Tinha decidido tirar três semanas de folga, ainda vou tirar, mas nem comecei a primeira ainda porque temos que estar atentos a tudo que ocorre pelo mundo.

O ano de 2015 começou frenético, com o atentado ao jornal em Paris. Uma tragédia que aterrorizou o mundo e abriu uma série de debates. Os lados bons e ruins das religiões, o terrorismo e o limite do humor.

Assuntos polêmicos, que eu já cansei de falar aqui e muita gente melhor que eu fala no momento do assunto.

kissing_hebdoSó para não ignorar por completo o assunto digo que não concordo com a maioria que vem dizendo que o humor é anarquista e não deve ter limites. Tudo na vida, até a zoeira, tem limites e o limite é o bom senso.

Sempre bom pensar se é realmente engraçado o que vai fazer e se ofende alguém porque humor não foi feito pra ofender e sim para rir e fazer pensar. Principalmente. Quem faz o humor tem que lembrar que nem todo mundo é bem humorado e pensar nas consequências que aquela piada pode trazer.

Lamentável que usem a religião para matar, se sobrepor, humilhar e subjugar os outros. Jesus e Maomé nesse momento devem estar em um boteco comendo calabresa, bebendo uma gelada e comentando “viu a nova merda que fizeram usando nossos nomes?”.

Fiz uma piada com religião. Devo estar no alvo agora.

Mas não saí das férias para falar disso, apesar de que não podia ignorar; saí por algo mais importante. Pelo menos para o carioca.

A morte de dona Dodô.

Para a esmagadora maioria do país Dodô é o artilheiro dos gols bonitos. Jogou no Botafogo, São Paulo, Fluminense e enganou no Vasco. Para o carioca que tem uma ligação de berço com o carnaval e suas escolas de samba Dodô é muito mais. Representa a elegância e a história do nosso samba.

DodoDona Dodô representa uma espécie em extinção no samba. A dos bambas. Poucos restaram e a coluna de hoje é sobre um deles. Graças a Deus vivo e passando seu conhecimento para todos nós.

Falo de Waldir 59.

Poucos privilegiados conhecem Waldir 59. Esse homem é um monstro sagrado, um dos maiores sambistas de nossa história e um dos maiores compositores que a Portela já teve. Muitas vezes campeão; até recentemente era o maior vencedor da escola de Madureira.

Ano passado compus para a Portela e comecei a reunir a parceria. Levei comigo Cadinho aqui da Ilha, me juntei ao grande poeta Alexandre Valle, ao multicampeão Amendoim, mas precisávamos de gente ainda.

Alexandre chamou Gadelha, compositor da ala da Portela e dele veio a ideia do “pulo do gato”.

Chamar Waldir 59.

Gadelha era não só amigo de Waldir como uma espécie de braço direito do homem que, com a idade avançada, necessitava de cuidados especiais. Gadelha deu a ideia e nossos olhos brilharam. “Ter Waldir 59 com a gente? É possível mesmo?”

Era. O assunto virou segredo de estado e uma tarde fomos até a casa de Waldir no Engenho de Dentro.

Waldir é um homem de quase 90 anos, mora sozinho em um condomínio, onde recebe cuidados de uma senhora. É cego, tem dificuldades de locomoção, mas um grande sorriso que mostra toda a força de uma vida que ele tem.

WaldirFechamos a parceria e começamos a fazer um esboço de samba. Muitas dúvidas surgiram, a parceria não se entendia e Waldir apenas ouvia a tudo em silêncio. Algumas vezes parecia não estar ali, apenas sentado olhando para o nada. Outras vezes respondia que concordava com o que falávamos.

Como eu disse, o homem tem quase 90 anos, é pedir demais a uma pessoa dessa idade o vigor e a criatividade de um jovem. Ele nem precisa disso. Já fez tudo que devia fazer ao samba, a obrigação hoje é toda nossa.

A situação foi ficando ruim, a gente não se entendia até que Waldir começou do nada a cantar sambas antigos e contar suas histórias. Naquele momento paramos de ser compositores, de tentar fazer o samba e passamos a ser ouvintes.

A ser aprendizes.

Waldir 59 resumiu em algumas horas de papo e ensinamentos a história da Portela e do samba. Contou como foi a mudança do nome “Vai como Pode” para Portela, sugestão dada por um delegado em uma delegacia, contou os amores que teve na agremiação, mulheres casadas, solteiras e algumas personalidades – que não convém citar nomes. Como descobriu João Nogueira. Como conheceu Clara Nunes e a aconselhou a ir para a Portela.

E cantou. Cantou bastante.

Alexandre Valle registrou vários desses momentos em fotos e vídeos. Mas infelizmente o que esse grande poeta da União de Jacarepaguá tem de talentoso tem de preguiçoso e mesmo um ano e meio depois desse encontro até hoje não nos repassou.

205834O twitter dele é @allexandrevalle, o facebook Alexandre Valle. Conclamo a vocês que façam uma campanha pela liberação desse material que merece ser visto e parar em algum museu ou acervo.

No fim, não fizemos samba nenhum. Nos despedimos com o velho bamba irradiando felicidade e pedindo que voltássemos a sua casa. Pelas paredes várias fotos de Waldir com personalidades, até com o presidente Lula e vendo aquelas fotos e a solidão que aquele homem se encontrava no fim da vida senti pena.

Pena de nós que nunca teríamos uma vida tão rica e produtiva quanto a de Waldir 59.

A parceria não saiu. Nossa diferença de pensamento artístico para o Gadelha era gigantesca e sem solução. Waldir foi o primeiro a perceber isso quando parou aquela tentativa de fazer samba e resolveu nos dar aula.

Waldir 59 é professor de samba, professor na vida e temos que aproveitar enquanto ele está entre nós pra agradecer, reverenciar e aprender.

No mundo de terror em que vivemos Waldir 59 é poesia.

Imagem da Capa: Fernando Molica/O Dia

4 Replies to “Uma tarde com Waldir 59”

  1. Meu Poeta preferido, vou até confessar que houve uma certa dose de preguiça sim (nesses assuntos cibernéticos tenho mesmo uma certa preguiça intelectual pra aprender certos mecanismos de funcionamento), mas não foi só isso.

    Um dia passei as imagens e vídeos pro meu PC, que já passou por vários técnicos, e, o último deles disse que precisava abrir espaço na memória e que tiraria alguns arquivos pesados, dentre os mais antigos. Como eu falava com outra pessoa em outro telefone, no momento em que ele me disse isso, acabei autorizando, inadvertidamente e ele acabou detonando alguns daqueles registros históricos, mas, caaaaalmaaaaaaa… Ainda tenho algumas fotos daquele dia e um ou dois vídeos.

    Acontece que esses registros remanescentes estão em algum lugar desse PC que só consigo achar quando vou no PESQUISAR. Eles aparecem no visualisador de imagens do Windows (fotos) ou no Windoes Media Player (vídeos), mas não sei o que fazer pra salvá-los em algum lugar pra compartilhá-los por e-mail, Facebook ou qualquer outro meio. Se o Poeta me ajudar, mando na hora. Só não poderei faze-lo ainda hoje porque estou me preparando pra sair de casa pros Ensaios Técnicos de hoje.

    Abraços e saiba que, mesmo sendo “esculachado”, adorei ter ocupado um espaço tão grande na coluna do meu parceiro e Poeta. Pelo menos, não caí no ostracismo e no esquecimento do amigo.

    E muitos BRAVOS ao Mestre Waldyr 59 que realmente nos brindou com uma das tardes mais produtivas de nossas vidas.

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