Eu comecei a acompanhar futebol para valer no fim de 2002, mais especificamente a partir das semifinais do Campeonato Brasileiro daquele ano. Evidentemente, sem saber absolutamente nada – mas já torcendo e me interessando bastante pelo negócio. As primeiras lembranças que tenho são contemporâneas do primeiro jogo de futebol que lembro de ter visto. Quase todas elas, de uma maneira ou de outra, estão ligadas ao futebol.

Por isso, posso dizer que, desde que me entendo por gente, tenho no futebol uma das minhas grandes paixões. Depois, viriam muitas outras, mas o futebol sempre esteve comigo. Só que, curiosamente, eu nunca tive (e penso eu que nunca terei) um ídolo dentro de campo. Jamais idolatrei um jogador, tenha ele jogado “ao vivo” ou nas muitas fitas antigas que assistia. Sempre tive um olhar muito mais especial para as instituições do que para os atletas. Talvez por isso, os únicos três esportistas que idolatrei até hoje foram de esportes individuais: Roger Federer e Rafael Nadal, que dominaram o circuito e fizeram disputas incríveis nos dois ou três anos em que assisti tênis com grande interesse, e Felipe Massa, responsável pela então quase impossível missão de me tirar da cama em um domingo de manhã entre 2007 e 2008 (confesso que desde 2009 isso acontece com bem menos frequência).

galvao3Durante boa parte da minha infância e adolescência, nunca consegui responder àquela pergunta de apostila de ensino fundamental: quem é seu ídolo? Tinha, quando muito pequeno, uma simpatia quase doentia pelo Silvio Santos (que voltaria a ser um ídolo anos depois), mas já não era mais uma coisa tão forte. Ficou, por muito tempo, essa lacuna. Há uns seis ou sete anos, descobri que queria ser jornalista – e, posteriormente, que trabalhar com esporte deve ser um negócio legal pra burro, embora ainda não seja um objetivo propriamente dito – e, então, veio mais uma pergunta óbvia: quem são suas referências?

Essa é uma pergunta que eu ainda não sei responder porque considero a profissão que eu escolhi ampla demais para isso. Eu não me vejo em nenhuma área do jornalismo hoje. É uma profissão fascinante justamente porque te faz passageiro da sua própria carreira. Então, minha única referência e meu único objetivo é fazer bem feito aquilo que eu me dispuser a fazer com base naquilo em que acredito e em que vou acreditar. Tenho, sim, alguns sonhos que gostaria de realizar um dia, mas, a rigor, é isso. Um conceito vago demais para que eu tomasse um único profissional como referência.

Mas, ainda que não tenha respondido à segunda pergunta, essa escolha me fez responder a primeira. Descobri, recentemente, uma atração enorme pelo jornalismo esportivo. De uns anos para cá, passei a ficar atento em cada narrador, em cada bordão, em cada repórter, em cada programa, muitas vezes mais até do que no jogo. Será que quem narra hoje é o Fulano? Será que Sicrano está in loco? Como eram as transmissões antigamente? Como Beltrano começou? Quem narrou aquele jogo?

E, nessa história de conhecer e pesquisar a história do rádio e TV esportivos do Brasil, coisa que virou quase um hobby, passei a admirar muita gente. Mas não é uma admiração de alguém que quer ser jornalista. É a admiração de um torcedor, de alguém que ama futebol e que gosta dos seus detalhes. Mais do que isso, passei até a ter alguns ídolos. Depois dessa longa introdução, falo daquele que hoje é o maior deles: Galvão Bueno.

Galvão Bueno não é, para mim, o narrador que é para muita gente. Quem é mais velho do que eu (que seja dois ou três anos) pegou um Galvão Bueno que narra jogos de quarta e domingo, das decisões aos menos importantes. Quando eu comecei a ver futebol, ele já narrava com menos frequência e, quando passei a ter esse interesse pelo jornalismo esportivo, ele já era, basicamente, Seleção Brasileira, Fórmula 1 e finais de Libertadores que não envolvessem times do eixo Rio-São Paulo, já que essas ficavam com Cleber Machado (outro dos meus ídolos) e Luis Roberto (que não é meu ídolo porque narra poucos jogos para São Paulo, mas que também considero um craque). Então, Galvão Bueno sempre foi, para mim, uma personagem muito distante.

