“Evoé!”. O grito de Momo ecoa pelo Rio e abre o carnaval de 1930. O Rei deslumbra-se com as Grandes Sociedades e na Praça Onze acha graça das desenxabidas Escolas de Samba, que penam para sair. É ele quem comanda a patuscada enquanto namora Clio, a deusa da História. De mãos dadas, eles brincam nas páginas do Jornal do Brasil em sete diferentes décadas, num amor de carnaval que sobreviveu às cinzas.

O Rio de Janeiro tem a alma carnavalesca e o mundo parece se juntar aos cariocas nos blocos ou nas duras arquibancadas da Avenida Marquês de Sapucaí, durante os dias de folia. Em nenhum outro lugar o Carnaval, que teve início nos cultos pagãos da Antiga Roma, ganhou tantos adeptos e expressões diferentes.

Mas, até a década de 1960, as Escolas de Samba não eram a grande festa da cidade: Corsos, Grandes Sociedades, Ranchos, Frevos, Cordões, bailes sofisticados como o do Teatro Municipal e até simples fantasiados que desfilavam com irreverência nas ruas ganhavam mais destaque nos jornais do que os desfiles das agremiações de samba.

As Grandes Sociedades ou clubs carnavalescos Fenianos, Democráticos, Tenentes do Diabo, Pierrôs da Caverna e Congresso desfilavam no carnaval de 1930 como os “verdadeiros sustentáculos do carnaval carioca”, segundo noticiou o Jornal do Brasil em 4/3/1930. No mesmo exemplar, pode-se ler algo impensável no Rio de hoje: “Ao Corso tem afluído todos os automóveis da cidade”.

Luxo e Crítica Social nos Clubs

O desfile da Sociedade dos Fenianos foi marcado naquele ano por grandes alegorias, nas quais o luxo e a crítica social e política conviviam harmoniosamente: “Rompe a primeira parte do cortejo um abre-alas, bem feita alusão aos novos sinais luminosos automáticos e no qual aparece um feniano pedindo descongestionamento para a passagem do préstito”, segundo o JB.

E se já naquela época as intervenções da Prefeitura no trânsito atormentavam a vida do carioca, a imprensa não era poupada, com a alegoria que representava o “Jornalismo de Sensação, charge às reportagens sensacionalistas”, ainda no desfile dos Fenianos, conforme noticiava o mesmo JB de março de 1930.

JB06_02_1940Em 6/2/1940, o Jornal do Brasil, com sede na Avenida Rio Branco, em pleno coração do carnaval da cidade, recebia “visitas” de foliões anônimos, que frequentavam as páginas do jornal, com suas fantasias criativas, desde clássicos toureiros a um inusitado abajur. Segundo o jornal, o velho folião “Coxada”, “esteve na avenida com sua travesti e cestinha de flores. E foi tal a coleta que Coxada prometeu não gozar sozinho o resultado de sua peregrinação pelas ruas da cidade”.

Outros tempos, outros carnavais

No carnaval de 1950, a cobertura do JB se dividia entre os vencedores dos concursos: o rancho Decididos de Quintino, o préstito do Arsenal da Marinha, o frevo dos Lenhadores e a escola de samba Império do Serrano (sic). No mesmo ano, o rancho é considerado o “desfile de mais prestígio no espírito carnavalesco do povo carioca, o melhor espetáculo que oferece o carnaval metropolitano”.

Mas a festa estava mudando. As Grandes Sociedades já eram coisa do passado e haviam se convertido em espetáculo decadente no carnaval de 1960. Por isso mesmo, recebia severas críticas do Jornal do Brasil: “É um dos mais feios espetáculos do carnaval. Os carros são pobres e do mau gosto mais gritante”. Enquanto isso, o luxo e o requinte das alegorias passariam aos poucos a ser a nova marca das escolas de samba.

Escolas de Samba por cima

As escolas de samba demoraram a sair dos subúrbios da cidade, que até a década de 1930 eram onde se ouvia “o barulho magnífico dos pandeiros, das gaitas, dos reco-recos e dos clarins”, segundo o JB. Mas em fevereiro de 1940, o jornal já informa que uma multidão de vinte mil acompanhava, na Praça Onze, a então “nota mais pitoresca do carnaval da cidade”.

JB05_03_1960Duas décadas depois, o JB ainda tratava as Escolas de Samba como curiosidade. O maior destaque que a festa ganhava na edição de 5/3/1960 ocorria nas páginas policiais. Natal, bicheiro e patrono da Portela, foi espancado por guardas da Polícia Municipal no dia da apuração dos desfiles. O motivo da confusão foi a contestação do campeonato da Portela, e a solução foi dividir, naquele ano, o primeiro lugar com Mangueira, Império Serrano, Salgueiro e Aprendizes de Lucas.

No mesmo exemplar do Jornal do Brasil, já se lia que as Escolas de Samba eram “o maior acontecimento popular do carnaval carioca”. Mesmo assim, acompanhar os desfiles era uma aventura para o turista incauto. Se ele não tivesse a sorte de conseguir uma vaga entre os módicos mil lugares do palanque especial do departamento de Turismo, que enfrentasse os cordões de isolamento, onde, novamente, a polícia agia com violência.

Superescolas de samba S.A.

Em 1970 há mudanças significativas na cobertura do carnaval pelo JB, que começa a ser monopolizada pelos desfiles das Escolas de Samba, já consolidados como o grande evento da cidade, em detrimento de outras manifestações carnavalescas. Sua fama internacional é notada com a entrevista de Janis Joplin ao jornal. Em visita ao Brasil, a roqueira se revela interessada em “aprender a sambar”.

