Estamos a poucos dias do maior (e moribundo) espetáculo da Terra. Deixando a crise de lado, a safra de 2016 do Grupo Especial notadamente tem dois pelotões claramente divididos (as enquetes da mídia voltada à folia mostram isso). Cada um deles composto por seis escolas.

No pelotão de elite, Imperatriz, Mangueira, Vila Isabel, Salgueiro, Tijuca e Portela. No outro, não tão satisfatório: Estácio, Beija-Flor, São Clemente, Mocidade, União da Ilha e Grande Rio.

No júri do Bar Apoteose, nas edições especiais avaliando os sambas do Grupo Especial, distribuí três notas 10. A primeira para o samba da Imperatriz.

O contestado enredo sobre Zezé di Camargo e Luciano ganhou um olhar para a vida no campo e rendeu um samba de melodia densa, incomum aos tempos atuais. A letra tem sacadas geniais, combinando alguns títulos e trechos de músicas, com versos poéticos. O samba começa contando a história e rotina das pessoas do campo e os sonhos de avançar na vida. “Pessoas” que, na verdade, são a dupla.

https://www.youtube.com/watch?v=e6IXzlAT4Ro

Na sequência, a obra passa por uma exaltação ao campo em si e ao homem do interior, trazendo um verso que serve tanto como autoafirmação dentro do enredo (a letra é em primeira pessoa), como uma mensagem da própria escola aos que torceram o nariz para essa temática: “Não desgoste de mim quem não viu”

A parte final do samba gresilense já foca de forma mais clara na história da dupla rumo ao sucesso, trazendo referências à história do pai deles (famosa pelo filme “2 Filhos de Francisco”), encerrando com um falso refrão que usa o título da música mais famosa dos dois artistas (“É o Amor…”) e que relaciona o amor pela música, na primeira parte, e o amor pela Imperatriz, na segunda.

Por fim, um refrão forte, um tanto explosivo e muito bem composto coroa este samba – com uma referência à bela música “Romaria”.

A Mangueira também homenageia um ícone da música nacional: Maria Bethânia. O samba é outro para o qual atribuí a nota máxima, e também é em primeira pessoa; no caso, feminina, algo extremamente raro e, por isso, louvável. Ao contrário da obra gresilense, o samba mangueirense foca na vida e obra de Bethânia de uma forma mais direta e pessoal.

A obra começa com uma boa sacada no refrão principal (“Quem me chamou… Mangueira / Chegou a hora, não dá mais pra segurar/ Quem me chamou… Chamou pra sambar”), dando a entender como se a homenageada fosse chamada para sambar na escola.

Apesar de cair um pouco na segunda parte, quando o samba entra nas citações de obras da cantora e da MPB e fica um tanto longo, a composição não perde o direito da nota máxima. Inclusive, algumas das boas sacadas estão nesse trecho, como o termo “bordadeira da canção”. A melodia torna a obra valente e é agradável, com variações claras entre os dois refrães e as estrofes, o que é feito de uma forma harmoniosa e que não incomoda.

O refrão de meio é um ponto alto desse samba, em mais um trecho que remete ao fato de Bethânia ser enredo da Mangueira. Torçamos para que, ao contrário do ensaio técnico, o samba vá para a avenida no tom certo e renda o merecido.

O terceiro 10 foi para o samba do Salgueiro, sobre o qual ressalto o que já falei no Bar Apoteose de 7/12: é a obra que você ouve e sabe exatamente qual vai ser o enredo da escola e o que ela quer passar na avenida. Uma qualidade em falta atualmente.

Um samba explosivo, sem apelar para a famosa busca pelo “Ita perdido”, prossegue a retomada de qualidade nas obras salgueirenses, que começou por Candaces e se concretizou de vez nos anos 2010. O refrão principal é chamativo, extremamente forte e, na minha visão, não perdeu na mudança de “bate no peito para ver” para “vem no meu samba pra ver”.

A primeira é muito bem composta, passando pela saudação aos orixás, que expõe a vertente umbandista do enredo. A autodescrição do malandro – outro samba em primeira pessoa, note – leva à ótima sequência: Malandro descendo a ladeira, ê, Zé! / Da ginga e do bicolor no pé / “Pra se viver do amor” pelas calçadas / Um mestre-sala das madrugadas.

