Em 1982, o Brasil, ainda no Regime Militar, passava por Eleições Gerais. Em todo o país, seriam eleitos novos Governadores, Senadores, Prefeitos, Deputados e Vereadores. A disputa mais acirrada nos grandes centros era no Rio de Janeiro, quando o PDS de Moreira Franco não tinha como maior adversário o PMDB de Miro Teixeira, como na maior parte do Brasil, mas sim o “caçula” PDT de Leonel Brizola.

O leitor bem sabe que, em 1982, não existia internet e a apuração dos votos acontecia de maneira bem diferente. Basicamente, os votos eram recolhidos das urnas e contados um a um, sendo os resultados jogados então em um computador. Em todo o Brasil, isso ficou a cargo de uma empresa estatal, a Serpro. No Rio de Janeiro, uma empresa privada, a Proconsult, faria a totalização dos votos. Pela primeira vez, o jornalismo se envolveria em uma grande polêmica por conta das Eleições aqui no Brasil. Em 1964, a esmagadora maioria dos veículos de imprensa “deu com os burros d’água” apoiando o Golpe Militar, mas era um caso bem diferente.

A imprensa na época se encontrava bastante perdida. Já se passavam mais de 20 anos das últimas eleições gerais e a maioria dos jornalistas nunca tinha passado por uma cobertura extensa como aquela. A Globo, por exemplo, se articulava há muito tempo para tentar apresentar resultados confiáveis de hora em hora antes mesmo da divulgação do TSE. Para isso, montou uma cobertura centralizada em dois pontos: no estúdio, em São Paulo, o “Show das Eleições” recebia, por telefone, os dados vindos da sede de O Globo que, em parceria com a emissora, recebia os dados vindos do TSE com os mapas de apuração. Os estagiários ouviam, anotavam em planilhas, e jogavam os dados nos computadores.

Antes de mais nada, é necessário dizer que, ainda que não tenha sido exatamente o veículo mais “brizolista” na imprensa, as Organizações Globo nunca esconderam a possibilidade de vitória do candidato do PDT. A Eleição estava extremamente apertada, mas, no Jornal Nacional do dia anterior, a pesquisa do Ibope foi anunciada indicando vitória de Brizola sobre Moreira Franco.

No dia da apuração, uma confusão gigantesca aconteceu na imprensa. Como O Globo só precisaria divulgar dados no jornal do dia seguinte, não precisava de atualizações constantes. Assim, optou por fazer planilhas também para as votações para Senadores e Deputados. Rádios cariocas, por outro lado, recebiam só os dados para o Governo e, portanto, atualizavam as parciais com muito mais rapidez. O grande erro da TV Globo foi atrelar sua cobertura ao jornal.

A imprensa dividia os votos do Rio em três regiões: capital – onde Brizola tinha a maioria do eleitorado -, a periferia e o interior – onde o candidato do PDT mal chegava a 10%. Como de praxe, a apuração no interior seguia em ritmo muito mais acelerado que no Rio, então, evidentemente, Moreira Franco largou na frente e Brizola começou atrás até de Miro Teixeira. Na Globo, isso permaneceu por mais tempo que nos veículos de rádio, que já indicavam o crescimento de Brizola por conta do que já foi exposto.

Brizola, então, chamou a imprensa estrangeira e acusou a Globo de, em conluio com a Proconsult, fraudar a Eleição. O que não faz muito sentido, pois, em seus boletins, a Globo já indicava que a votação estava, segundo as projeções matemáticas por conta dos resultados nas três regiões, “empatadas”, pois Brizola teria, ao final, nessas projeções, apenas 20 mil votos a mais que Moreira Franco, uma margem muito pequena, já que os votos não seguem uma lógica matemática. Ter 70% dos votos no interior com 4% das urnas apuradas não garante que você não poderá ter 60 ou 80 no final.

O que complicou mesmo a vida da Globo foi um erro no sistema da Proconsult. A situação era surreal. Candidatos a deputado, por exemplo, protestavam na sede da empresa. Alguns diziam ter cinco mil votos em uma parcial e, depois de apurados mais votos, apareciam com 800. Ou seja: mais votos apurados, menos votos para o candidato. Algo completamente impossível.

A possibilidade de fraude, a partir daí, se mostrava bem plausível. Se votos são tirados de deputados em uma escala pequena, quem poderia garantir a legalidade dos resultados? A apuração foi paralisada por 48 horas, a Serpro realizou uma auditoria e, na sequência, quem levou foi Brizola. Em um colégio eleitoral de cinco milhões de eleitores, a vitória de Brizola foi por apenas 178.474 deles, ou 3,6%. Margem inferior, inclusive, à apontada pela pesquisa Ibope/Globo da véspera. [1]

No entanto, a postura da Globo naquelas Eleições, principalmente por conta das evidências de uma fraude com a Proconsult através do “diferencial Delta” – que, ao menos para mim, soam pouco evidentes (embora claramente tenha havido uma fraude, não há nenhuma prova mais contundente de envolvimento da Globo) – foi muito contestada.

