A base rítmica do samba urbano carioca, até as pinturas rupestres da Serra da Capivara sabem, é africana; e o seu fundamento – mistério, segredo e babado – é a síncope. Mas o que seria ela, a síncope? Como explicá-la sem cair nos meandros mais complexos da teoria musical? Não custa tentar.

A síncope é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. Na prática a síncope rompe com a constância, quebra a sequência previsível e proporciona uma sensação de vazio que logo é preenchida de forma inesperada. Em outras palavras, esse é o segredo da cadência.

Fica mais fácil entender também se lembrarmos de o que é, na medicina, uma síncope. Ela se caracteriza por uma parada ou diminuição dos batimentos cardíacos, quebrando a previsibilidade do ritmo do coração.

A síncope do samba se manifesta de forma inequívoca no bailado do passista, que normalmente preenche com o corpo as quebradas que a imprevisibilidade rítmica proporciona.

Ismael Silva, o bamba do Estácio, gostava de dizer que a base do samba urbano carioca é a cadência sincopada que permite o desfile em cortejo e sustenta o bailado. Seria essa a diferença fundamental em relação ao samba amaxixado (como o “Pelo Telefone”), mais previsível, quadrado e menos cadenciado.

É a partir dessa rápida digressão sobre a síncope que chego ao ponto que me interessa: a maneira como esse fundamento do samba está sendo solapado pela aceleração de algumas baterias de escolas de samba.

Não é novidade para ninguém que as baterias de escolas de samba – a maioria delas – aceleraram o andamento de forma cada vez mais contundente ao longo dos anos. A aceleração do andamento torna a batida previsível, marcheada, sem as nuances da síncope. O que vemos hoje, com exceções louváveis, é a batida chapada, que inibe também as melodias mais rebuscadas, com desenhos melódicos que exigem a cadência que parece ter se perdido.

A ditadura das notas agudas, o samba gritado, a aceleração típica da percussão dos frevos, é a morte da síncope. O padecimento da síncope, por sua vez, liquida o samba no pé do passista. A aceleração das baterias, cada vez mais parecidas com massas sonoras, proporciona apenas o puladinho saltado, distante do mistério do bailado do samba.

A rigor chegamos aí a um enigma: um diretor de bateria me disse certa feita que quando o samba de enredo é ruim não há alternativa que não seja a de acelerar a bateria para ver se o desfile se sustenta. Um compositor, por sua vez, já me disse que começou a fazer sambas mais chapados porque não havia outro jeito, diante das 160 batidas por minuto que a bateria da escola tocava.

Tirem suas conclusões: o samba de enredo piorou porque as baterias aceleraram ou as baterias aceleraram porque os sambas perderam qualidade melódica? As duas coisas são complementares?

Outro problema que atinge o samba de enredo especificamente é a quantidade furiosa de informações que as obras, submetidas à ditadura da sinopse, tem que passar. Não é razoável ter que expor em um único samba nove setores de desfiles. Na prática significa que o sambista terá que dar conta de nove histórias distintas.

O resultado é simples: sambas incompreensíveis sem o acompanhamento da sinopse. Frases soltas, que aparentemente não fazem o menor sentido, mas que devem estar ali para representar um setor do desfile da escola.

O que aparentemente nos resta é engolir o sarapatel. Sambas sem cadência, marcheados a ponto de perder a característica estrutural do gênero, gritados, cheios de notas agudas, com letras incompreensíveis e repletas de frases soltas.

O resumo da ópera é evidente na sofrível safra de 2015 do grupo especial. Sambas que seriam apenas medianos em tempos melhores elevaram-se, diante de algumas calamidades – ao menos três obras não podem sequer ser definidas estruturalmente como sambas de enredo – ao nível de obras primas que não são. Letras repletas de clichês que, entretanto, são ao menos compreensíveis, viraram quase verdadeiras poesias em comparação a algumas aberrações.

Diante do horror, fica o alerta: nós estamos nos acostumando perigosamente – e é disso que falo – a louvar a mediocridade como a salvação da lavoura.

10 Replies to “O Elogio da Mediocridade”

  1. Simas, acho o assunto bem relevante mas discordo de muitos pontos…acho que é uma visão presa a década passada, quando realmente a aceleração tomou proporções que beiram o absurdo. O que vemos desde 2010, 2011 é um recuo, uma preocupação das baterias em diminuir os andamentos, tentar voltar a padrões antigos, recuperar a cultura dos anos 80 por exemplo. O 160 bpm citado está voltando a ser exceção e não a regra. Até o Salgueiro, ano passado, começou a dar sinais de que a diminuição das batidas por minuto e a opção por sambas mais soltos e sincopados é a melhor saída…não repetiu este ano mas, provavelmente, vai ver nas notas que a escolha do ano passado de enredo e samba foram bem mais acertadas.
    A bateria do Império da Tijuca que, ano passado, bateu os inacreditáveis 160 bpms na avenida, já caiu este ano para 148 nos ensaios, uma conclusão que até o Capoeira(fã da correria) conseguiu chegar….
    A mudança vem chegando em ondas, é só prestar atenção….
    Mas é verdade o que você diz sobre aceleração nos sambas ruins. Ano passado, o Laíla nos contou abertamente que, por causa do samba do Boni, iria levar a bateria da BF a 148 na avenida, contrastando com a média de 144 dos últimos anos…Lógico que ele não assumia a qualidade do samba…mesmo assim, veja que os números estão bem abaixo da correria desenfreada quando cita o 160.
    Mangueira, este ano, apostou no nosso samba pois ele favorece esta queda de BPMs. A escola que vinha desfilando com uma média de 154 vai passar em 2015 a 148 bpm….Espero ter contribuído de alguma forma