Apesar de certo arrastamento nos versos finais que trazem ao refrão principal, os méritos do samba (que pode ser combustível de um desfile que promete muito) levam à nota máxima. Porém, a quantidade de tons altos me preocupa um pouco. Destaque-se que foi a melhor gravação do CD de 2016.

Se o samba do Salgueiro é aquele aluno que, numa prova, responde de maneira certa, mas não a melhor da sala, só que não merece perder ponto, pois fez o que se devia, a obra da Vila é aquele que foi primoroso, mas cometeu erros que não deveriam acontecer e, por isso, não consegue a nota máxima – no caso, 9.9.

A quarta composição em primeira pessoa deste grupo de elite começa sendo um “chute na porta”. Os versos de “Meus olhos ficavam rasos d’água” até a chegada ao primeiro falso refrão são primorosos, singelos e ótimos de se ouvir.

Entretanto, as famosas mudanças tiraram alguns versos do compasso. Mesmo que não devêssemos considerar o samba original, ainda fica clara certa estranheza em alguns trechos. Algo que noto, mesmo já tendo quase esquecido a obra que ganhou na disputa.

A parte que começa em “com ternura me chamava Pai Arraia” até “juntei artistas e intelectuais”, não passa tão agradavelmente quanto ao casamento com a melodia. E no refrão principal, a passagem da citação ao Galo da Madrugada para o último verso não me pareceu tão bem solucionada.

Por outro lado, vale o destaque para os versos “acordei o campo para haver justiça”, e os quatro que precedem o refrão principal, somados a entrada “Vem dançar o frevo e a ciranda / Silenciar jamais!” – esse segundo verso é cheio de simbolismo, assim como vários outros no samba. Ainda implico com o trecho “mensageira Vila”. O original “verdadeira Vila” era mais visceral e retratava melhor a volta dos enredos sociais à escola, e que forjaram a história da azul-e-branco. Neste caso, um preciosismo meu.

A linha do samba notadamente traça uma história linear sobre a vida de Miguel Arraes, a melodia é diferente em relação ao costumeiro, a construção da letra é totalmente diferente do padrão “10+4+10+4” e existem vários momentos envolventes, evidenciando o talento de André Diniz.

Outro samba de melodia notável e dolente é o da Tijuca, que traz seu melhor hino desde o fatídico “Agudás”, no já distante ano de 2003. A homenagem à cidade de Sorriso, tal como o samba da Imperatriz, ganhou outra roupagem e foca, também, na vida no campo.

A soma do potente refrão principal, mesmo em menor, com os quatro versos que vem na sequência (“sou eu… do barro esculpido pelas mãos do criador/ sou eu… filho dessa terra germinando amor / são lágrimas que caem lá do céu / são raios desse sol em meu olhar”) dão o tom desse samba, acompanhado de uma melodia emocionante e bem encaixada. Note-se que no refrão principal a escola tenta emanar outro grande samba, citando nominalmente o enredo de 1999 (“O Dono da Terra”).

Contudo, a segunda cai um tanto e traz versos que soam forçados, para encaixar de forma mais clara a cidade de Sorriso, como em “um oásis de conhecimento / pro país é um exemplo, a tal ‘capital’”. Não me surpreenderia que o samba arrastasse nesta parte. Por fim, gosto dos três últimos versos que emanam o horário do amanhecer. Apesar de que, dificilmente, a escola deva pegar luz natural no desfile. A Tijuca será a última de domingo na Sapucaí.

Destaco que apesar de ser um samba de dois refrães e duas estrofes, ele não segue o padrão “10+4+10+4”. Torçamos que a bateria dê uma segurada e não acelere tanto como em algumas partes da gravação oficial. A cadência na versão concorrente é bem mais gostosa.

Fechando o pelotão de elite do Grupo Especial de 2016 está uma escola que vem sendo a mais consistente neste quesito desde 2012: a Portela. Defendendo uma sequência de quatro carnavais seguidos sem perder um décimo sequer em samba-enredo, a azul-e-branco traz também a melhor obra de uma escola sob um enredo de Paulo Barros.

