A CBF formalizou nessa semana a discussão sobre o formato do Campeonato Brasileiro de 2016. Já há algum tempo vem se debatendo extraoficialmente, na imprensa e dentro dos próprios clubes, a validade do formato chamado de pontos corridos, adotado em 2003 e que é praticamente idêntico ao da maioria dos torneios nacionais do mundo. É uma discussão complicada porque o Estatuto do Torcedor obriga que ao menos uma competição de âmbito nacional tenha o número total de jogos de uma equipe definido com exatidão antes do início da disputa, mas quem decide não parece estar muito preocupado.

O ponto é que me entristece muito ver para que lado é levado esse debate em todas as esferas – para os clubes, para a imprensa e para os torcedores. De um modo geral, os defensores das duas fórmulas entendem de maneira totalmente equivocada o valor dessa decisão. Os defensores dos pontos corridos clamam por um campeonato organizado, aos moldes europeus, que faça justiça ao time mais regular. Já os adoradores do mata-mata querem a volta das decisões, dos estádios lotados, do Brasil parado para conhecer seu campeão. Ambos tem os seus romantismos e, como o amor é cego, não entendem que o que lhes deixa com saudade – ou com inveja, no caso dos pontos corridos – não será alcançado ou retomado por conta da fórmula do Brasileirão.

Qualquer comparação entre Brasil e Europa nesse sentido é altamente equivocada. O sucesso de público dos campeonatos europeus é de fato invejável e é infinitamente superior ao que temos aqui. E não estou falando de público nos estádios, mas sim público em geral. Aqui no Brasil, à exceção de quem gosta de futebol, os nossos campeonatos vivem em uma absoluta indiferença para boa parte da população. A maioria assiste apenas aos jogos mais importantes, mas não consegue gostar de ter no futebol um hábito. E isso acontece por muitos fatores, como o horário dos jogos, o nível técnico ruim e, é preciso reconhecer, o formato do campeonato.

A Europa viveu sempre a cultura dos pontos corridos. Lá sempre foi muito claro que campeonato é pontos corridos e copa é mata-mata. Por isso, o futebol cresceu onde quer que tenha crescido com essa filosofia muito bem implementada. A partir e então, foi apenas trabalhar o marketing, estruturar a Liga, fortalecer os clubes e transformar os torneios em verdadeiros exemplos. Aqui no Brasil, a coisa nunca funcionou assim. A soma de dois fatores básicos criou uma cultura completamente diferente. Esses fatores são o tamanho absurdo do nosso país e o fato de, até anteontem, sermos subdesenvolvidos, com dificuldades grandes para uma integração nacional.

O resultado é que só em 1959, enquanto boa parte da Europa já tinha ligas fortalecidas, tivemos um campeonato nacional. Os Estaduais eram fortíssimos. O Paulistão, por exemplo, foi durante muitos anos disputado em formato muito semelhante ao atual Brasileirão, o que mostra que os pontos corridos não nasceram em 2003. Só que a nível nacional isso era totalmente inviável. Como fazer o Bahia disputar 38 partidas em seis, sete meses? Como fazer o Bahia jogar em São Paulo hoje, em Salvador na quarta e em Porto Alegre domingo que vem? Não havia nem tempo, nem dinheiro, nem estrutura para tal. Assim, a Taça Brasil e suas semelhantes eram curtas, rápidas, totalmente estruturadas em formato de mata-mata.

Ao longo do tempo foram surgindo outros formatos, alguns campeonatos eram decididos por quadrangulares, mas a partir da consolidação do Campeonato Brasileiro em 1971, quando o futebol já era um fenômeno de massa muito superior ao que é hoje, outro fator entrava em cena para criar a cultura do mata-mata: a ditadura militar inchou o Brasileirão e criou um campeonato praticamente varzeano. Não havia acesso, nem descenso e 40, 50, 60, 70 clubes disputavam a elite. Evidentemente, fazer um campeonato de pontos corridos era impossível e daí nasceram grandes decisões. O mata-mata do Campeonato Brasileiro era um evento, mais ou menos como são os playoffs da NBA, mas nem nós sabíamos disso. Em todo caso, captamos muito bem essa cultura de que campeonato que é campeonato tem que ter decisão. Tanto que os próprios Estaduais passaram a ser quase todos em mata-mata.

Com o passar dos anos, houve um maior intercâmbio entre o futebol nacional e o estrangeiro e, quem gosta de futebol, passou a invejar de certa forma a estrutura dos campeonatos de lá. A partir de 1987, viradas de mesa à parte, o Brasil passou a ter um campeonato sólido, uma Liga de verdade, com acessos e descensos. Dando um salto de 15 anos no tempo, concluiu-se que era hora de falar a mesma língua do resto do mundo, de adotar o mais “justo” dos sistemas: o de pontos corridos.

cruzeiroAgora aproveito para abrir um parêntese que destoa um pouco do tema desse texto. Não entendo sinceramente o conceito de justiça aplicado aos pontos corridos. Tenho a tese de que é o regulamento que deve definir a justiça de um campeão e não o contrário. À época da adoção dos pontos corridos, muitos questionavam a justiça do título do Santos em 2002, que havia sido o oitavo colocado e atropelou o primeiro, o quinto e o segundo. Ora, mas qual o problema? No papel dizia que os oito melhores iam para o mata-mata e, nele, se decidiria o campeão. E assim foi feito! Cadê a injustiça? O Cruzeiro, bicampeão brasileiro com sobras, somou apenas um ponto contra o vice-campeão e nenhum contra o quarto e o quinto colocados. Seria então o melhor time do campeonato? Para mim, não. Mas se o regulamento diz que ganha quem somar mais pontos, está feita a justiça. Fim do parêntese.

