Na década de 1980, o cartunista Angeli criou um personagem inesquecível para quem curtia quadrinhos naquela geração: Bob Cuspe. Inspirado na cultura punk e filho do humor caótico, iconoclasta, ácido e irreverente do autor, Bob era um jovem rebelde com causas abstratas que usava o cuspe como arma e mensagem política.

Dá para imaginar o que aconteceu com Bob ao longo desses mais de 30 anos. Como tantos jovens do mundo influenciados pelos ecos do movimento punk inglês a partir dos anos 1970, é provável que tenha se adaptado às regras da sobrevivência em sociedade e, com a idade, encaretado pouco a pouco até guardar de vez no armário o casaco de couro e os apetrechos de chapas pontudas.

Talvez Bob tenha se sentado no sofá e assistido boquiaberto os recentes episódios de cuspe ao alvo na cena política brasileira contemporânea.

O cuspe de Bob era aleatório, simbólico, anárquico. Enfim, rebelde e, como tal, contrário ao status quo. De certa forma, este status mudou de lado, pelo menos no sentido mais direto de detenção do poder. Agora, o cuspe vem sendo usado como arma de defesa da honra, de reação à anarquia concebida e premeditada. Tempos confusos em que o cuspe é defesa e a anarquia é careta.

Primeiro foi Jean Wyllis, naquela noite horrenda em que os deputados federais fizeram o Brasil ser vergonha internacional. Vergonha, inclusive (e principalmente) para quem, como eles, defende o golpe. Não faltou quem se desiludisse com qualquer saída política depois daquela noite.

Coube a um homem íntegro e decente, indicado costumeiramente como um dos poucos deputados federais brasileiros com um trabalho louvável em favor de boas causas, reagir de uma forma inapropriada às provocações e agressões da família Bolsonaro. Sofreu calado todo tipo de pressão e ofensas durante meses. A coisa descia ao nível do peteleco na orelha, do fiu-fiu, da ofensa gratuita e cotidiana sussurrada nos ouvidos. Naquele momento de ânimos especialmente acirrados, cuspiu e foi cuspido de volta. O episódio ilustra a noite e seria definitivo quanto ao uso do cuspe como arma.

Mas a realidade brasileira tem se superado a cada dia. Atacado por um casal de fascistas num restaurante paulista, o ator José de Abreu também usou o cuspe como forma de defesa e expressão de sua indignação. A cena, publicada em redes sociais, é absolutamente bizarra. Não apenas por sua conclusão, mas principalmente pela agressão inicial praticada pelo casal.

José de Abreu, um ator conhecido por uma carreira de sucesso e por suas posições e ativismo político desde os anos 1970 (portanto, antes de existir o PT) entrou em um restaurante de culinária japonesa em São Paulo acompanhado de sua esposa. Sentaram-se e, em seguida, começaram a ouvir ofensas que partiam de um casal aparentemente jovem, sentado à mesa ao lado.

José de Abreu poderia ter ficado calado, como ficam quietos tantos que são abordados publicamente por este tipo de fascista. Mas não é do estilo dele se calar. Levantou-se e começou a discutir com o casal. Aí, o nível de ódio, agressividade e ignorância absoluta dos agressores se revelou completamente.

O ator foi chamado de carioca, quando na verdade é paulista, de Santa Rita do Passa Quatro. É comum entre alguns paulistanos, quando querem ofender e/ou discriminar alguém de fora, usar o suposto fato do oponente não ser paulista como forma de “argumento”. Já fui vítima disso também, é bem comum e dá a medida do nível de estupidez reinante.

teatroFoi chamado de vagabundo, sempre esta característica sendo correlacionada ao fato de defender o PT. Foi acusado de viver “de Lei Rouanet”. Já demonstrando bastante irritação e falando alto, Abreu ainda argumentou que não é filiado ao PT, chamou o interlocutor de coxinha e disse que jamais recebeu um centavo da Lei de Incentivo à Cultura.

Cabe aqui um comentário paralelo: que tipo de fetiche maluco acomete a direita brasileira em relação à Lei Rouanet? A lei, promulgada pelo governo Collor, pode até ser inadequada e eventualmente mal utilizada, mas dar a ela essa coloração de instrumento de manipulação política e financiamento de supostos aliados é um absurdo que não se subsidia, de forma nenhuma, nos dados da realidade objetiva. Esta leitura enviesada do que é o incentivo à cultura é um sintoma sério do quanto a direita se alimenta da ignorância.

Voltando ao restaurante japonês: o confronto já tinha tudo para acabar muito mal quando a acompanhante do jovem fascista que se dizia advogado (“com Mestrado”, ele fazia questão de ressaltar), resolveu chamar a esposa do Zé de vagabunda. O que, pela tradição machista do dicionário brasileiro de xingamentos, tem uma leitura diferente da mesma palavra quando dirigida ao ator.

José de Abreu cruzou a ponte que o limitava com a selvageria e devolveu a agressão em forma de cusparada. Buscou mais munição no fundo de si e repetiu a reação contra o suposto advogado.