Samir Trindade e parceiros fizeram um samba cheio de boas sacadas entre os versos, começando pelo dúbio “abre a janela pro mundo que Paulo criou”, que é uma referência a Paulo da Portela e a escola em si, mas que para o público menos conhecedor de carnaval soa como uma exaltação ao que Paulo Barros criará na avenida. Uma solução curiosa se considerarmos a popularidade do carnavalesco na atualidade.

O estilo “samba de roda”, que a escola segue desde a ascensão de Luiz Carlos Máximo, é mais uma vez presente. Na verdade é até um samba mais solto que o do ano passado. Vários lembretes a momentos antigos da escola estão “escondidos” dentro da letra, que tem um jeitão de samba dos anos 1980. A despeito da gravação questionável, é uma faixa que eu gosto muito de ouvir.

Porém, o trecho e mais além, no elo perdido cheguei / no vai e vem, a chave da vida encontrei” é cantado rapidamente e corre riscos de embolamento. Fora que, como é tradição de um enredo de Paulo Barros, fica difícil identificar bem o que se deseja passar na avenida apenas pelo samba.

O refrão principal, que pede respeito, com um tom que me remete à obra de 1991 (“Tributo à Vaidade”), parece desnecessário, mas fica muito forte na sequência que vem desde a estrofe anterior, aos poucos subindo para desembocar numa exaltação a águia, que é fio condutor do enredo e representa, logicamente, a própria escola.

Espero que o rendimento deste samba seja idêntico ao do ensaio técnico. Pessoalmente, adoraria ver o hino da Portela crescer na pista.

É notável que, nesse primeiro grupo da safra de 2016, quatro obras saem do formato “10+4+10+4”, algo que prova de vez que “Madureira sobe o Pelô” (Portela, 2012) destruiu a ideia que tinha se instituído de um padrão para os sambas. Por outro lado, Mangueira e Salgueiro provam que, sim, dá para seguir esta fórmula e fazer bons sambas, ao contrário do que muitos dão a entender quando exigem algo sempre diferente, como se não fosse possível uma boa composição com este formato.

Também destaco a grande presença de sambas-enredo em primeira pessoa neste grupo que separei. É uma solução que pessoalmente me agrada bastante.

Na coluna seguinte, falo um pouco sobre o pelotão de baixo, os seis sambas que compõem esta ótima safra, mas que, pelo alto nível das melhores composições e por defeitos próprios, aparecem na segunda metade do meu ranking pessoal.

One Reply to “O pelotão de elite da safra do Grupo Especial 2016”

  1. Texto bem legal Gustavo. Eu não tenho o conhecimento técnico para analisar tão profundamente um samba. Mas tem samba que agrada e samba que não agrada.

    Concordo sobre os sambas do Salgueiro e Tijuca. Para mim os dois melhores dessa safra, com o do Salgueiro levando uma ligeira vantagem. Creio que o samba do Salgueiro vai explodir na Sapucaí, e o canto da comunidade e arquibancadas serão ouvidos até aqui em SP.

    Notas abaixo de 10 para o samba do Salgueiro só se o sistema de som falhar ou alguem do carro de som inventar algum caco dos tipos: “vamo lá bateria” (Imperatriz 1998) ou “ôôô”, “ôôô” (Salgueiro 2007). Se isso não ocorrer esse samba vai ajudar no título.

    Da Tijuca tem a levada mais melosa e como voce bem disse, dolente. Agrada ouvir no modo “repeat” do MP3. Não é um “O dono da terra”, mas é bonito.

    Tem um samba que quase ninguem considera bom, mas eu sim. Não que seja bom em qualidade, mas tambem não é ruim, mas serve para o propósito da escola. A Estácio abre os desfiles e precisa de uma samba forte, de invocação e que tenha identidade com o publico E nada melhor que cantar sobre São Jorge.

    Os outros, com exceção da Beija-Flor quase uma tese, são bons. Espero como vai funcionar na avenida.

    Abraços!

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