Sete anos depois, a Globo novamente se complicaria e aí eu acho que o leitor vai entender onde eu quero chegar com essa introdução gigantesca cheia de história que todo mundo já conhece.

Em 1989, Collor e Lula brigavam ferrenhamente pela Presidência. As campanhas eram carregadas de golpes baixos. Lula era quem mais sofria pois, como eu já comentei aqui, a visão “barbudo comunista” era muito temida pelos brasileiros e explorada pelos adversários. Collor chegou a colocar a ex-mulher do rival na TV falando que ele apoiou um aborto de uma filha. Algo que chocaria a todos hoje, que dirá em 1989.

O auge do golpe baixo se deu no debate da TV Globo. O JN do dia seguinte pegou 10 minutos de falas de Collor e um de Lula nos “melhores momentos”. A emissora admitiu um “erro jornalístico”, mas nunca confessou a preferência por Collor. Pelo menos até 2012, quando Boni, no lançamento de sua biografia, confessou ter criado uma pasta vazia com supostas denúncias contra Lula para que ele exibisse no debate e disse ter até colocado suor no rosto do candidato para “aproximá-lo do povo”.

Há uma diferença abissal entre os dois casos. Nos dois, a Globo tinha preferências políticas, nos dois cometeu erros graves, mas só em um deles tomou uma postura que fere os princípios jornalísticos, ao menos no meu modo de ver. No primeiro, noticiou o que sabia. Errou, mas não enganou. No segundo, fez o que pôde para ajudar Collor.

Mas, afinal de contas, qual o papel do jornalismo? Até onde deve ir a imparcialidade?

Nenhum veículo de informação – de um blog que ninguém lê a TV Globo – precisa ter compromisso com a imparcialidade. Jornalismo não precisa ser imparcial. Deve sim haver um compromisso com a verdade. Não se pode mentir ou distorcer coisa alguma para favorecer interesses próprios. Isso é óbvio. Mas ninguém é obrigado a esconder sua preferência. O comentarista de futebol precisa por acaso evitar expor o fato de que o time do Cruzeiro é melhor que o do Flamengo? Então por que o comentarista político não pode dizer que, em sua visão, a Dilma é melhor que o Aécio ou vice-versa?

Só que não se pode colocar qualquer veículo jornalístico no mesmo balaio. Quanto maior audiência e menor o público-alvo, mais deve-se esconder essas preferências e privilegiar exclusivamente a informação. O Blog do Fulano de Tal que tem lá 200 acessos por mês, vai, é lógico, tomar um menor cuidado com a imparcialidade. Vai meter o pau no candidato adversário e exaltar seu preferido. Mesmo porque não são 100 leitores do Partido A e 100 do B, são 200 do dele.

A Globo fala para todo um país. Para eleitores de todos os partidos, de todas as classes sociais. Logo, ainda que tenha uma preferência, deve se preocupar em, nos telejornais, ser completamente imparcial. Mesmo porque afirma isso em seus Princípios Editoriais. Não podemos cobrar que os programas jornalísticos da Globo News ou que as Meninas do Jô sejam imparciais. Mas, no Jornal Nacional, espera-se uma isenção. Isenção essa que, salvo raras exceções, me parece existir.

Sem contar que veículos grandes, por serem uma concessão pública, estão sempre com as mãos atadas. A Globo mesmo já se queimou muito por camuflar menos suas preferências e, hoje, opta por uma maior neutralidade (aparente) por interesse próprio. Dizem que governar com a imprensa contra é um Inferno e é verdade, mas fazer jornalismo com o Governo contra também não é legal.

CAPA 11111Com revistas, a situação já é diferente porque trabalham com um público mais específico. No entanto, o jornalismo político nessas publicações, de maneira geral, anda muito mal. A Veja, principal veículo de oposição, se supera semana a semana nos absurdos. Tudo, absolutamente tudo, vira denúncia contra o PT. E quando surge uma denúncia grave contra o tucano Aécio Neves, a manchete fala em “perseguição petista” motivada por um suposto “desespero” por conta de um suposto crescimento de Aécio nas pesquisas. A história do aeroporto é avaliada como “impecável legal, mas eticamente discutível”. Talvez o eufemismo mais cara-de-pau da história do jornalismo. Assim, a revista perde credibilidade quando trata de outros assuntos.

