou seja, para reforçar o impasse.

O máximo que haveria seria uma rebelião militar. E, então, o golpe ganharia cara e forma indiscutível de golpe. E isso, do ponto de vista externo, inviabilizaria o golpe.

Por outro lado, se a disciplina da tropa for mantida, esta se alinha em defesa da população que teria tomado os espaços que já são do povo. E, então, o governo teria faca e queijo nas mãos. Denunciaria os golpistas como conspiradores e, num estado de exceção declarado pela necessidade imediata, se daria voz de prisão aos conspiradores. Numa situação assim, não seriam poucos os que quisessem negociar delações e uma roteirização mínima do que todos nós intuímos que anda acontecendo nos bastidores de Brasília.

aecionevesNão seria necessário criar nada, este é um roteiro previsível que só precisa do depoimento dos envolvidos. Um roteiro que apontará para Temer, Cunha, Aécio, FHC, Gilmar Mendes e mais dois ou três colegas, Renan, Moro, Janot, figuras centrais da imprensa, a embaixadora norte-americana, e alguns menos estrelados mas igualmente envolvidos de forma direta. Manda o bom senso focar num grupo restrito a umas 30 pessoas, para também não parecer uma caça às bruxas desenfreada. Mas, a este grupo, a punição deve ser firme, imediata, inclemente. Que seja usado o código militar, porque conspiração contra a democracia é crime de alta traição. Aplique-se o máximo rigor.FHC_Serra

Que fique claramente sinalizado que muitos foram poupados, mas que não se admite no Brasil um ataque à democracia. Que, punidos os responsáveis centrais, se restabelecerá de pronto a normalidade no País. Com instituições revigoradas, liberdade, oposição, leis e direitos todos preservados. Que tudo dure um mês, no máximo. Esta é a “pausa democrática” possível. E é a única forma de chegarmos a ela.

De outro modo, estaremos mergulhados num longo período de exceção liderado por golpistas. A escolha cabe ao Governo Dilma, que deve deixar de ser covarde e reagir à altura a um golpe de Estado: falando menos e agindo mais.

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One Reply to “Caetano estaciona no Leblon”

  1. PS – Obviamente, a coluna foi escrita ANTES de mais uma reviravolta nesta novela: a intervenção de Maranhão, novo Presidente da Câmara, anulando o jogo. Ainda assim, continua valendo cada palavra. Se é golpe, se é complô, se é conluio, se é conspiração, este processo não terá fim até que os golpistas sejam exemplarmente punidos como tal. Isso só pode ocorrer com clamor público contra a conspiração.

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