Tenho 50. Em 1984, fomos para as ruas. Eu tinha 18 anos. Nossa geração foi às ruas a favor da liberdade, a favor da democracia, para gritar Diretas Já.

Havia uma ditadura moribunda, nem por isso fomos com ódio para as ruas. Havia muito o que ser derrubado. Havia fome, havia miséria, havia desemprego, havia violência, havia corrupção, havia crise, havia péssima educação, havia inflação, havia favela, havia saúde precária, havia transporte lotado, havia alagamentos nas chuvas, havia seca (só no sertão, em São Paulo não), havia tudo de pior naquele Brasil.

Morria gente por não ter o que colocar na boca. Morria gente por ter coisa demais saindo pela boca. Hoje não se morre mais, nem de fome, nem de liberdade.

betinho fomeOs pessimistas dirão que lidamos, hoje, com os mesmos problemas. Mas os realistas lembrarão que avançamos e melhoramos demais daquele tempo para cá. Nossos números socioeconômicos são incomparavelmente melhores hoje, apesar de estarem a quilômetros do que queremos. Estavam, antes, a anos-luz.

O Brasil que emergia de duas décadas de ditadura era bem pior que o que surge depois de três décadas de democracia. Com o agravante de ser um País que não podia debater os seus problemas. Se melhoramos aos poucos, foi graças aos nossos erros e acertos, também à capacidade de discutir civilizadamente o que queremos, de formar consenso em sociedade.

Conversamos e debatemos com todo mundo, até com quem havia aprisionado o País por mais de 20 anos, até com nossos torturadores. Porque, quando fomos às ruas, fomos movidos pelo futuro, pelo amor ao Brasil e à causa de liberdade. Não fomos pregar o ódio ou a intolerância.

A eleição (ainda indireta) do avô do Aécio marcou o final da ditadura. Sua morte fez com que seu vice, Sarney, a ex-líder do partido da ditadura (a Arena) fosse Presidente.

05_CHA_pais_sarneyOlha que jabuticaba: o primeiro governo democrático foi conduzido pelo líder do partido oficial da ditadura; e o pior é que Sarney pode ter muitos defeitos, mas fez realmente um governo democrático. Nada mal para a História que já havia visto o filho do Rei de Portugal ser Imperador num Brasil independente. Jabuticabas: só no Brasil.

Tivemos bons e maus governantes e o conceito de bom ou mal varia de acordo com o modelo de Brasil de cada um. De exclusão ou inclusão. Em todos os governos houve convivência democrática, sob o signo daquelas ruas que fundaram um novo regime inspiradas na construção de um futuro comum. Não na destruição, no ódio, na vingança.

Com suas eventuais qualidades e inúmeros defeitos, o sistema político brasileiro erguido sobre os despojos de uma ditadura sanguinária é um sistema em que reinou, por três décadas, a tolerância. Mesmo nos piores momentos.

Se jornais e emissoras golpistas ainda estão no ar, é graças à tolerância. Se pessoas saem às ruas e pregam “a volta da ditadura”, é graças à tolerância. Se há uma Justiça livre e independente para cometer excessos contra o próprio governo, é graças à tolerância. Se o próprio líder da oposição é delatado e envolvido no escândalo de uma investigação que, por mais seletiva, não consegue desviar de seu nome indefectível; se esta investigação é focada no governo e ainda assim a oposição está emaranhada até o pescoço, é porque a tolerância no Brasil é tanta que o que se delata agora é um arranjo financeiro para que vencidos e vencedores dividissem recursos do Estado. É o que se vaza, pelo menos.

E a tolerância foi longe até demais. Não é que deva ser sempre admitida, mas há que se notar que ela é o que nivelava todos nas muitas culpas e alguns méritos.

aecioneves2Até que a derrota sobe à cabeça de Aécio. Até que um juiz talvez instruído no exterior resolve pousar de herói implodindo toda a economia e interesses nacionais. Até que a Justiça também venha cobrar sua parte nesse butim. Até que as classes dirigentes se vejam limitadas em suas exclusividades. Até que a classe média se importe em pagar décimo-terceiro à babá.

E isso tudo explode num pântano de ódio, revanchismo, desejo de trevas, impossibilidade de entendimento, cafajestice, breguice, intolerância.