A Carta Capital, parceira de longa data do Governo Lula-Dilma, faz algo que eu considero ainda pior. “Denuncia” um suposto – e bota suposto nisso – complô, digamos assim, de toda a imprensa contra Dilma. Falam em golpe com uma naturalidade impressionante. E isso não vem de hoje. Em 2006, a três dias do primeiro turno, foi descoberto o escândalo dos petistas que tentavam comprar um falso dossiê sobre Geraldo Alckmin, adversário de Lula, e que poderia ajudar o Presidente a se reeleger já naquele fim de semana.

A denúncia, claro, foi capa de todos os jornais do dia seguinte e ganhou extensa cobertura no Jornal Nacional. No entanto, no mesmo dia, um avião da Gol se chocou com um Boeing e caiu, matando uma centena de pessoas. No dia do acidente, nenhum segundo no JN. Aí, meu amigo, tome porrada da Carta Capital na cabeça da Globo. Segundo a revista, Band e Terra já haviam informado sobre o acidente enquanto o JN “escondeu” o caso.

O Jornal entrava no ar as 20:15 e saía as 20:45. O avião deveria chegar as 18:30 em seu destino, Brasília. As 20:45, porém, só se sabia que um avião da Gol estava desaparecido. Sem rota, sem número, sem nada. Um avião da Gol. Só. Com seis mil pessoas transportadas naquele dia, a divulgação de uma informação dessas, assim, seria irresponsável. A Band informou em um Plantão a “queda de um avião que deveria chegar a Goiânia” por volta de 20:15. Minutos depois, se retratou e disse que ele estava “apenas” desaparecido. Confirmado o acidente, a Globo entrou com um Plantão as 20:51 para noticiar o que já se sabia e, posteriormente, as 21:19 detalhando melhor a situação. A matéria do Terra que cita a Carta Capital foi ao ar as 18:30, mas só ganhou aquelas informações na atualização das três da manhã. [2]

A imprensa estará sempre em xeque. É natural. São meses e meses de campanha acompanhados por exaustivos apoiadores de todos os lados que querem aproveitar qualquer brecha para chiar. Os maiores veículos sofrem mais, é claro. Em 2010, quando o candidato tucano José Serra teria sido atingido por um rolo de adesivos, toda a imprensa noticiou o fato como a Globo. Só o SBT afirmou se tratar de uma bolinha de papel – e se retratou horas depois. No entanto, lá foi a Globo virar “antipetista” e “forjadora de ataques”.

sera_uma_bolinha_1Embora existam provas razoáveis de que Serra foi atingido primeiro por uma bolinha de papel e, minutos depois, por um rolo de adesivos, há quem continue martelando na tese de um complô anti-PT formado por Globo, Folha e Estadão, desmentido pelo SBT – e olha que o SBT viraria inimigo do PT um tempo depois. Diga-se de passagem, a repórter Mariana Gross, que cobria a caminhada de Serra para o RJTV, também foi atingida por uma pedra, mas isso é outra história. [3]

Os casos, ao meu ver, ilustram bem a carência de boa informação vivida pelo jornalismo brasileiro. Cada um cuida do seu e não se preocupa com a veracidade de nada. A filosofia jornalística de petistas e anti-petistas – a da falta de compromisso com a verdade e as vezes até com a coerência – ficou impregnada em militantes, simpatizantes e até em profissionais que estão começando na área. Ou, pior, em nomes consagrados do jornalismo e de outras áreas que jogam toda a credibilidade que conquistaram ao longo da carreira, pelo ralo.

O verdadeiro papel do jornalismo é um tema muito complexo e, eu tenho minhas opiniões, mas não posso afirmar nada. O tema exige muito mais conhecimento, principalmente o prático, de quem já fez, quem já viu, essas coisas.

O que qualquer consumidor de informação, porém, pode afirmar é que, seja lá qual for o papel do jornalismo, estamos, no Brasil, de maneira geral, muito longe de vê-lo cumprido.

[N.do.E.1: provou-se à época a fraude do “diferencial Delta”, que transferia votos nulos e brancos para o candidato Moreira Franco. Para maiores informações, ver aqui. PM]

[N.do.E.2: após as eleições de 2006 o Diretor de Jornalismo da Globo, Ali Kamel, deu início a uma série de demissões de jornalistas não alinhados com a linha ideológica dele e dos donos do grupo. Repare o leitor que o jornalismo global, hoje em dia, é reflexo de seu diretor, sem espaço para o contraditório: vale a versão adequada às convicções dos donos e de Kamel, que controla a edição com mão de ferro. PM]

[N.do.E.3: vale lembrar que a Globo convocou o perito Ricardo Molina para “provar” a tese de que Serra foi atingido por uma pedra e não por uma bolinha de papel, com ampla divulgação no Jornal Nacional; PM]

One Reply to “O papel do jornalismo nas Eleições”

  1. Leonardo Dahi, meus parabéns. Aplausos de pé.
    Raríssimo texto *equilibrado* que leio sobre a imprensa brasileira.

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