(por Flávia Oliveira )

Não faz muito tempo, o historiador  Clayborne Carson, biógrafo do reverendo Martin Luther King, tratou com um grupo de brasileiros da provável agenda do líder negro nestas primeiras décadas do Século XXI.

Fundador do MLK Jr. Research and Education Institute, o professor da Stanford University, na Califórnia, causou certa surpresa com a metáfora que usou para apontar o que seria a prioridade do ícone do movimento dos Direitos Civis americanos. “Ele iria revirar o fundo do barril”, resumiu.

A frase curta guardava o oceano de mágoas que, cinco décadas após as históricas conquistas dos anos 1960, ainda permeia as relações raciais nos EUA. O país derrubou as leis de segregação, garantiu o direito dos afrodescendentes ao voto, implementou políticas de ação afirmativa para facilitar a entrada nas universidades, elegeu um presidente negro, Barack Obama. Ainda assim, o sentimento predominante nas comunidades de african-americans continua sendo de exclusão. Na pele, eles vivem o que as estatísticas atestam: a desigualdade é crescente; está cada vez mais difícil subir degraus na pirâmide social.

– Algumas ações (pós-Direitos Civis) permitiram a entrada de negros em escolas de brancos. Isso elevou a integração nesses locais. Mas a educação dos que não se integraram não melhorou. A possibilidade de sair da pobreza é muito pequena. Hoje, as pessoas protestam nas ruas contra a sensação de estarem ficando para trás. Se Martin estivesse aqui, apoiaria os que ficaram para trás – analisou o professor Carlson, na teleconferência promovida pelo Consulado Americano no Rio de Janeiro, em fevereiro passado.

Suspect Dies BaltimoreO comentário, não por acaso, remete às manifestações que tomaram as ruas americanas em reação a uma série de assassinatos de jovens e adultos negros por policiais brancos. O caso mais emblemático foi o de Michael Brown, baleado em Ferguson (Missouri). Foi o estopim da onda de protestos, em agosto de 2014. Em fins de abril de 2015, as vias de Baltimore (Maryland) foram tomadas por uma população indignada com a morte de Freddie Gray, em decorrência de fraturas na coluna sofridas enquanto estava sob custódia policial. A prefeitura chegou a decretar toque de recolher na cidade.

O cenário atual das relações raciais nos Estados Unidos tem algo a ensinar ao Brasil. Nesta semana em que o “Ouro de Tolo” festeja o sexto aniversário, o país completa 127 anos da abolição da escravatura. Mais de um século se passou sem que os negros brasileiros fossem alvo de qualquer política pública de inclusão social. Racismo é crime previsto em lei, mas não há notícia de ninguém punido severamente por preconceito de cor.

O arcabouço legal do acesso à universidade pública por meio de cotas raciais e sociais foi instituído há pouco mais de uma década. Hoje, quase seis dezenas de instituições de ensino superior adotam o sistema. Os resultados, embora promissores, mal deram conta de uma fração da desigualdade construída por séculos.

Um ano atrás, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que institui reserva aos negros de 20% das vagas nos concursos públicos federais. Em março último, foi a vez de o Supremo Tribunal Federal fazer o mesmo nas seleções para a casa e para o Conselho Nacional de Justiça.

trabalho-carreira-promocao-profissao-emprego-1302047032586_956x500Com a entrada na universidade assegurada, o caminho natural é avançar na ampliação do acesso aos negros formados ao mercado de trabalho. As ações afirmativas nos concursos públicos, quando implementadas, serão bem-vindas. Mas não são suficientes. Nem todo afrodescendente com curso superior tem como projeto de vida uma posição nos poderes Executivo ou no Judiciário.

A construção da igualdade no mundo laboral passa também pela formação de redes de relacionamento no comércio de mercadorias, na prestação de serviços, na contratação de profissionais liberais. Içados à classe média, os negros brasileiros ainda valorizam pouco (muitas vezes, sequer enxergam) seus pares.

Para usar a metáfora do biógrafo do Nobel da Paz de 1964, não reviram o barril e desperdiçam a chance de cobrar políticas públicas universais, mas também de criar oportunidades e, de forma direta, transferir renda aos que ficaram para trás ou estão logo ali, na mesma vizinhança. O “networking” é o obstáculo a ser vencido. Com sorte, isso ocorrerá bem antes das cinco décadas que pavimentaram o desapontamento dos negros americanos de hoje.

(Flávia Oliveira é jornalista de O Globo e da GloboNews e assina um dos posts especiais neste sexto aniversário do Ouro de Tolo)

Imagens: Reprodução e Uol