Como disse antes, no Brasil contemporâneo, o limite sempre é superado pelo inesperado. O “jornalista” Ricardo Noblat, de O Globo, anunciou no Twitter que o ator havia cancelado sua conta na rede social. Foi desmentido em seguida pelo próprio ator, pela conta alegadamente desativada. Este tipo de evidência de que a imprensa brasileira não se baseia mais em fatos, nem é capaz de conferir a informação minimamente, é cada dia mais recorrente.

faustao-2013No domingo, José de Abreu foi convidado no programa do Faustão. Explicaria publicamente o ocorrido. Explicou. E aproveitou para extrapolar a explicação e fazer uma defesa pública de Dilma, além de acusar duramente a oposição a ela. Só livrou a cara da própria Globo. Foi uma boa oportunidade de quebrar o discurso hegemônico da Globo dentro da própria emissora. Pena que Faustão não dá mais audiência: estava em 16 pontos de IBOPE, mesmo explorando o assunto do momento.

Pode piorar? Pode, sim senhor.

O casal cuspido não esperava a repercussão que o caso tomou. Em vez de vir a público se defender, ou até mesmo acusar Abreu, escondeu-se. O roqueiro-de-direita Roger Moreira identificou publicamente a moça. Seria Anna Claudia del Mar, ex-modelo-e-atriz conhecida em certo submundo da noite paulistana. Dado curioso quando se destaca que foi dela que partiu o xingamento de vagabunda direcionado à esposa de José de Abreu.

O jovem advogado-com-Mestrado não teve sua identidade publicada. Mas a fofoca difundida nas redes sociais é de que estaria traindo a esposa com a ex-modelo-e-atriz em questão. Diz o ditado que toda vez que a situação pode piorar, efetivamente piora. Mas, no Brasil, a cereja do bolo passou a ser um bolo de cerejas.

Já que a vulgaridade tomou conta do universo social, por que não uma bela cuspida não-literal? A posse de (mais) um novo Ministro do Turismo, um petista até então desconhecido do baixo claro, expos ao mundo sua senhora, uma jovem baiana que foi recentemente eleita Miss Bumbum nos EUA. Partiu dela divulgar umas fotos, segunda a própria feitas para o tal concurso, em que ela aparece exiguamente trajada por um biquíni que se perde nas reentrâncias de seu corpo e uma faixa presidencial em frente ao Congresso Nacional. Recuso-me a reproduzir fotos e peço ao editor que não as use como ilustração aqui.

O corpo é dela, ela usa para o que quiser e eu não sou um falso moralista. Mas há o espaço para o privado e o espaço para o público. Neste último, em especial, o uso do espaço político legítimo e democrático, que deveria conter um pouco de recato e respeito à liturgia dos cargos que, afinal, representam a população.

A autointitulada primeira dama do Ministério (segundo ela, a mais bela do Governo) foi um erro. Um erro grave. Um desastre completo. Eu devo ter sido uma das raras pessoas que ainda deu-se ao trabalho de tentar entender o que a moça – Milena Teixeira é o seu nome – queria dizer. O conteúdo nem era ruim. Era uma boa defesa, em termos bem populares, do governo, uma boa denúncia do ambiente corrupto de Brasília, da incapacidade da política. Ele nem é burra, como suporia nosso cotidiano preconceito. Mas a forma escolhida para ganhar manchetes e chamar a atenção foi inaceitável. Seu marido foi apelidado de Ministro do Turismo Sexual. Deveria ter perdido o cargo em que havia sido recém-empossado. Faltou decoro. Foi um cuspe mal dado.

Foi neste sentido o post de um querido amigo jornalista no Facebook. Eu e vários concordamos. Um amigo-do-amigo, jornalista de bastidores que ficou conhecido por tentar revelar a opinião dos patrões em suas redes sociais pessoais, um bastião do puxa-saquismo jornalístico nacional, um exemplo acabado de aprendiz de feiticeiro manipulador de notícias, foi um pouco além e aproveitou para decretar o fim próximo do governo Dilma.

banca-de-jornalEu rebati, em resposta, que leva menos tempo para a Globo ser novamente enxovalhada pelos órgãos sérios da imprensa mundial como empresa golpista e sem confiabilidade. Afinal, não passam mais dois dias sem que alguém na imprensa mundial chame a Globo de tudo que é ruim.

Ele deu uma resposta infantil. Disse que não me conhecia. É verdade, e é um alívio não ter nenhum relacionamento com um tipinho assim. Mas revela, na arrogância, que muita gente desta turma da mídia tradicional não compreendeu ainda o que significa a internet e as redes de interação sociais. No trabalho deles, há claramente um emissor e um receptor. E eles têm o poder, eles são os emissores, o discurso é deles, a construção da realidade está nas mãos deles. Na internet, você não está falando com A ou B, você está falando num espaço aberto e – melhor de tudo – pode receber retornos de onde não espera.

Eu não preciso conhecer o amigo-do-amigo para interagir. Se um dos dois publica no post do amigo, o outro pode ler, e interagir se quiser. A construção do discurso é compartilhada. Deve ser difícil entender isso para quem vive trancado numa ilha de edição repercutindo uma fala pré-fabricada pelo patrão. E, não contente, tenta ser mais realista que o rei expondo isso em seus posts pessoais.

Gente assim é “incuspível”. Porque não tem cara própria.

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2 Replies to “Bob Cuspe morre de vergonha”

  1. O que mais me impressiona é que mídia e redes sociais só falam das cusparadas. Um deputado federal exaltar ditadura e tortura, e um casal ofender gratuitamente uma pessoa que estava apenas jantando não são fatos dignos de nota nesta nossa sociedade cada vez mais fascista. Sinal dos tempos…

  2. Obrigado pelo comentário, Luis. O amigo pode perceber que eu relativizo a suposta gravidade das cusparadas com suas motivações, a meu ver, mais graves.

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