Pode parecer loucura, mas, quando meu time estava mal, eu cheguei a torcer para que ele virasse uma potência só para que pudesse ver o Galvão gritar um gol do meu time. Eu o via narrando os grandes feitos de rivais, de clubes de outros estados, e reproduzia tudo aquilo com o meu clube. Lembrava de poucos jogos com ele na narração e só fui poder matar essa vontade recentemente. Se tinha Galvão na narração (e hoje isso acontece com muitos outros locutores), não me bastava estar em casa na hora do jogo. Tinha que estar 10, 20, 30, quantos minutos antes fosse preciso para que eu ouvisse o “bem, amigos da Rede Globo” e visse uma tomada de imagem da cabine. Isso é mais ou menos o que eu acho que um fã sente pelo ídolo.

galvao4Fala, Galvão! foi o livro que mais rápido eu li na vida – e é por causa dele que faço esse texto. Ao que me parece, Galvão pensou o livro – e Ingo Ostrovsky reproduziu com perfeição no papel – como algo diferente de uma biografia. O livro nos dá a sensação (muito facilitada pelo fato de conhecermos muito bem a voz do homem) de que estamos ouvindo o próprio Galvão contar a história em uma entrevista no Programa do Jô ou em uma edição do Bem, Amigos. Com um pouco de força de vontade, dá para imaginar os trejeitos, os cacoetes e essas marcas registradas que até o mais feroz de seus detratores consegue identificar de longe.

O livro me fez entender melhor porque eu admiro Galvão. Eu já imaginava isso, mas, com o livro, tive certeza. O Galvão é simplesmente um ídolo na concepção mais simples do termo. Ele matou aula para ver o seu ídolo, o Pelé, jogar. Eu matei aula mais de uma vez para vê-lo narrando. E é fácil de entender o porquê disso e também de imaginar que não sou o único.

O esporte é algo apaixonante por natureza. A figura do narrador surgiu no rádio porque alguém tinha de contar o que estava vendo em campo para quem não estava no estádio. Talvez, se não existisse rádio, apenas televisão, o narrador nem existiria. Só que, em pouco tempo, alguém percebeu que esses caras tinham um poder fora do normal no entretenimento. Esporte, afinal de contas, não passa disso. E de repente começaram a surgir bordões que fizeram do locutor quase um astro. Eu aposto que muita gente iniciou um jogo de botão ou qualquer outra coisa com um “abrem-se as cortinas e começa o espetáculo”, ou, jogando bola, disse “é fogo no boné do guarda!”, “o que vale é bola na rede!”,  “a casa da viúva está aberta…”, “o melhor futebol do Mundo no 13…”, “tá lá dentro”, “e que gol!”, “pimba na gorduchinha” e muitas outras frases.

Com a televisão, a narração esportiva também precisou se reinventar. Afinal, se fosse apenas para descrever o que estava acontecendo, bastariam as imagens. Mas aí veio outro dom dos narradores, esse o que, para mim, marca a definitiva ligação entre essa função e o jornalismo: a capacidade de transmitir emoção. Não é, a princípio, algo próximo do jornalismo, mas é que essa capacidade vem da escolha da palavra correta, da capacidade de entender qual a real importância daquilo que está acontecendo, de tentar traduzir uma sequência de imagens em palavras. Isso é, basicamente, jornalismo e, na TV (e talvez até considerando os locutores do rádio), ninguém nunca foi melhor do que Galvão Bueno.

Tivemos e temos muitos narradores capazes de emocionar. Posso fazer uma lista das melhores narrações de gols da história só com os outros narradores tranquilamente. Para ficar só nos da atualidade, temos Cleber Machado e o gol que levou o Atlético Mineiro na  final da Libertadores de 2013 para a prorrogação, Milton Leite e o gol da volta de Ronaldo no Corinthians, Luiz Penido e o gol da classificação do Fluminense para a semi e, depois, para a final da Libertadores de 2008, Luis Roberto e o título carioca do Flamengo em 2014, Everaldo Marques e o gol do Paulinho que levou o Corinthians à semifinal da Libertadores em 2012, José Carlos Araújo e o tri do Flamengo em 2001, José Silvério e o fim do jejum do Palmeiras em 1993, Oscar Ulisses e a capacidade de unir equilíbrio e emoção de modo que várias narrações se destaquem e muitos outros.

