Música é um troço mágico. Não tem muita explicação quando uma melodia toca a alma, quando uma letra emociona. O samba enredo não foge à regra, muito embora tenha, como gênero musical, certas particularidades.

É verdade que a audição repetida muda algo na percepção da obra. Qualidades afloram, bem como defeitos. O ensaio faz com que a bateria encontre o encaixe perfeito, crie bossas que dão um molho extra ou tentam salvar uma composição menos inspirada.

Porém, há casos em que basta ouvir uma única vez. O samba, por algum motivo, te invade. E, na mesma hora, no caso de uma disputa dentro de uma escola de samba, você se vê com a certeza de que aquela é a sua opção, é aquele samba que você quer cantar na avenida – ou admirar, caso não seja desfilante ou a canção não seja da sua escola do coração.

A longa introdução é para dizer que estou feliz e satisfeito com a escolha feita pela minha escola. Por mais de um motivo – um deles uma tradição imperiana que teima em marcar as finais para as madrugadas de segunda para terça-feira – não pude ir à Edgar Romero. A ausência foi em parte compensada pelos informes via WhatsApp do meu amigo – e do Migão – Vitor Monteiro, da ala dos Devotos.

Até o último dia 24 escutei todos os concorrentes e cheguei a duas conclusões quase que instantâneas. Que não se desfizeram ao longo dos meses. A primeira, e o Editor concorda comigo, é que a safra imperiana ficou aquém do homenageado. Mas também, né? Só se o próprio Silas baixasse e psicografasse mais uma obra-prima. Não sei se fui exigente demais. Mas não senti aquele algo a mais, aquele arrebatamento total.

Ainda assim, a única obra que me conquistou de primeira e me deixou mais próximo desse sentimento de abraçar completamente uma música, uma letra, foi a dos Arlindos pai e filho, Lucas Donato, Andinho Samara, do interminável e inesgotável Aluísio Machado.

A bateria, ou boa parte dela, e muita gente da escola fechou com Hoffman, Paulinho, Victor e companhia. Um bom samba também. Mas, na minha modestíssima opinião, uma composição apenas correta, que não me passou a dose extra de emoção que julgava necessário. Um samba correto e de trechos inspirados pode ser o suficiente para falar de Caxambu ou Angra dos Reis. Não para homenagear Silas, a Serrinha, o próprio Império. Favorito para muitos, era um samba bom para as bossas da Sinfônica, dentro do enredo, com uma boa “jongueada”, tudo isso. Embora isso não seja tudo.

O samba vencedor, o samba que agora é de todos nós, tem referências mais poéticas e líricas sobre os versos de Silas. Exalta mais “Heróis da Liberdade” que “Aquarela”. E com toda a popularidade do lalalalaiá…nada, no Céu ou na Terra, passando noites e vindo dias, é mais comovente que uma brisa que afaga a juventude. Heróis é o hino maior de Silas e do Império Serrano, é o maior samba enredo da história (eu acho. Esse espaço é para achismos, afinal).

O “Silas canta Serrinha”, de 2016, não é o melhor samba composto por Arlindo ou Aluisio para a escola? Não. Mas é seminal. Fala ao coração. Assume o risco de uma cadência desacelerada (quem diria, virou risco…), inova, sai da fórmula. O refrão do meio, superior ao final, é um achado. Tem jongo, estiva e trem no mesmo balanço. E quando Silas parte e vê a sua Serrinha, a sua Madureira lá do alto, a melodia vai abraçando a letra e as duas, música e letra, caminham de mãos dadas à negritude que é um charme e dança sob o viaduto. Bate continência à arte dos baluARTES.

Hão de questionar: na quadra não passou tão bem quanto o principal concorrente! Bem, já disse que na quadra, na final, não estive. E podem insistir: na Sapucaí pode se arrastar! Pode. Já vi tanto samba lindo não acontecer na avenida. Você nunca? Posso fazer uma lista bem extensa, mas não é o caso agora.

O caso, aqui, é que o Império não escolheu o samba do artista do programa dominical de tv. E qualquer especulação sobre favorecimento a uma obra ou outra por parte da diretoria seria uma leviandade sem tamanho da minha parte. Além do que, acho que, independentemente de qualquer preferência, de qualquer setor da escola, levantar essas bolas é diminuir uma obra sem querer, despido de implicâncias, viajar nela, deixar-se envolver.

O nosso samba (ele não é mais o samba do Arlindo ou do Aluísio ou do Zé das Couves) conta o enredo, tem sutileza, tem variação melódica. O nosso samba está entre os melhores do Carnaval 2016. Se pudesse depositar seu voto lá do alto me arrisco a dizer que Silas teria cantarolado que a história da Serrinha é talvez a mais bela de uma favela.

Imagem: SRZD

4 Replies to “Foi assim que meus avós contaram…”

  1. Bela análise do Carlos, apesar de preferir o samba do Paulinho Valença, é difícil não se emocionar com o samba do Arlindo. Concordo quase que integralmente com o texto.

    1. Como já disse em PVT ao próprio Gil, olhando pelo ângulo da Harmonia – e não falo aqui em tese, estou legislando em causa própria – o samba escolhido tem uma melodia bem complicada se pensando sob este viés. Ela é “pra trás” demais – e olha que este escriba detesta sambas acelerados…

      Mas agora está escolhido, então é trabalhar em cima dele.

  2. Esse negocio de uma música ter o poder de emocionar é mesmo incrível. Acabo de ler defesa super bem argumentada do samba derrotado, do Hoffman, Paulinho e cia, feita pelo Helio Rainho, no SRZD. Não há como não olhar de um outro jeito para a obra. Vale a leitura. E a reflexão.

Comments are closed.