O tempo do entendimento acabou, o tempo da política acabou. Antes, disseram: o gigante acordou. Agora, digo eu: acordaram o monstro. Em 1984, fomos às ruas a favor de alguma coisa, mesmo havendo tanta coisa para ser contra. Agora, zumbis voltam às ruas contra a democracia, contra as urnas, contra o Estado de Direito.

Nenhum futuro virá daí. Nenhum destino comum. Nenhuma democracia. Fundamos, há 30 anos, uma nação tão tolerante que acabou sendo cúmplice do intolerável. E eu não falo deste ou daquele partido, ou político, ou situação econômica, ou conluio (apesar de eu também achar intolerável), ou nível de corrupção (idem).

Estou falando do intolerável de uma emissora que é concessão pública aderir escancaradamente a um golpe. De juízes e promotores partidarizados. De gente atentando contra a democracia com o apoio da polícia estadual. De faixas de apoio a intervenção estrangeira. De liberação de catracas de um serviço público para uma manifestação convocada por um partido (de quem liberou). De sindicatos invadidos, De instituições pichadas e bombardeadas. De senhas de computadores invadidas por autoridades sem respaldo legal. De condução ilegal de depoentes voluntários. De constrangimento ilegal por parte de agentes (supostamente) da lei. De prisões arbitrárias. Da quebra de garantias públicas e individuais. Da agressão pura e simples, sem que o agredido tenha a quem recorrer. De um Estado de Sítio ilegítimo decretado tacitamente por governadores de oposição.

O governo federal tolerou tudo isso contra si, provavelmente conduzido por um republicanismo ingênuo e estúpido e, ao final, democraticida.

Esquece o governo que, ao tolerar contra si, tolera contra toda a população, tolera contra os direitos de todos, tolera contra a democracia pela qual lutamos, tolera contra os defensores esta democracia, tolera contra todos que agora se tornaram alvos indefesos, nas ruas, da sanha dos golpistas que agem sem freios e sem autoridade que lhes imponha algum limite.

dilmareeleitaNão é um direito da Presidenta Dilma abrir mão de suas prerrogativas constitucionais e expor a democracia e os cidadãos, ainda que movida por princípios libertários e republicanos. Não é direito de Dilma deixar o Estado expor o ex Presidente Lula ao que ele foi exposto. Ou expor cada um de nós, apoiadores ou não de seu governo, ao autoritarismo que se instala a passos largos em seu vácuo de poder.

Evitar indefinidamente um confronto inevitável é torna-lo mais sangrento num futuro cada vez mais próximo. A insegurança em atuar fortemente em defesa da democracia e dos democratas – ainda que por motivação democrática – responsabiliza o governo pela morte da democracia e dos democratas, como se anuncia para breve.

Eu não me sinto pessoalmente seguro, amparado pelo Governo em minhas liberdades e direitos mínimos, para lutar sozinho pela legalidade. Não, se o próprio governo não usa suas armas para tal.

Fico imaginando como se sentem os sindicalistas que, na noite de sábado, foram cercados e acuados em sua própria sede por tropas da PM paulista armadas de metralhadoras para “averiguar” a “denúncia” de que lá havia um ato “a favor de Lula”. Um “ato a favor do Lula”, agora, passou a ser crime em São Paulo. A quem recorreram? Quem o governo federal enviou em sua defesa? Li pelos jornais que Dilma “cobrou explicações” do governador golpista. “Cobrou explicações”? Se aqueles sindicalistas tivessem sido assassinados, haveria “explicações”?

Ora, a responsabilidade sobre as vidas e a segurança daquela gente era do governo e do regime democrático que eles defendiam. Mas, em São Paulo, defender a democracia é crime. E Dilma “cobra explicações”.

Não há mais tempo para conversa e explicações. Ou Dilma faz História, ou será engolida por ela.

3 Replies to “Tenho 50”

    1. Anderson, vamos deixar de lado as diferenças e nos alinharmos naquilo que, provavelmente, concordemos.
      Acho que concordamos que o atual governo é meio banana, não?
      Talvez a concordância pare no exemplo que eu vou te dar: se o governo fosse forte, zelasse pela democracia, alguém como você, que escreve um comentário pedindo uma ditadura, estaria preso.
      Falta isso, realmente: prender incendiários como você. E seria plenamente legal, porque, na democracia, é crime fazer o que você fez.
      Espero que você nunca tenha que enfrentar as durezas do regime que defende. Por outro lado, espero que um dia tenhamos um governo que honre a democracia e puna crápulas como você.

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