galvao2Galvão Bueno tem muitas narrações inesquecíveis. Ele fala com carinho do “é tetra”, do gol do Ronaldo no penta (e da loucura do “se você acredita no Brasil acende e apaga a luz!”), da prata no revezamento nos Jogos de Sidney, dos títulos de Ayrton Senna, mas são muitas outras mais. As vitórias de Felipe Massa, de Barrichello, o gol de Adriano na final da Copa América de 2004, os gols e os finais dos jogos que deram títulos Mundiais a Flamengo, São Paulo, Internacional e Corinthians, a final da Copa das Confederações de 2013, a vitória nos pênaltis contra o Chile em 2014, as medalhas olímpicas, etc, etc, etc.

Isso porque eu nem falei das derrotas que renderam narrações geniais, como por exemplo na Copa de 1990 (“vamo Muller, agoooooraaaaa…”, “o Jorginho foi dar um toque de calcanhar no Maradona aos 44 minutos e meio com o Brasil perdendo o jogo… Agora o Maradona vai ficar caído quatro horas e meia…”, “foi fazer bolinha na frente do argentino…”), na de 1998 (“torce pra pela primeira vez na vida essa lista estar errado!”, “Olha o que aconteceu! Copa do Mundo não é lugar de brincadeira!”), a derrota nos pênaltis na Copa América de 2011 (“não vou nem falar nada…”), Felipe Massa e a mangueira de combustível no GP de Cingapura em 2008, o final daquele campeonato (“cadê o Glock, cadê o Glock, cadê o Glock…..? e o Glock não resistiu…”) e, é claro, o 7 a 1 com seus incontáveis momentos que, hoje, são engraçados.

Só que, mesmo assim, não é isso que faz de Galvão um narrador especial. Embora ninguém tenha narrado melhor que ele cada um dos momentos citados, ele também não foi o melhor em vários outros. Ele mesmo diz que jamais teve o potencial vocal de Luciano do Valle (outro que também admiro muito, embora infelizmente tenha descoberto isso tarde demais), o que faz diferença em alguns casos. Seu talento e sua capacidade para passar emoção seriam suficientes para que ele estivesse entre os maiores. Mas ele é, e isso eu acho difícil contraargumentar, “o maior”. “O melhor” é relativo (para mim ele é), mas “o maior” não tem contestação.

Para mim, Galvão é o maior não pelo que podemos chamar de momentos agudos do jogo ou da corrida. Ele é o maior por tudo o que faz no resto da transmissão. Quando Galvão se diz um vendedor de emoções que anda no fio da navalha entre a verdade dos fatos e a paixão, ele soluciona o enigma da narração. O narrador, e isso vai do estilo de cada um, pode se destacar pela neutralidade, por “ler” o jogo e funcionar como um “guia” para quem não tem o conhecimento jornalístico dele. Temos ótimos narradores nessa linha. Porém, em muitos casos, ele vai além. Ele se destaca por falar aquilo que o torcedor está falando. O fotógrafo registra o momento pelo melhor ângulo, o chute, a rede balançando, a câmera flagra todo o movimento, o redator descreve como foi, procura o detalhe. O narrador eterniza o que aquilo significou para seu público.

Uma vez vi o Galvão falar que a narração do tetra foi a mais desafinada e a mais ridícula, mas que ele gritou daquele jeito porque todo mundo estava gritando igual. E não está certo? Luciano do Valle narrou aqueles pênaltis com o brilhantismo de sempre: cheio de emoção, com um potencial vocal impecável. E por que a desafinada do Galvão que fez sucesso? Porque realmente estava todo mundo gritando igual. Quem era nascido em 1994 certamente se vê pulando como pulavam Galvão, Pelé, Arnaldo e Ciro José. Assim como eu soltei o mesmo “aiaiaiaiai” do Galvão quando Massa saiu com a mangueira do combustível e falei “que absurdo!” quando a Alemanha fez mais um gol.