O público que gosta de futebol não só continua assistindo ao Brasileirão de pontos corridos, como, em parte, gosta do formato. Algumas pessoas realmente torcem o nariz, mas tem quem ache legal. Para o público mais assíduo, foi uma mudança bem sucedida. Os times em si cresceram, o campeonato se fortaleceu, se organizou melhor e o planejamento dos clubes inegavelmente melhorou. Mas a verdade é que para quem não sabe a regra do impedimento, os pontos corridos fracassaram. E aí voltamos ao ponto que todos nós queremos alcançar: transformar o Brasileirão em um sucesso de público não apenas dentro dos estádios. Em suma: o conceito de “Liga forte” aqui é totalmente diferente do que é aplicado na Europa. E isso qualquer um pode notar em qualquer lugar do Mundo. Vê se americano quer a NBA em pontos corridos. Vê se abre mão de uma “injustiça”. Não! É totalmente cultural.

Só que as coisas não são simples assim. O formato da disputa está longe de ser fator decisivo e isso é cristalino aqui no Brasil. De fato, houve um desinteresse maior porque nós não estamos acostumados a ver um time ser campeão a cinco rodadas do fim (prova disso é que os ditos melhores campeonatos da era dos pontos corridos foram os que foram decididos na última rodada). Só que a queda de audiência e de interesse do Brasileirão tem muitos outros fatores e simplesmente voltar com o mata-mata não resolverá nada. É aí que saímos do romantismo dos que veem o Brasileirão se transformar na Premier League inviável sem os pontos corridos para o romantismo dos que acham que só uma final fará do Campeonato Brasileiro um sucesso.

atleticomgxcorinthians2A maioria das pessoas que defende a volta do mata-mata não sente falta do mata-mata, mas sim da época em que ele foi disputado. Sente falta do Maracanã abarrotado, dos grandes clássicos, das grandes decisões, de um tempo que definitivamente não volta mais. Uma final de Copa do Brasil entre Cruzeiro e Atlético Mineiro com os dois melhores times do Brasil em 1990 teria 90 mil pessoas no Mineirão nos dois jogos. A mesma final para o mesmo campeonato em 2014 não chegou a 40 mil e o primeiro jogo sequer foi no Governador Magalhães Pinto. Ou seja: o mata-mata de hoje, por si só, não teria 10% da graça que teve em outros tempos.

Então, o que isso tudo quer dizer? Quer dizer que, para o fortalecimento do Brasileirão enquanto Liga, o formato é completamente indiferente. Ser indiferente, porém, não o torna irrelevante, muito pelo contrário. É uma discussão relevante, onde muita coisa tem que ser analisada até que se chegue a uma conclusão. Cada um, assim, tem suas preferências. Eu prefiro o mata-mata, você talvez prefira os pontos corridos e temos todos nossas razões. Mas é preciso, antes de mais nada, que os dirigentes abandonem o conto de fadas que lhe for mais encantador e entre para a realidade.

Esse extremismo misturado ao romantismo faz o cachorro que é o futebol brasileiro correr eternamente atrás do rabo. Com uma economia mais favorável, apesar desse ano complicado, o Brasil já tem condições de ter uma Liga forte. Só que o Brasil sequer tem uma Liga! Que se decida o formato que se quiser, mas que se abrace esse formato e que se trabalhe para ele. Por que a Copa do Mundo teve tanta audiência no ano passado? Porque ninguém assistia Itália x Costa Rica. As pessoas assistiam à Copa do Mundo. Com o Brasileirão, assim como é com a Champions League, a Premier League, ou a NFL, precisa ser igual. Na TV ou no estádio, as pessoas precisam querer ver o Brasileirão e não o Flamengo ou o Corinthians ou o São Paulo. Para isso, precisamos nos modernizar. O Campeonato Brasileiro não tem um site, nem um Twitter, nem um Facebook, nada.

Pode parecer básico, mas é muita coisa. Precisamos de identidade visual, precisamos fazer do Brasileirão um campeonato forte e, ao mesmo tempo, único. Um campeonato exatamente igual aos europeus não será visto pelos europeus. Um campeonato com o nível de organização e divulgação dos europeus, mas que seja peculiar, único, terá grandes chances de ser visto e admirado. E estou certo de que esse patamar poderá ser alcançado com qualquer formato.

One Reply to “Sobre mata-mata e pontos corridos”

  1. Vou expor aqui uma ideia que eu ouvi de uma pessoa esses dias: integrar Estaduais e Brasileirão.

    Estaduais em seis meses. 48 times classificados de acordo com o ranking da CBF, hoje:

    *6 de SP
    *4 do RJ e de MG
    *3 do RS, PR e SC
    *2 de GO, PE, BA e CE
    *1 de cada estado restante.

    Oito grupos de seis times. Turno e returno. Passam os dois melhores. Oitavas, quartas, semifinais e finais. São 18 datas. Pouco mais de quatro meses.

    Se quiser eliminar custos, faz o campeonato em uma única região (aí não tem turno e returno). Igual a Copa dos Campeões, em 2002. Escolhe dois ou três estados e faz lá, tipo Copa do Mundo.

    É a única maneira de fazer Brasileirão com mata-mata e continuar com os estaduais que todos “amam”.

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