JB14_02_1970Aliás, os sambistas culpariam os turistas pelo fracasso dos desfiles daquele ano. Pela primeira vez, para que os desfiles não avançassem pela manhã e tarde do dia seguinte e se viabilizassem como evento turístico, a Prefeitura impôs uma duração máxima para a passagem das escolas, com perda de pontos para a agremiação que estourasse o tempo.

O editorial do JB de 9/2/1970 tem como título “Samba Acelerado” e critica “o vexame de uma corrida que atenta contra a própria dignidade do samba”. O jornalista Anderson de Campos aponta uma tendência que seria cada vez maior nos desfiles, ao reclamar que “os ensaios se transformaram em fonte de renda e diversão para a Zona Sul e passistas chegam no dia do desfile sem saber puxar o samba-enredo”. Prenúncios de uma nova era no carnaval, agora vitrine para artistas e modelos.

Na Sapucaí, a festa das celebridades

O ritmo das transformações não é cadenciado como o dos antigos sambas-de-enredo. Muitas inovações são introduzidas nos desfiles, até a inauguração do sambódromo, no carnaval de 1984. Na opinião do JB de 19/03/1984, “A distância da pista de desfile prejudicou o contato entre as escolas e os assistentes”, e a Praça da Apoteose, idealizada por Darcy Ribeiro, “levou quase à loucura os diretores de alas e de harmonia”.

No mesmo ano, as escolas do primeiro grupo ganham nas páginas do jornal um espaço de análise minuciosa. A Unidos da Tijuca, por exemplo, em nada lembra a atual potência do carnaval carioca: “As fantasias da Comissão de Frente só chegaram quando as alas já estavam armadas e a solução foi trocar o vigoroso exército de guerreiros negros, formados por dançarinos do afoxé filhos de Gandhi, por uma linha de mulatas em biquíni diminuto”, segundo o jornal, em 19/03/1984.

No fim do século XX, a Marquês de Sapucaí já não é rejeitada pelos sambistas, muito menos pelas modelos e atrizes que se acotovelam e disputam as lentes das câmeras de TV, na frente das baterias. O JB de 28/02/90 entrevista o cantor Jamelão, que indignado com os “ricos e endinheirados que mandam no carnaval”, anuncia, em vão, sua aposentadoria.

O Samba agoniza mas não morre

JB16_02_1999Essa tendência marcou firmemente o carnaval de 1999, no qual a musa sadomasô Tiazinha atrasou a apresentação da Tradição em dez minutos, devido ao exército de fotógrafos que se posicionava desde sua chegada na passarela. Outro destaque foi a briga da modelo Mônica Carvalho com a Escola de Samba Grande Rio, que a retirou de um carro alegórico para dar lugar a mulheres anônimas.

Já nos camarotes, Luciana Gimenez fazia mistério sobre sua gravidez, enquanto observava (ou não) o Salgueiro esquentar sua bateria ao som do hit religioso “Erguei as Mãos”, do padre Marcelo Rossi. Mas é na capa do JB de 16/02/1999 que Tutty Vasques vaticina: “A grande vencedora do desfile da noite de domingo foi Solange Gomes. Pelo menos pela televisão só deu essa moça”.

Às portas do século XXI, portanto, o maior espetáculo da terra já não era o samba, e as mudanças não pararam por aí. Mesmo assim, o carnaval carioca parece ter uma grande capacidade de reinvenção. E durante muito tempo os cariocas desejarão renovar os votos de confiança ao rei Momo, entregando a ele as chaves da cidade durante os cinco dias de folia – pelo menos é o que a História aponta.

(Para acessar as páginas citadas, visite http://www.jb.com.br/paginas/news-archive/)

[N.do.E.: o historiador Lourival Mendonça passa a assinar uma coluna quinzenal a partir de hoje. PM]

One Reply to “Sob O Reinado De Momo, Uma Cidade, Muitas Histórias”

  1. Não posso deixar de fazer uma crítica a este artigo, uma vez que, a despeito do título do mesmo, o texto revela uma queda pelas Escolas de Samba.
    Esta preferência é notada pela pouca valorização das outras manifestações carnavalescas do Rio na primeira parte, e o sumiço delas com o abocanhar da festa pelas Escolas de Samba.
    Para fechar, terminou incompleto, chegando ao século XXI ignorando o ressurgimento dos Blocos nas ruas, mais adequadamente populares (E por que não dizer modernos?) que as Escolas de Samba.

    O carnaval carioca cresceu exponencialmente!
    Felizmente o folião pode encontrar nos dias de Momo uma diversão que se encaixe perfeitamente – ou quase – nas suas preferências: Escola de Samba, Blocos (De tudo!), Bailes, os bons e velhos Concursos de Fantasias, e o que mais o povo inventa, inclusive para quem não gosta de carnaval (Paradoxal, não?).
    O que não mudou nestes anos todos foi a ausência de um olhar mais global sobre a festa, capaz de registrá-la como um todo, e não apenas sob a preferência dos meios de comunicação.
    Pela Internet até se consegue “descobrir” alguma novidade bombástica, mas sem o crivo das corporações, fica difícil acreditar que “vale a pena” (Como também aconteceu com as Escolas de Samba durante muito tempo).

    Injusto.
    Tentemos fazer diferente!

    Atenciosamente
    Fellipe Barroso

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