O que eu quero dizer é o que diz Galvão: ele não quer se achar mais importante do que a imagem, mas não quer ser dispensável. Ele tem a técnica que só os narradores tem e o talento de traduzir o que todos os torcedores sentem. Parece simples, mas é coisa para poucos. Fiori Gigliotti foi um dos narradores de maior sucesso da história por quebrar o paradigma de narrações rebuscadas e trazer uma simplicidade para a narração que aproximava narrador e público, fazia o público se identificar com ele. Galvão quebrou outro paradigma: o de que narrador não torce, apenas vibra.

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É isso que quero dizer quando falo dos momentos que não são agudos. Galvão disse mais de uma vez: “eu torço mesmo!”. Ele não se limita a narrar. Ele torce, empurra, incentiva, vibra, é como um de nós. Por isso, talvez, tenhamos poucas narrações apoteóticas de Galvão em jogos entre dois clubes brasileiros. Nesses, ele sempre foi “apenas” um excelente narrador. Mas ele é o que é, e é meu ídolo, porque é um comunicador fantástico. Ele reclama do juiz como nós reclamamos, rebate o que diz seu comentarista como nós rebatemos, vai se desesperando como a gente. Um jogo de futebol é uma história de 90 minutos que tem vários momentos. Em nenhum ou quase nenhum, estamos nós, os espectadores, equilibrados. Por isso admiro tanto narradores que conseguem fazer sua narração de acordo com o momento do jogo. Ele sempre conseguiu em todos os esportes. E é, nas entrevistas que dá e nos programas que apresenta, uma figura pra lá de carismática. Um personagem, como ele mesmo diz.

Galvão é o maior expoente de um estilo de narração. Esse estilo que torce descaradamente e que, por isso, irrita. Se assistirmos, eu e o leitor, a um jogo juntos, é muito provável que um vá discordar do outro. Temos leituras diferentes. Por isso, em geral, comentaristas são mais odiados que narradores. Galvão narra, comenta, diz, contesta e isso irrita muita gente. É natural. Mas, como uma boa companhia para assistir futebol, para muita gente, ele é indispensável. É bom que tenhamos narradores que optem pelo estilo mais ponderado, que relate mais e emocione menos. Eu, como a grande maioria dos brasileiros (e isso os números comprovam), quero outra coisa. Quero alguém que me faça, com sua narração, lembrar da minha alegria ou da minha tristeza naquele momento. Mais uma vez fazendo uma analogia com a fotografia, alguém que pegue uma foto bonita e, com um efeito que só o melhor fotógrafo sabe colocar, tenha a simplicidade de não acrescentar nada, mas apenas realçar o que de melhor há ali. E isso, tenho certeza, ninguém faz melhor do que ele. Eu sou fã e não escondo. Nunca escondi. É, sim, meu ídolo. Tem quem carregue pro resto da vida os gols que seu ídolo marcou. Eu vou carregar os que o meu ídolo narrou.

Fala, Galvão! Fala muito mais, Galvão!

One Reply to “Fala, Galvão!”

  1. Clap, clap, clap, clap, clap!!

    Eu já ia preparar as vaias se você não citasse o Fiori Giglioti (o maior de todos), mas se esqueceu do Osmar Santos (o segundo melhor).

    No mais, assino embaixo com você. O Galvão Bueno, NARRADOR, é um dos melhores do mundo, gostem ou não! Digo NARRADOR porque, quando ele teima em comentar e querer ser mais que os comentaristas, me dá raiva (motivo principal para eu mutar a TV vendo as corridas de F1 e ouvir Odinei Edson ou Oscar Ulisses).

    Ah! E eu também comprei o livro dele. É sensacional. E como se esquecer, já que você citou tantas narrações inesquecíveis, daquela que, pra mim, é a mais emocionante de todas? “Aí vem Senna na reta… é o final da prova… Ayrton Senna na ponta dos dedos… Ayrton, Ayrton, Ayrrrrrrrrrton Seeeeeeenna do Brasiiiiiill… Ayrton Senna vence… ele pede a bandeira, repete o ritual… vai a loucuuuuuuuuura a torcida em Interlagos… a chuva veio na hora certa, e quando ela parou, Senna levou no braço… ninguém segura mais a arquibancada aqui em Interlagos…” “Senna nos braços do povo… uma imagem inédita na Fórmula 1”.

    http://www.youtube.com/watch?v=7MZJAuk57SU

    Só de lembrar, dá arrepios!

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