João Cabral de Melo Neto, poeta nascido no Recife, é associado cronologicamente à geração de 45 do Modernismo brasileiro, mas, em verdade, suas características destoam das que normalmente definem tal momento literário. Contrário ao sentimentalismo poético e defensor de uma poesia escrita ‘a palo seco’, ele produz com exatidão e objetividade e, por isso, ocupa um espaço singular na Literatura.

A preferência pelo encontro de consoantes na composição poética, aspecto que negligencia a suavidade atingida pela melodia das vogais, faz com que o elemento “pedra” represente semanticamente essa valorização ao selecionar as palavras que serão por ele utilizadas. Seu primeiro livro intitula-se Pedra do sono (1942) e o último, A educação pela pedra (1966), mostrando esse elemento não como um estorvo no meio do caminho, mas como possibilidade de educar-se por meio do despertar provocado por um eventual tropeço.

Isso fica mais claro, por exemplo, a partir do entendimento do poema “Catar feijão”, no qual ele compara o processo de escrever com o ato de catar feijão: neste, retira-se “um grão qualquer, pedra ou indigesto,/ um grão imastigável, de quebrar dente” que ocasionalmente esteja entre os grãos de feijão; na composição poética, porém, acontece o contrário – deve ser selecionada a melhor palavra, representada, pois, pela pedra, já que “a pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a como o risco.”

A exatidão e a objetividade da produção literária de João Cabral podem ser vistas sobretudo no modo como foi criada sua obra Serial: totalmente articulada em torno do número quatro, é composta por dezesseis poemas – quatro ao quadrado –, todos eles são divididos em quatro partes e há o trabalho com quatro variantes métricas, além de outros aspectos que remetem ao mesmo número. É nesse livro que encontramos, a meu ver, um de seus melhores poemas, “Graciliano Ramos:”, que será brevemente analisado:

GRACILIANO RAMOS:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga,
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

Joao-Cabral-620x400A temática do sertão aproxima João Cabral de Melo Neto de Graciliano Ramos, a quem o título se refere estabelecendo um diálogo com Vidas Secas. Nesse romance, os personagens têm uma fala limitada, com construções simples, fato que permite a relação da pobreza vocabular com a experiência da miséria. João Cabral acredita que a vida no sertão não pode ser retratada por uma linguagem associada ao ritmo e à melodia dos versos, porque esses artifícios estariam dissociados da falta de humanidade a que são submetidos os que possuem uma vida severina. É por isso que ele utiliza somente “as mesmas vinte palavras”, palavras estas que giram “ao redor do sol”, ou seja, em um ambiente seco e escasso.

Ainda na primeira estrofe, temos a “faca” como um instrumento responsável tanto pela dor física do sertanejo quanto pela sua dor existencial. Pensando nesse mesmo signo a partir da análise da criação textual, percebemos que as palavras consideradas poéticas são evitadas por João Cabral justamente porque representariam o alimento que não deixa nítido o perigo de uma faca: a palavra literária, desse modo, funcionaria como enfeite ou floreio a uma realidade cruel e sem vida, da mesma maneira que a “crosta viscosa,/ resto de janta abaianada” cegaria uma possível cicatriz feita pela lâmina que corta.

Ademais, ao falar “somente do que fala”, o poeta esclarece o sertão como tema: um ambiente reduzido ao espinhaço, sem espaço para a folha prolixa ou vistosa de um cenário que não faz parte daquele lugar seco. Mais adiante, ao falar “somente por quem fala”, ele dá voz às pessoas que vivem no sertão, submetidas à falta de dignidade e a uma experiência vital “em que só cabe cultivar/ o que é sinônimo da míngua”.

Por fim, as duas últimas estrofes expressam a quem o poeta direciona seu lamento, como se fosse um aviso ao leitor para que este desperte do “sono de morto” e enxergue a problemática social tratada no poema. O sol “estridente”, quando “bate nas pálpebras como/ se bate numa porta a socos”, evidencia a urgência de alertar e mostrar essa realidade àqueles que a desconhecem ou mantêm distância dela.

“Graciliano Ramos:”, portanto, serve como um bom exemplo para uma breve compreensão de sua obra. A partir da leitura desse poema, percebe-se a presença constante do atrito de consoantes, a temática do sertão, a preocupação com a divisão exata da forma, a crítica às palavras consideradas poéticas e a denúncia social, características que marcam fortemente a composição literária de João Cabral de Melo Neto.

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