    abs

  2. Cadu, ótimo comentário sobre um aspecto do texto. Só que eu continuo achando acelerado. O 160 BPM foi o que um compositor me disse em relação aos desvarios recentes da Viradouro, que parece disposta a mudar. . Eu – preso mesmo ao samba das antigas – já acho 148 BPM muito. E a questão fundamental do texto é outra: a síncope está morrendo; os sambas estão quadrados, retos, com letras que mais parecem colagens de sinopses monstruosas. O samba de vocês na Mangueira é bom, tem para mim o melhor refrão do ano (o do meio). Para você ver onde chegamos, estamos achando que 148 BPM é ótimo. Não é. Abraço!

    1. Simas, há exceções também. Nem todos os sambas pioraram e acho que as safras melhoraram em relação à década passada.

  3. É uma discussão muito salutar e que precisa ser incentivada para o bem da nossa festa. A despeito de ter havido, de fato, um viés de retomada de uma cadência por parte de algumas baterias, penso que um conjunto de medidas mais rigoroso deveria ser tomado para solidificar isso. O grande problema a meu ver foi o achatamento das notas, não só de bateria. Se um samba tiver “nós vai” e “eu quero tchu, eu quero tchá”, o mínimo que vai levar é 9,0, enquanto um “Heróis da Liberdade” só poderia levar 10. Da mesma forma, uma bateria perfeita leva 10 enquanto a mais medíocre leva 9,0.

    Quanto às baterias, fala-se muito em criatividade, mas vejo isso como algo muito subjetivo; mais do que paradinhas mirabolantes, pra mim o principal fator que deveria ser analisado é manutenção da cadência, e falo cadência de samba, e não metralhadora. E com baterias mais cadenciadas, imagino que as bossas mais criativas seriam ainda mais valorizadas. Se bateria de frevo começasse a ser canetada, aí a coisa poderia mudar. Mas como valorizar as baterias com cadência adequada se a diferença da melhor pra pior bateria pode chegar a apenas um ponto por jurado? Esse é o ponto mais difícil…

    Outro fator com o qual não me conformo é a limitação do tempo de desfile em apenas 82 minutos, o que, claro, contribui para a aceleração das baterias. É claro que isso se deve à televisão, mas já que hoje o Grupo Especial pelo menos tem apenas seis desfiles por noite, não custava nada ampliar o tempo limite para 90 minutos. Oito minutos fariam uma grande diferença. Claro que as escolas não poderiam aumentar seus contingentes…

    Mas é isso, amigos, uma série de fatores realmente precisa ser analisada e temos realmente de discutir soluções em alto nível. Grande abraço!

    P.S.: Cadu, estamos ainda taxiando… ;-)

  4. Fred o achatamento é relativo se formos considerar que até o começo do século as notas variavam entre 5 e 10 sem decimais. Existiam cinco possibilidades de notas, hoje temos dez.

    O que tem que ocorrer é o jurado usar mais as notas 9,4 pra baixo.

    1. Concordo, Aloisio, você levantou algo mais preciso sobre o julgamento. De qualquer forma, ainda acho que as notas poderiam variar pelo menos de 8 a 10 mas você tem razão. Seja qual for essa variação numérica, o jurado precisa pontuar ou despontar de acordo. Absss!

      1. Lembrem-se os amigos que os jurados do quesito rodaram por 2 9,5 pra Beija Flor e 9,6 para a Grande Rio…

  5. Fred e Aluísio, concordo com as observações. Tiago, é evidente que há exceções. QUando você diz que as safras melhoraram, bate o meu medo, que sinto também em relação a alguns aspectos do comentário do Cadu. O risco é nos conformarmos, diante do horror, com o medíocre. A década passada foi o horror. O meu medo agora é que a reação a ela seja apenas a consagração do mediocre como padrão de referência. A luta é para jogar o padrão lá prá cima. A coisa ainda está muito complicada. Abraços

  6. Simas, penso que entre nós desse debate há exatamente esse consenso de que melhorou, sim, mas ainda não é suficiente. O nosso papel, como pessoas que escrevem e debatem Carnaval, e no caso do Cadu, também como compositor, é lutar para que continue melhorando. E vamos que vamos, como diz o belo samba imperiano de 2015, “nosso samba nunca vai morrer…”

Comments are closed.